quinta-feira, 22 de junho de 2023

O Cachorro


Eu mesmo nunca tive cachorro. Meu avô, assim como meus pais, é que sempre tinha o quintal de casa bem movimentado, quase sempre com até mais de um.

No tempo do meu avô eram cinco cães lá em casa e, mais tarde, com meus pais, a gente mantinha pelo menos três. E ainda tinha as ocasiões em que os filhotes surgiam e a gente cuidava de doá-los o quanto antes. Antes que o trabalho fosse um fardo maior que o suportável.

Morando em apartamento atualmente, a minha questão é que, se uma pessoa que tem um cachorro em casa, cada vizinho tem a sensação de tê-lo também. A cada saída pra pegar o elevador, a cada hora da comida, quando chega visita, quando vem a moça da faxina, quando o rapaz do condomínio vai limpar o andar, quando tem trovão, quando um carro freia forte na rua, quando alguém está no hall do andar, quando tem obra em outro apartamento, todas essas vezes o cachorro do vizinho faz o que de melhor ele sabe: late. E late forte. Late dentro da sua sala.

Em alguns finais de semana, aqui no meu prédio, o coitado do cão fica confinado à sacada. Nesses dias dá pra perceber que a vizinha, a dona dele, sai de casa por um período longo e que, possivelmente para não incomodar demais, o bicho fica do lado de fora, o que aumenta ainda mais os barulhos que ele faz, pois nem há paredes suficientes para deter os seus latidos, grunhidos e o som dos objetos que ele fica jogando de um lado pro outro. Às vezes parece que são vasilhas, outras soam como brinquedos mesmo de madeira, por vezes peças plásticas, enfim, tudo ali ao seu redor tem sons variados, de alturas idem.

Certamente, quando a moradora retorna o barulho já parou, ou melhor, por ela voltar pra casa o barulho para, o que naturalmente lhe dá a sensação de que a estratégia da sacada, com certeza, é a melhor opção para que o seu amado cãozinho não incomode os vizinhos.

Eu mesmo já ensaiei um modo de falar com ela, de avisar, de dar um toque, na boa, na paz, na maciota, na moral, sobre o que acontece quando ela sai de casa e o animal fica socado ali na varanda. Aliás, uma vez ela entrou no elevador junto comigo e uma outra moradora. A mulher foi logo fazendo carinho no bicho e a dona, toda alegre, com ele no colo, falava das suas qualidades de obedecer, de ser adestrado etc. Até que a outra vizinha disse:

– Olha que talento. No sábado ele estava cantando alto, uivando e latindo alternadamente. Uma gracinha. Meu marido até comentou: hoje o pet da dona Zilá está contente.

Assim que ela acabou de falar olhou direto pra mim. Me fuzilou com o olhar. Eu senti que era o momento de eu apontar também qualquer coisa, um barulho sequer, que dessa a ideia de incômodo, que fosse algo que se poderia também pôr a culpa no cachorro. Eu senti os olhos da vizinha me suplicando, de algum modo, naquela tarefa. Mas eu fiquei calado. Não me vinha nada que eu pudesse falar na hora. E depois, estava um clima tão amistoso que eu provavelmente não iria conseguir mantê-lo se reclamasse de alguma coisa, qualquer coisa, naquele momento.

Então, a pobre mulher voltou a acariciar o cãozinho da vizinha e, assim que pode, me laçou um olhar que mais parecia uma espada, um míssil reprovador, como se dissesse que eu não fui legal em não fazer a minha parte e ajudar pra que a dona soubesse, finalmente, que o seu cãozinho não é elefante, mas incomoda muita gente.

Desde aquele dia eu fiquei com a sensação de que teria de estar pronto pra uma nova oportunidade como aquela. Na minha cabeça eu fui ensaiando não só os termos que ia usar mas, principalmente, os fatos que iria descrever pra dar a noção de que eu também – e não só a condômina do elevador – estava constantemente sendo incomodado pelo cão que latia na sacada e também no meio da minha sala.

Sempre que eu a via passeando na calçada, esticando e encolhendo a coleira, automaticamente eu já voltava a rememorar as frases, os modos e os fatos que eu devia enfileirar sobre o barulhento animal. E sempre me alertava a mim mesmo que eu deveria ser simpático e cordial, pra que não ficasse qualquer impressão de grosseria da minha parte. A isso seria melhor continuar calado e deixar as coisas como estavam.

Até que, de tanto ensaiar, um dia eu entrei no mercado e a tal senhora estava no meio dos corredores. Sem o cachorro. De imediato já me aflorou todo o discurso que eu tinha elaborado. Lembro que eu fui me esgueirando entre as gôndolas e enquanto me aproximava, buscava tomar mais coragem.

Não era só o fato de falar o que eu queria falar. Era mais o medo de fincar naquela superficial amizade entre vizinhos uma descortesia desnecessária, que provavelmente se arrastaria por anos e, sempre que nos cruzássemos pelos elevadores do prédio, surgiria uma lembrança carrancuda daquele dia infame em que eu não tive delicadeza suficiente e acusei o seu cãozinho de ser um bom fila..., quer dizer, um animal que sempre nos obrigava a aumentar o volume da tevê, toda vez que ia viver solitário na sua sacada.

Inspirando fundo toda a minha polidez e refinamento, me decidi a ir falar com a vizinha e, de longe, procurei o corredor em que ela estava. Escolhendo algumas maçãs e outras frutas, assim que ela me viu, se virou prontamente na minha direção e abriu um sorriso acolhedor:

­– Oi, vizinho. Tudo bem? Eu estava mesmo querendo falar com você. Queria pedir desculpas pelo comportamento do Herman. Ultimamente ele deve estar incomodando demais você, né? Ele tem latido muito de noite, sabe? O médico falou que é por causa da ração nova e dos remédios que eu estou dando pra ele. O coitadinho teve uma alergia, algum ingrediente da ração antiga estava fazendo mal e, com esse processo de troca, ele não tem comido e nem dormido direito. Aí ele fica acordado de noite e fica inquieto, latindo. Eu sei que deve estar perturbando demais. Mas, olha, qualquer coisa você chama pelo interfone, me avisa, reclama comigo mesmo, de verdade, e eu dou um jeito. Imagina, eu tenho horror de incomodar os vizinhos. Mas fala, ele tem feito muito barulho ali, pra você?

Um novo e retumbante travamento surgiu na minha garganta. Eu quase me engasguei. De tanto que eu ensaiei, na hora que ela terminou e me deu a pausa há muito esperada, eu só consegui responder frases soltas, sem sentido, balbuciando a minha canônica incerteza.

Quase sem querer, as palavras começaram a sair da minha boca por vontade própria:

– Imagina! Não está incomodando nada. Pode ficar tranquila, senhora. Ele late? Late. Mas não chega a atrapalhar não. Nem se preocupe. Se fosse qualquer coisa, de certo que eu ia falar pra senhora. Pode ficar tranquila.

– Isso mesmo. Pode chamar mesmo. Se ele estiver fazendo muito barulho, estorvando o seu descanso, pode ligar e me avisar. Como eu disse, eu tenho horror de incomodar os vizinhos.

– Que nada. Pode ficar descansada quanto a isso.

– Ah, muito obrigado, vizinho. Um bom dia pra você, tá?

Até hoje eu não sei onde foram parar as minhas belas frases decoradas, as sentenças tão meticulosas e educadas. Tampouco, jamais descobrirei o que foi feito dos substanciais fatos e provas que eu ia enumerar, um a um, sobre aquele cachorro do demônio, que sempre late na sacada do prédio como se estivesse na minha sala.

Eu fui saindo do mercado devagar. Meio cabisbaixo, talvez. Não me lembro como atravessei a rua e nem como cheguei em casa sem tropeçar nas tais palavras extraviadas, tão metodicamente escolhidas.

Naquela noite sonhei que eu tinha um cachorro.

E acordei aos gritos, apavorado!

– Valha-me Deus!

 


4 comentários:

  1. Kkk Kkk. Aaaí aí!....muito ingraçado mesmo. Kkk.

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  2. Se você não fosse libriano, depois desse texto eu diria que é!

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  3. "Não me lembro como atravessei a rua e nem como cheguei em casa sem tropeçar nas tais palavras extraviadas. " Essa frase é um poema. Muito boa a crônica Anderson. (Lengo)

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  4. Te dou uma dica: manda o link das tuas crônicas para a tal vizinha! Ela vai gostar e te compreender melhor!

    Abração!

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