segunda-feira, 10 de julho de 2023

Duas Tias

 

No dia do lançamento do seu livro, Edson foi todo contente tomar o café da manhã na casa das tias e, claro, aproveitou pra reforçar que as presenças das duas era imprescindível logo mais, à noite. Alguns dias atrás elas tinham dado sinais de que não estavam muito bem de saúde, com sinusites e enxaquecas periódicas, e talvez não fosse possível irem ao evento.

A dona Dirce era a filha do meio, dos três irmãos. Se casou muito cedo e, como ficou viúva trágica e precocemente, não teve filhos. Dulce, ao contrário, se casou bem mais tarde e foi mãe de três filhas, todas morando atualmente fora do país.

O irmão mais velho, já falecido, era pai de Edson, o sobrinho querido que foi criado como filho desde pequeno pelas tias e que agora está prestes a lançar o seu primeiro livro.

– Não sei não. Acho que esse lugar não é pra mim. Não vou ficar à vontade no meio de tanta gente de cultura, essas pessoas letradas... A Dulce vai prestigiar o lançamento e eu fico em casa. Ninguém vai sentir a minha falta mesmo.

– Como assim? Eu vou sentir a sua falta – disse o rapaz, apontando o próprio peito.

– Vai nada. Sua tia é que não pode estar ausente. Já eu...

No lado oposto da mesa, a pobre Dulce só balançava a cabeça, discordando de toda aquela conversa tola.

– Edinho, fica tranquilo. Isso tudo é charme da sua tia. Nós vamos sim e estaremos na primeira fila dos aplausos. Pode deixar.

Assim que ele saiu porta a fora as duas foram tirar a mesa e arrumar tudo na cozinha.

– O que foi aquilo Dircinha? Você está cada dia pior. Cada vez mais ciumenta com o Edinho.

– Mas é verdade, Dulcinha. Edinho sempre teve muito mais afeição a você. Passou muito mais tempo da vida com você e, enfim, comigo ele tem respeito, até alguma estima, mas é diferente.

– Do quê você está falando, mana? O fato é que eu morava mais perto dele e, sim, o Nico, quando ficou viúvo, deixava ele lá em casa antes de ir pro trabalho. Mas a criação dele é fruto da dedicação de nós duas. Juntas, sempre juntas. Não tem essa de mais afeição por uma ou outra.

– Mas é uma coisa normal o sobrinho gostar mais de uma tia do que da outra. Muito normal.

– Ah, pare com isso. Você vai magoar o Edinho com essa conversa. Olha só, eu também posso achar que ele gosta mais de você do que de mim. Eu sempre reparei que as conversas entre vocês são sempre mais profundas, longas e eu diria que ele tem muito mais gosto em propor certos assuntos com você do que comigo.

– O fato é que se o Edinho tem alguma preferência, tudo bem, ele até pode ter mesmo. Mas se você disser que essa preferência, às vezes é por uma, às vezes é por outra, bem, aí eu posso até concordar.

– Ah, claro, é isso então. Podemos chegar a um acordo e estancar essa prosa sem sentido?

E a conversa continuou assim, cheia de idas e vindas, até o final da tarde, quando as duas tias saíram de casa, rumo à livraria do Centro da cidade.

A noite de autógrafos foi ótima. Cheia de amigos, colegas de trabalho e até alguns professores do autor. Muitos convidados as tias conheciam de longa data e, por isso, foram cumprimentadas por eles com grande entusiasmo e estima. É claro que no meio de tantos abraços os nomes das duas eram, por vezes, confundidos. Mas elas levavam tudo com bom humor e logo as pessoas se desculpavam sorrindo com algum ar de timidez.

Quase no final do evento, quando elas se aproximaram da mesa para receber os seus livros autografados, o Edson pediu a palavra e fez uma tocante apresentação das tias, aludindo não só a responsabilidade pela sua criação mas, também, por ter aprendido com elas o amor pelos livros, pela música, a cultura e, enfim, pela educação que teve e que fez dele um homem honesto.

Depois dos aplausos ele fez a entrega dos livros a cada uma e, entre muitos abraços, elas posaram para as fotos junto com os convidados que se alternavam à frente da mesa.

Na saída, o sobrinho foi com as duas até a calçada e ali elas embarcaram no carro de um amigo de infância que fez questão de levá-las em casa.

Durante o trajeto, cada uma com o seu livro na mão abria a primeira página e lia a dedicatória. Fizeram isso algumas vezes. Depois de cada nova leitura, cada uma tornava a fechar o livro e soltava um suspiro de orgulho e satisfação.

Quando se preparavam pra tomar o chá noturnal, enquanto arrumavam as xícaras, os pratos e os talheres na mesa, a Dirce pediu:

– Você se importa se eu ler a sua dedicatória?

– O autógrafo que o Edinho fez no meu livro? Claro que não. Eu mesmo já li o seu.

– Como já leu o meu?

– Ué, não podia? Enquanto você foi no quarto eu peguei e li, ora. Tem algum mal nisso?

– Não, de jeito nenhum. É que, no meu caso, é só curiosidade mesmo.

– No meu também. Aliás, saiba que eu gostei muito da minha. Mas você, provavelmente, vai gostar mais da sua – e as duas deram o mesmo riso nervoso.

O caso é que o Edinho, já conhecendo as tias, e lembrando do diálogo havido naquela mesma manhã, durante o café, não hesitou um minuto ao fazer os autógrafos e em registrar exatamente o que era necessário. Assim, para cada uma das tias ele escreveu a mesmíssima frase: “Para a minha Tia preferida, um enorme agradecimento pela vida. Edinho.”

A cena a seguir é como o final de um filme. Vemos a tia Dirce se dirigindo até a mesa onde está o livro da irmã. Em seguida ela para e reflete sobre a situação, ressabiada pelo fato de a irmã já ter lido a sua dedicatória. Então ela toma o livro da Dulce em suas mãos e passa a ler a dedicatória dela.

Com um sorriso de soslaio, ela revela a todos nós – da plateia – um sentimento inusitado: um misto de surpresa e contentamento. Um grande contentamento. Então ela lê a frase de novo, agora em voz alta, para a irmã ouvir, e depois lhe estende as duas mãos.

– Tia preferida! Esse Edinho é um malandro mesmo! Que danado!

 

 


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