quarta-feira, 26 de julho de 2023

A Batata Frita


Uma das coisas mais fáceis de se perceber é um pai atrapalhado. Na vida, na rua, no parque, no shopping ou dentro de um aeroporto, sem a respectiva mãe por perto, basta uma única cena e temos ali descortinado o pai em apuros, todo enrolado com as suas funções de cuidar das crianças.

Ressalvo, porém e a tempo, com todas as distinções devidas, que tal comportamento é cada vez mais raro nos pais atuais. O meu cunhado, Caíque, é o maior exemplo que eu conheço de alguém que detém totalmente a capacidade, o controle e a coragem para, por exemplo, implementar uma viagem continental levando, sem a mãe, as duas filhas em idades praticamente pré-escolares. Isso pra mim é caso de honraria ou talvez condecoração pelo, digamos, conjunto da obra.

Feita a ressalva e, voltando ao pai da nossa história, temos agora ele no saguão do aeroporto, ajoelhado em frente a uma cadeira, tentando arrumar a mochila da sua filha, ou melhor, cuidando para que ela fique num estado, o mais parecido possível como quando a menina resolveu buscar, no fundo de uma das divisórias, um saco de batata frita.

O voo era o próximo a ter o embarque anunciado e, exatamente por esta razão, o pai, além de arrumar a mochila mais uma vez, tinha de deixar à mão todos os documentos que permitiriam que a menina fosse autorizada a entrar naquele avião. Então, numa pastinha transparente estava, não só os papéis da menina, mas também os seus, as autorizações da mãe, do juizado, as passagens e as conexões. E como se não bastasse, a filha queria abrir o saco de batata no meio de todo aquele furdunço, uma verdadeira mixórdia, um legítimo mistifório – obrigado dicionário Houaiss – que só quem tem filhos em viagem e em período de férias pode compreender o real significado.

Nesse mundo de meu Deus, não sei todos sabem, mas há sacos e sacos de batata. Uns assim, outros assados, mas a maioria é frita mesmo. Frita sabe-se lá de que modo, com quais ingredientes adicionais. Esse nosso, especificamente, é daquele bem gordurento, caprichado no óleo, do tipo que depois que a criança come, aonde ela toca, fica a marquinha inconfundível dos dedinhos, todos bem engorduradinhos, lindos. No mundo ideal daquele rapaz carente de destreza, as roupas da mochila, assim como as que trajavam pai e filha, deveriam, ou melhor, seria desejável que fossem poupadas do desprazer de entrar em contato com algumas daquelas batatas ou, em último caso, com os dedinhos da menina durante a ingestão que logo viria, inevitavelmente.

Ao mesmo tempo em que a cena no chão chamava alguma atenção dos demais passageiros, a disputa entre abrir ou não o famigerado saco ia ganhando contornos de inquietação. O pai ensaiou argumentar que daria as batatas assim que entrassem e tomassem os seus assentos no avião. A menina perguntava porque não agora e mostrava as mãos livres, prontinhas para a ação, já que sua mochilinha ia às costas, sem ser obstáculo algum.

O pai, então, buscou desenvolver a retórica:

– É assim filha: a gente precisa estar com as mãos livres pra entrar no avião. Pra poder mostrar os documentos para a moça, levar as bagagens menores, as mochilas. Depois, tem uma hora que todos vão ter que desligar os celulares e os aparelhos eletrônicos e, em seguida, assim que todos estiverem sentados, aí sim, vai ter a autorização pro avião decolar e nesse momento vai ser permitido comer a batata frita.

– Promete?

– Claro, filha. A gente pede um guardanapo pra moça lá dentro, pra não sujar as roupas, e pronto, fica tudo ok.

A menina pegou na mão do pai e entrou na fila, com toda a calma e obediência. Durante todo o trajeto pela rampinha de acesso até a aeronave, a menina ia tranquila enquanto era acompanhada pelos olhares compreensivos dos passageiros, que ora sorriam pra ela, ora para o pai.

Rapidamente, todos se acomodaram no avião. A comissária veio conferir o travamento dos compartimentos de bagagens, depois o alinhamento dos encostos das poltronas, tudo de praxe e normal, passando pelas instruções de segurança etc.

Alguns minutos após veio a decolagem e a menina perguntou:

– É agora, pai? Já pode?

Da primeira vez, o pai não respondeu, fingindo ocupado com alguma coisa. Mas veio a segunda e a terceira vez, com a mesma frase a perguntar se já podia. O pai então começou baixinho:

– Filha, sabe o que é? Você vai ficar toda suja com essas batatas, vai sujar as roupas, a poltrona, vai ficar um caos isso aqui com batata pra todo lado. E se a gente deixar pra comer lá na casa da vovó, quando a gente chegar? Que tal?

– Poxa, pai, você prometeu!

– Eu sei, filha, mas é que...

– Pai, então você mentiu pra mim?

Bem, depois dessa frase da menina o caldo entornou de vez, ou como diz um amigo meu: “foi-se o boi junto com a corda”. Primeiro, ouviu-se um burburinho crescente entre os passageiros. Depois, algumas frases soltas repetiam a pergunta fatídica “Ô pai, você mentiu pra ela?”. Na sequência, algumas vozes – da gente ordeira e virtuosa – em tons mais graves, vinham em defesa da menina:

– Você prometeu. Isso não se faz.

– Agora dá a batata pra ela.

– Sol, a culpa deve ser do sol – pensou o Chico, olhando o céu pela janelinha.

– Criança se suja e depois limpa, ora. É assim mesmo. Pega a batata, pô!

O pai foi se encolhendo cada vez mais na cadeira, sem saber direito o que fazer. Os protestos, por sua vez, só aumentavam, até que uma torrente incontida surgiu de repente, como se fosse tudo pactuado entre os passageiros:

– Batata... Batata... Batata... – gritava a essa altura a turba em polvorosa, com suas palmas ritmadas que cadenciavam os apupos.

Quando o pai, finalmente, se levantou pra ir pegar a mochila no bagageiro, um retumbante aplauso emergiu em toda a aeronave. Com os assobios, os vivas e os renovados gritos de batata, o coitado só se acalmou de vez quando viu a comissária se aproximando. Ela trazia nas mãos um copo de água, uma caixinha de suco para a menina e, de quebra, um chumaço de guardanapos e uma boa e farta quantidade de papel toalha... para delírio das gerais... no Coliseu.

 

 


segunda-feira, 10 de julho de 2023

Duas Tias

 

No dia do lançamento do seu livro, Edson foi todo contente tomar o café da manhã na casa das tias e, claro, aproveitou pra reforçar que as presenças das duas era imprescindível logo mais, à noite. Alguns dias atrás elas tinham dado sinais de que não estavam muito bem de saúde, com sinusites e enxaquecas periódicas, e talvez não fosse possível irem ao evento.

A dona Dirce era a filha do meio, dos três irmãos. Se casou muito cedo e, como ficou viúva trágica e precocemente, não teve filhos. Dulce, ao contrário, se casou bem mais tarde e foi mãe de três filhas, todas morando atualmente fora do país.

O irmão mais velho, já falecido, era pai de Edson, o sobrinho querido que foi criado como filho desde pequeno pelas tias e que agora está prestes a lançar o seu primeiro livro.

– Não sei não. Acho que esse lugar não é pra mim. Não vou ficar à vontade no meio de tanta gente de cultura, essas pessoas letradas... A Dulce vai prestigiar o lançamento e eu fico em casa. Ninguém vai sentir a minha falta mesmo.

– Como assim? Eu vou sentir a sua falta – disse o rapaz, apontando o próprio peito.

– Vai nada. Sua tia é que não pode estar ausente. Já eu...

No lado oposto da mesa, a pobre Dulce só balançava a cabeça, discordando de toda aquela conversa tola.

– Edinho, fica tranquilo. Isso tudo é charme da sua tia. Nós vamos sim e estaremos na primeira fila dos aplausos. Pode deixar.

Assim que ele saiu porta a fora as duas foram tirar a mesa e arrumar tudo na cozinha.

– O que foi aquilo Dircinha? Você está cada dia pior. Cada vez mais ciumenta com o Edinho.

– Mas é verdade, Dulcinha. Edinho sempre teve muito mais afeição a você. Passou muito mais tempo da vida com você e, enfim, comigo ele tem respeito, até alguma estima, mas é diferente.

– Do quê você está falando, mana? O fato é que eu morava mais perto dele e, sim, o Nico, quando ficou viúvo, deixava ele lá em casa antes de ir pro trabalho. Mas a criação dele é fruto da dedicação de nós duas. Juntas, sempre juntas. Não tem essa de mais afeição por uma ou outra.

– Mas é uma coisa normal o sobrinho gostar mais de uma tia do que da outra. Muito normal.

– Ah, pare com isso. Você vai magoar o Edinho com essa conversa. Olha só, eu também posso achar que ele gosta mais de você do que de mim. Eu sempre reparei que as conversas entre vocês são sempre mais profundas, longas e eu diria que ele tem muito mais gosto em propor certos assuntos com você do que comigo.

– O fato é que se o Edinho tem alguma preferência, tudo bem, ele até pode ter mesmo. Mas se você disser que essa preferência, às vezes é por uma, às vezes é por outra, bem, aí eu posso até concordar.

– Ah, claro, é isso então. Podemos chegar a um acordo e estancar essa prosa sem sentido?

E a conversa continuou assim, cheia de idas e vindas, até o final da tarde, quando as duas tias saíram de casa, rumo à livraria do Centro da cidade.

A noite de autógrafos foi ótima. Cheia de amigos, colegas de trabalho e até alguns professores do autor. Muitos convidados as tias conheciam de longa data e, por isso, foram cumprimentadas por eles com grande entusiasmo e estima. É claro que no meio de tantos abraços os nomes das duas eram, por vezes, confundidos. Mas elas levavam tudo com bom humor e logo as pessoas se desculpavam sorrindo com algum ar de timidez.

Quase no final do evento, quando elas se aproximaram da mesa para receber os seus livros autografados, o Edson pediu a palavra e fez uma tocante apresentação das tias, aludindo não só a responsabilidade pela sua criação mas, também, por ter aprendido com elas o amor pelos livros, pela música, a cultura e, enfim, pela educação que teve e que fez dele um homem honesto.

Depois dos aplausos ele fez a entrega dos livros a cada uma e, entre muitos abraços, elas posaram para as fotos junto com os convidados que se alternavam à frente da mesa.

Na saída, o sobrinho foi com as duas até a calçada e ali elas embarcaram no carro de um amigo de infância que fez questão de levá-las em casa.

Durante o trajeto, cada uma com o seu livro na mão abria a primeira página e lia a dedicatória. Fizeram isso algumas vezes. Depois de cada nova leitura, cada uma tornava a fechar o livro e soltava um suspiro de orgulho e satisfação.

Quando se preparavam pra tomar o chá noturnal, enquanto arrumavam as xícaras, os pratos e os talheres na mesa, a Dirce pediu:

– Você se importa se eu ler a sua dedicatória?

– O autógrafo que o Edinho fez no meu livro? Claro que não. Eu mesmo já li o seu.

– Como já leu o meu?

– Ué, não podia? Enquanto você foi no quarto eu peguei e li, ora. Tem algum mal nisso?

– Não, de jeito nenhum. É que, no meu caso, é só curiosidade mesmo.

– No meu também. Aliás, saiba que eu gostei muito da minha. Mas você, provavelmente, vai gostar mais da sua – e as duas deram o mesmo riso nervoso.

O caso é que o Edinho, já conhecendo as tias, e lembrando do diálogo havido naquela mesma manhã, durante o café, não hesitou um minuto ao fazer os autógrafos e em registrar exatamente o que era necessário. Assim, para cada uma das tias ele escreveu a mesmíssima frase: “Para a minha Tia preferida, um enorme agradecimento pela vida. Edinho.”

A cena a seguir é como o final de um filme. Vemos a tia Dirce se dirigindo até a mesa onde está o livro da irmã. Em seguida ela para e reflete sobre a situação, ressabiada pelo fato de a irmã já ter lido a sua dedicatória. Então ela toma o livro da Dulce em suas mãos e passa a ler a dedicatória dela.

Com um sorriso de soslaio, ela revela a todos nós – da plateia – um sentimento inusitado: um misto de surpresa e contentamento. Um grande contentamento. Então ela lê a frase de novo, agora em voz alta, para a irmã ouvir, e depois lhe estende as duas mãos.

– Tia preferida! Esse Edinho é um malandro mesmo! Que danado!