Uma das coisas
mais fáceis de se perceber é um pai atrapalhado. Na vida, na rua, no parque, no
shopping ou dentro de um aeroporto, sem a respectiva mãe por perto, basta uma
única cena e temos ali descortinado o pai em apuros, todo enrolado com as suas
funções de cuidar das crianças.
Ressalvo,
porém e a tempo, com todas as distinções devidas, que tal comportamento é cada
vez mais raro nos pais atuais. O meu cunhado, Caíque, é o maior exemplo que eu
conheço de alguém que detém totalmente a capacidade, o controle e a coragem
para, por exemplo, implementar uma viagem continental levando, sem a mãe, as
duas filhas em idades praticamente pré-escolares. Isso pra mim é caso de
honraria ou talvez condecoração pelo, digamos, conjunto da obra.
Feita a
ressalva e, voltando ao pai da nossa história, temos agora ele no saguão do
aeroporto, ajoelhado em frente a uma cadeira, tentando arrumar a mochila da sua
filha, ou melhor, cuidando para que ela fique num estado, o mais parecido
possível como quando a menina resolveu buscar, no fundo de uma das divisórias,
um saco de batata frita.
O voo era o
próximo a ter o embarque anunciado e, exatamente por esta razão, o pai, além de
arrumar a mochila mais uma vez, tinha de deixar à mão todos os documentos que
permitiriam que a menina fosse autorizada a entrar naquele avião. Então, numa
pastinha transparente estava, não só os papéis da menina, mas também os seus,
as autorizações da mãe, do juizado, as passagens e as conexões. E como se não
bastasse, a filha queria abrir o saco de batata no meio de todo aquele
furdunço, uma verdadeira mixórdia, um legítimo mistifório – obrigado dicionário
Houaiss – que só quem tem filhos em viagem e em período de férias pode
compreender o real significado.
Nesse mundo de
meu Deus, não sei todos sabem, mas há sacos e sacos de batata. Uns assim,
outros assados, mas a maioria é frita mesmo. Frita sabe-se lá de que modo, com
quais ingredientes adicionais. Esse nosso, especificamente, é daquele bem
gordurento, caprichado no óleo, do tipo que depois que a criança come, aonde
ela toca, fica a marquinha inconfundível dos dedinhos, todos bem
engorduradinhos, lindos. No mundo ideal daquele rapaz carente de destreza, as
roupas da mochila, assim como as que trajavam pai e filha, deveriam, ou melhor,
seria desejável que fossem poupadas do desprazer de entrar em contato com
algumas daquelas batatas ou, em último caso, com os dedinhos da menina durante
a ingestão que logo viria, inevitavelmente.
Ao mesmo tempo
em que a cena no chão chamava alguma atenção dos demais passageiros, a disputa
entre abrir ou não o famigerado saco ia ganhando contornos de inquietação. O
pai ensaiou argumentar que daria as batatas assim que entrassem e tomassem os
seus assentos no avião. A menina perguntava porque não agora e mostrava as mãos
livres, prontinhas para a ação, já que sua mochilinha ia às costas, sem ser obstáculo
algum.
O pai, então, buscou
desenvolver a retórica:
– É assim
filha: a gente precisa estar com as mãos livres pra entrar no avião. Pra poder
mostrar os documentos para a moça, levar as bagagens menores, as mochilas.
Depois, tem uma hora que todos vão ter que desligar os celulares e os aparelhos
eletrônicos e, em seguida, assim que todos estiverem sentados, aí sim, vai ter
a autorização pro avião decolar e nesse momento vai ser permitido comer a
batata frita.
– Promete?
– Claro,
filha. A gente pede um guardanapo pra moça lá dentro, pra não sujar as roupas,
e pronto, fica tudo ok.
A menina pegou
na mão do pai e entrou na fila, com toda a calma e obediência. Durante todo o
trajeto pela rampinha de acesso até a aeronave, a menina ia tranquila enquanto
era acompanhada pelos olhares compreensivos dos passageiros, que ora sorriam
pra ela, ora para o pai.
Rapidamente,
todos se acomodaram no avião. A comissária veio conferir o travamento dos
compartimentos de bagagens, depois o alinhamento dos encostos das poltronas,
tudo de praxe e normal, passando pelas instruções de segurança etc.
Alguns minutos
após veio a decolagem e a menina perguntou:
– É agora,
pai? Já pode?
Da primeira
vez, o pai não respondeu, fingindo ocupado com alguma coisa. Mas veio a segunda
e a terceira vez, com a mesma frase a perguntar se já podia. O pai então
começou baixinho:
– Filha, sabe
o que é? Você vai ficar toda suja com essas batatas, vai sujar as roupas, a
poltrona, vai ficar um caos isso aqui com batata pra todo lado. E se a gente
deixar pra comer lá na casa da vovó, quando a gente chegar? Que tal?
– Poxa, pai,
você prometeu!
– Eu sei,
filha, mas é que...
– Pai, então
você mentiu pra mim?
Bem, depois
dessa frase da menina o caldo entornou de vez, ou como diz um amigo meu: “foi-se
o boi junto com a corda”. Primeiro, ouviu-se um burburinho crescente entre os
passageiros. Depois, algumas frases soltas repetiam a pergunta fatídica “Ô pai,
você mentiu pra ela?”. Na sequência, algumas vozes – da gente ordeira e virtuosa
– em tons mais graves, vinham em defesa da menina:
– Você
prometeu. Isso não se faz.
– Agora dá a
batata pra ela.
– Sol, a culpa
deve ser do sol – pensou o Chico, olhando o céu pela janelinha.
– Criança se suja
e depois limpa, ora. É assim mesmo. Pega a batata, pô!
O pai foi se
encolhendo cada vez mais na cadeira, sem saber direito o que fazer. Os protestos,
por sua vez, só aumentavam, até que uma torrente incontida surgiu de repente,
como se fosse tudo pactuado entre os passageiros:
– Batata...
Batata... Batata... – gritava a essa altura a turba em polvorosa, com suas palmas
ritmadas que cadenciavam os apupos.
Quando o pai,
finalmente, se levantou pra ir pegar a mochila no bagageiro, um retumbante
aplauso emergiu em toda a aeronave. Com os assobios, os vivas e os renovados
gritos de batata, o coitado só se acalmou de vez quando viu a comissária se
aproximando. Ela trazia nas mãos um copo de água, uma caixinha de suco para a
menina e, de quebra, um chumaço de guardanapos e uma boa e farta quantidade de
papel toalha... para delírio das gerais... no Coliseu.
Assim mesmo, caro Anderson
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