No meio de
tanta gente trabalhando no entorno na praça, a enfermeira passou com sua mãe e
foi se esgueirando pra não esbarrar em nada. Os operários, em torno de uns 20
homens, montavam um palco para um comício que aconteceria no dia seguinte
naquele local, um entroncamento de cinco ruas, com escola e supermercado, tudo aglomerado.
Em suma, o que normalmente já é um caos, imagine com um palanque enorme.
Concentradas
entre a calçada, a rua e o caminho a tomar, alguma coisa repentinamente chamou
a atenção das duas mulheres. Era um jovem rapaz que acabava de ser
eletrocutado. Transportando uma das estruturas tubulares para perto de onde
seria encaixada numa outra, sem perceber encostou uma das extremidades no alto do poste,
onde haviam outros fios energizados, e veio a descarga elétrica.
O baque forte foi
seguido de um barulho estranho, tipo um zunido de abelha, alto, que se juntou
ao grito do rapaz, logo abafado pelo som da sua própria queda, na lateral da
praça. Quem não viu toda a sequência só teve alguma reação pelo raio azul que
se soltou do fio, do poste enfim, o que fez com que o homem largasse de
imediato o metal que tinha nas mãos.
Desacordada, a
vítima logo foi atendida pela enfermeira que passava. Aparentemente tinha
havido uma parada cardíaca e a moça aplicava uma massagem no peito do acidentado,
já rodeada pelos companheiros e tendo sido anunciada pela própria mãe, dizendo
que a filha trabalhava no posto de saúde.
O que parecia
não poder ficar mais estressante do que já estava, ficou. Um pequeno grupo de
operários começou a hostilizar a enfermeira, entendendo que a massagem não
trazia resultado. A moça pediu calma e assegurou que podia demorar um pouco,
mas que a manobra era correta e estava ao menos evitando que o rapaz morresse,
pois que mantinha minimamente o pulso e alguma respiração.
No entanto,
nada daquilo foi considerado. Os colegas, alguns alterados e até com sinais de embriaguez, tiraram a enfermeira de perto e passaram, eles mesmos, a fazer
os procedimentos. Cada um dava uma sugestão, uma opinião do que fazer e, sem
conhecimento adequado, tentavam uma coisa nova a cada minuto, dizendo que eles
eram seus amigos e que iriam salvá-lo de qualquer jeito.
Mãe e filha foram
se afastando do centro do círculo e lamentaram juntas que as massagens estavam
sendo feitas de forma errada, inclusive fora do ponto certo de estimular o
músculo do coração. A enfermeira chegou a notar que algumas eram localizadas próximas do pescoço do ferido, o que só prejudicava a sua
recuperação, se é que isso ainda era possível.
Mais alguns
minutos e a turba já estava parando o trânsito, pedindo que algum motorista
levasse o rapaz até o pronto socorro, já que a ambulância tardava a chegar. Outros jogavam água no rosto do moço e também na sua boca,
tentando aplacar o calor do meio-dia, que já debilitava até o mais normal dos
seres viventes.
Um dos carros
parou, o motorista então abriu as portas de trás e se preparou pra vir erguer o
rapaz, pedindo licença e também a ajuda de quem estivesse no caminho. Quando
chegou próximo um dos colegas já se antecipou dizendo que não adiantava mais,
que o garoto estava morto. O encarregado da montagem do palco, junto com o
chefe da equipe surgiu com um pano grande e o cobriu, agradecendo ao motorista pela
ajuda, mas assegurando que seria melhor que a ambulância levasse o corpo, para
que fossem feitos os procedimentos devidos, comuns a essas ocorrências.
A enfermeira, de
certa maneira acostumada com este cotidiano, mesmo assim ficou abalada. A mãe,
por sua vez, de braços dados com ela, buscava acalmá-la e trouxe da padaria em
frente algo pra ela beber.
– Não fique
triste, filha. Você fez o que pôde. Nem sempre a gente consegue salvar quem
precisa ser salvo. E os rapazes também não ajudaram e até atrapalharam o que
você estava fazendo, que era o certo.
– Você viu a
cicatriz dele, mãe? Bem acima da sobrancelha. Enorme. Deve ter sido um baita
acidente que causou aquilo.
– Não reparei
não. Acho que eu estava nervosa.
– E era novo
ele. Bem novo.
– Sim, quase
um menino. Mas fica calma. Vamos pra casa, você precisa descansar.
– Eu queria
ter dito pra ele que eu sou enfermeira, que eu ia cuidar dele, pra ele ficar
calmo. Mesmo inconsciente, o paciente às vezes consegue reter essas informações
e permite ser tratado, aceitando os procedimentos que vão ajudar na sua cura.
Mas não deu tempo. Não deu tempo pra nada.
A enfermeira contou aquele fato no seu
trabalho e todos rechaçaram a atitude dos amigos do rapaz, que tomaram a frente
das ações e fizeram tudo errado, não deixando que o atendimento correto fosse
feito.
Algum tempo
depois, uns poucos meses, estava a enfermeira no ponto, esperando o ônibus pra
voltar pra casa. Ela notou um barzinho perto, cujo dono estava colocando uma
caixa de isopor no lado de fora, pra atender não só às pessoas no ponto, mas
também aos passageiros dos ônibus que paravam ali. Isso é muito comum no Rio de
Janeiro, principalmente no verão. Vendedores e compradores se entendem muito
bem nessas transações feitas através das janelas dos ônibus.
Olhando toda a
cena, a enfermeira foi até a entrada do bar pra comprar água também e ficou
esperando que o dono retornasse da venda aos passageiros. Nessa hora um homem que,
igualmente, devia estar esperando a sua condução, se aproximou, talvez com o
mesmo propósito de comprar água.
– A senhora é
enfermeira, né? – disse, pondo a mão no queixo.
Normalmente
ela estaria com as roupas brancas do trabalho, o que facilitaria o entendimento
daquela pergunta. Mas, especificamente, naquele dia, ela não estava de branco.
O rapaz então repetiu a frase e agora não era mais uma pergunta, e sim uma
afirmação:
– A senhora é
enfermeira.
Repetiu outra
vez e entrou no bar, ao mesmo tempo em que o dono voltava com a caixa de isopor.
Intrigada com
o sujeito a enfermeira foi atrás dele, bar adentro.
– Pra onde foi
o rapaz que acabou de entrar aqui? – perguntou à mulher que estava no balcão.
– Como?
– O rapaz que
entrou aqui, ainda agora? Ele foi no banheiro?
– O banheiro é
lá fora, moça. E não entrou ninguém aqui não.
– Um rapaz de
macacão, assim... de cabelo curto, com uma cicatriz...
Quando saiu da
sua boca essa última palavra ela sentiu todo o corpo tremer. A palavra cicatriz
que a fez atinar e reconhecer o rapaz do acidente e que ela não tinha se dado
conta até pronunciá-la, quase que involuntariamente.
Aquele rosto
ela jamais esqueceria. Não só pela proximidade do atendimento que deu a ele,
mas também pela pouca idade, pelo infortúnio do acidente elétrico e a morte
estúpida e repentina, no meio da rua.
Quando chegou
em casa e contou tudo pra sua mãe, e se acalmou, e pediu a Deus pelo rapaz, pela
paz da sua alma, foi a resposta que ela ouviu que, enfim, a fez chorar:
– Ele veio te
visitar, filha. Veio ver quem você era.