Caiu como uma
bomba a notícia de que Mariza e Júlio estariam pedindo a anulação do casamento.
Os amigos tentavam entender as possíveis motivações, algo que justificasse
aquela decisão, mas a moça se isolou de todos e somente as pessoas mais próximas
tiveram algum contato com ela, apenas para ampará-la nesse momento em que
ninguém sabia muito bem o que fazer.
Depois de
conversar com os pais, o casal recebeu ainda, em sua casa, o padre que celebrou
a união deles. Na verdade o pároco era um velho e bom amigo dos dois, conhecia
todos os padrinhos da cerimônia, além de ser próximo das duas famílias, pois
eram todos muito religiosos.
Mariza e Júlio
tinham namorado por cerca de um ano, quando resolveram se casar. Para alguns
aquilo era pouco tempo. Para outros era razoável, suficiente para ambos, até por
que se conheciam havia bem mais tempo e faziam parte de uma turma grande, com
muitos amigos em comum e uma convivência que só unia e fortalecia a amizade
entre todos.
É comum que, em
certos tipos de agrupamento, as pessoas vão se aproximando, se conhecendo e,
por vezes, as paixões, o amor, surja de uma forma natural, como uma planta que
cresce à vista de todos. Aquele casal, por exemplo, era muito afinado e estava
sempre perto um do outro. Os dois sentavam juntos nas mesas dos bares, iam
conversando no mesmo banco no ônibus, gostavam das mesmas músicas, dos mesmos
filmes e foi um processo natural para todos quando anunciaram o namoro e depois
o casamento.
Justamente por
todo esse contexto é que a surpresa com a anulação veio tão envolvida em
incredulidade e suspeição.
Ela
demonstrava um pouco mais de firmeza na decisão. Ele, ao contrário, não tinha
resposta para quase nada do que acontecia e só tratava mesmo de respeitar a
vontade da esposa, tentando buscar nas suas reflexões algo que ele pudesse ter
feito a modo de desandar todo o roteiro que culminou com o pedido dela de
separação.
Foram tempos
de grande decepção e, mesmo a depressão que a sucedeu, teve de ser vivida dia
após dia, até ser superada, se é que esse dia alguma vez teria chegado para
Júlio.
No universo em
que toda aquela comunidade habitava, jamais haveria espaço, consciência ou
mesmo aceitação para a homossexualidade de Mariza. Ou era ela que pensava
assim. O fato é que, quando ela se deparou com tal realidade, também lutou contra
si mesma, duvidando dos olhos que a desafiavam no espelho: como assim? A vida,
a partir de então, era uma tentativa de sufocar a própria personalidade na
busca de ser aceita. Era como se ela fosse um planeta e sua orientação sexual
outro, com trajetórias opostas, porém sem jamais deixar de se olhar.
O sentimento
de culpa nunca mais saiu do seu lado e ela conviveu com um segredo que foi o
responsável por ter causado tristeza não só a ela, mas também a quem a amou
tanto, Júlio. Mesmo não tendo explicado corretamente a ele os seus motivos, a
moça sabia exatamente o que era impossível naquele casamento, assim como sabia
impossível almejar uma normalidade na sua condição homoafetiva. O que ela tinha,
não queria, e o que queria, não podia.
Ela então
viajou, foi morar em outro país, estudou, viu o mundo, realizou muitos sonhos e
fez muitos planos. Até que um dia, do nada, descobriu uma doença. Uma doença
filha-da-puta. Voltou ao Brasil, se acolheu com os pais, que a ampararam como
sempre, e com os amigos que ainda cultivava. Logo vieram os exames, os médicos,
as internações, as melhoras, as pioras e as experimentações com novos
procedimentos. A pele mudou, a rotina idem, as roupas iam se adequando ao novo
corpo, os cabelos se foram por completo e os olhos, bem, aqueles olhos eram os
mesmos olhos consoladores que todos nós já conhecíamos da vida toda.
Foi somente
depois de alguns meses do seu passamento que eu soube que, ainda no hospital,
Mariza mandou um recado a Júlio, chamando-o.
Amigos
contaram que o intuito principal da moça era pedir perdão. Um perdão a um erro
que ela não sabia muito bem como se deu. Mas sabia, enfim, todo o dissabor que
tinha causado a Júlio e, ademais, como o adiantado da doença já pedia alguma
pressa nas decisões, ela queria também, a título de despedida, vê-lo uma última
vez.
A cena que temos
agora se passa numa tarde, no hospital, e nela vemos um rapaz entrando no
quarto da ex-namorada, para o que seria uma visita incomum, depois de um longo
tempo sem se verem.
Quando ele
então chegou à beira do leito, ambos estenderam as mãos ao mesmo tempo, como se
fosse algo combinado. Ficaram ali conversando baixinho por muito tempo. Sempre
de mãos dadas. Às vezes sorriam, às vezes um deles cuidava de secar um dos
cantos do olho, num gesto dado como fortuito, sem interromper o diálogo.
Assim, com as mãos
unidas, eles revisitaram toda a vida em comum, desde a adolescência.
De longe, ao
olhar os dois, era possível compreender o tamanho da amizade deles, algo que
jamais tinha sido esquecido, que jamais deveria ter sido deixado de lado, qualquer
que fosse o motivo.
Foi nesse
momento que Mariza falou o quanto queria merecer o seu perdão, o quanto aquilo
era importante pra ela. Ao que ele respondeu que já a tinha perdoado há muito, muito
antes de chegar o convite para ir vê-la naquela tarde.
Finalmente, ela
lhe deu um lenço seu, como presente. Ele lhe deu uma foto dos dois juntos,
tirada durante um passeio no Parque da Cidade. Ambos choraram ao ver a imagem,
mas, de pronto, cuidaram de produzir alguns sorrisos salvadores, lembrando
daquele dia especial.
Na despedida, olhou
o lenço nas mãos do rapaz e disse apenas um murmurante “vai em Paz”. E ele
respondeu no mesmo tom, com um singelo “fica em Paz”.
E se foi.
Uma única vez eu sonhei com a Mariza. Eu estava numa sala, sentado, lendo um livro e rindo, quando ela entrou. Eu me surpreendi, mas fiquei bem contente com sua presença e perguntei se ela estava bem. Ela respondeu que sim, que se recuperava ainda das sequelas da doença, mas que estava bem melhor. Eu disse que era muito bom tê-la ali no meu sonho e estendi a mão pra tocar as mãos dela. Ela então se esquivou, deu um passo atrás e contou que ainda não podia ser tocada, que ainda não era tempo. Quando foi embora, sorrindo pra mim, me fez um aceno carinhoso.
Lembro que eu
fiquei tentando voltar naquele sonho, para revivê-lo ainda algumas vezes.
Ela está com
Deus.
Sonhos, alegrias, vaidades, decepções, arrependimentos, saudades, perdões e despedidas mais tristes quando eternas. “O mundo acordar e agente (quanta gente) dormir”.
ResponderExcluirExcelente!
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