segunda-feira, 28 de agosto de 2023

A Visita


No meio de tanta gente trabalhando no entorno na praça, a enfermeira passou com sua mãe e foi se esgueirando pra não esbarrar em nada. Os operários, em torno de uns 20 homens, montavam um palco para um comício que aconteceria no dia seguinte naquele local, um entroncamento de cinco ruas, com escola e supermercado, tudo aglomerado. Em suma, o que normalmente já é um caos, imagine com um palanque enorme.

Concentradas entre a calçada, a rua e o caminho a tomar, alguma coisa repentinamente chamou a atenção das duas mulheres. Era um jovem rapaz que acabava de ser eletrocutado. Transportando uma das estruturas tubulares para perto de onde seria encaixada numa outra, sem perceber encostou uma das extremidades no alto do poste, onde haviam outros fios energizados, e veio a descarga elétrica.

O baque forte foi seguido de um barulho estranho, tipo um zunido de abelha, alto, que se juntou ao grito do rapaz, logo abafado pelo som da sua própria queda, na lateral da praça. Quem não viu toda a sequência só teve alguma reação pelo raio azul que se soltou do fio, do poste enfim, o que fez com que o homem largasse de imediato o metal que tinha nas mãos.

Desacordada, a vítima logo foi atendida pela enfermeira que passava. Aparentemente tinha havido uma parada cardíaca e a moça aplicava uma massagem no peito do acidentado, já rodeada pelos companheiros e tendo sido anunciada pela própria mãe, dizendo que a filha trabalhava no posto de saúde.

O que parecia não poder ficar mais estressante do que já estava, ficou. Um pequeno grupo de operários começou a hostilizar a enfermeira, entendendo que a massagem não trazia resultado. A moça pediu calma e assegurou que podia demorar um pouco, mas que a manobra era correta e estava ao menos evitando que o rapaz morresse, pois que mantinha minimamente o pulso e alguma respiração.

No entanto, nada daquilo foi considerado. Os colegas, alguns alterados e até com sinais de embriaguez, tiraram a enfermeira de perto e passaram, eles mesmos, a fazer os procedimentos. Cada um dava uma sugestão, uma opinião do que fazer e, sem conhecimento adequado, tentavam uma coisa nova a cada minuto, dizendo que eles eram seus amigos e que iriam salvá-lo de qualquer jeito.

Mãe e filha foram se afastando do centro do círculo e lamentaram juntas que as massagens estavam sendo feitas de forma errada, inclusive fora do ponto certo de estimular o músculo do coração. A enfermeira chegou a notar que algumas eram localizadas próximas do pescoço do ferido, o que só prejudicava a sua recuperação, se é que isso ainda era possível.

Mais alguns minutos e a turba já estava parando o trânsito, pedindo que algum motorista levasse o rapaz até o pronto socorro, já que a ambulância tardava a chegar. Outros jogavam água no rosto do moço e também na sua boca, tentando aplacar o calor do meio-dia, que já debilitava até o mais normal dos seres viventes.

Um dos carros parou, o motorista então abriu as portas de trás e se preparou pra vir erguer o rapaz, pedindo licença e também a ajuda de quem estivesse no caminho. Quando chegou próximo um dos colegas já se antecipou dizendo que não adiantava mais, que o garoto estava morto. O encarregado da montagem do palco, junto com o chefe da equipe surgiu com um pano grande e o cobriu, agradecendo ao motorista pela ajuda, mas assegurando que seria melhor que a ambulância levasse o corpo, para que fossem feitos os procedimentos devidos, comuns a essas ocorrências.

A enfermeira, de certa maneira acostumada com este cotidiano, mesmo assim ficou abalada. A mãe, por sua vez, de braços dados com ela, buscava acalmá-la e trouxe da padaria em frente algo pra ela beber.

– Não fique triste, filha. Você fez o que pôde. Nem sempre a gente consegue salvar quem precisa ser salvo. E os rapazes também não ajudaram e até atrapalharam o que você estava fazendo, que era o certo.

– Você viu a cicatriz dele, mãe? Bem acima da sobrancelha. Enorme. Deve ter sido um baita acidente que causou aquilo.

– Não reparei não. Acho que eu estava nervosa.

– E era novo ele. Bem novo.

– Sim, quase um menino. Mas fica calma. Vamos pra casa, você precisa descansar.

– Eu queria ter dito pra ele que eu sou enfermeira, que eu ia cuidar dele, pra ele ficar calmo. Mesmo inconsciente, o paciente às vezes consegue reter essas informações e permite ser tratado, aceitando os procedimentos que vão ajudar na sua cura. Mas não deu tempo. Não deu tempo pra nada.

 A enfermeira contou aquele fato no seu trabalho e todos rechaçaram a atitude dos amigos do rapaz, que tomaram a frente das ações e fizeram tudo errado, não deixando que o atendimento correto fosse feito.

Algum tempo depois, uns poucos meses, estava a enfermeira no ponto, esperando o ônibus pra voltar pra casa. Ela notou um barzinho perto, cujo dono estava colocando uma caixa de isopor no lado de fora, pra atender não só às pessoas no ponto, mas também aos passageiros dos ônibus que paravam ali. Isso é muito comum no Rio de Janeiro, principalmente no verão. Vendedores e compradores se entendem muito bem nessas transações feitas através das janelas dos ônibus.

Olhando toda a cena, a enfermeira foi até a entrada do bar pra comprar água também e ficou esperando que o dono retornasse da venda aos passageiros. Nessa hora um homem que, igualmente, devia estar esperando a sua condução, se aproximou, talvez com o mesmo propósito de comprar água.

– A senhora é enfermeira, né? – disse, pondo a mão no queixo.

Normalmente ela estaria com as roupas brancas do trabalho, o que facilitaria o entendimento daquela pergunta. Mas, especificamente, naquele dia, ela não estava de branco. O rapaz então repetiu a frase e agora não era mais uma pergunta, e sim uma afirmação:

– A senhora é enfermeira.

Repetiu outra vez e entrou no bar, ao mesmo tempo em que o dono voltava com a caixa de isopor.

Intrigada com o sujeito a enfermeira foi atrás dele, bar adentro.

– Pra onde foi o rapaz que acabou de entrar aqui? – perguntou à mulher que estava no balcão.

– Como?

– O rapaz que entrou aqui, ainda agora? Ele foi no banheiro?

– O banheiro é lá fora, moça. E não entrou ninguém aqui não.

– Um rapaz de macacão, assim... de cabelo curto, com uma cicatriz...

Quando saiu da sua boca essa última palavra ela sentiu todo o corpo tremer. A palavra cicatriz que a fez atinar e reconhecer o rapaz do acidente e que ela não tinha se dado conta até pronunciá-la, quase que involuntariamente.

Aquele rosto ela jamais esqueceria. Não só pela proximidade do atendimento que deu a ele, mas também pela pouca idade, pelo infortúnio do acidente elétrico e a morte estúpida e repentina, no meio da rua.

Quando chegou em casa e contou tudo pra sua mãe, e se acalmou, e pediu a Deus pelo rapaz, pela paz da sua alma, foi a resposta que ela ouviu que, enfim, a fez chorar:

– Ele veio te visitar, filha. Veio ver quem você era.

 

 


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