No início dos
anos 1990 eu trabalhava na área de comunicação de um sindicato, em Salvador.
Era um sindicato de servidores públicos, cujas tarefas normais e ao mesmo tempo
complexas se resumiam em manter a base minimamente informada. Era esse o mato-sem-cachorro
com que eu travava a minha labuta cotidiana.
Se alguém
perguntar sobre como é hoje em dia, eu direi, categoricamente, que essa é uma
luta que jamais terá fim. Ou seja, os trabalhadores continuam dispersos, infelizmente, e a
comunicação sindical correndo contra o tempo.
Então, durante
o ano de 1993, todo o trabalho daquele sindicato foi mobilizado em função de um
Congresso que ia ter em Belo Horizonte, Minas Gerais, no final de novembro. Foi
um ano frenético, ou “norótico”, como dizíamos nas nossas reuniões. Mas até que
num prazo razoável a gente já tinha providenciado não só as assembleias para a
escolha dos participantes, como também todo o suporte para a nossa
participação, como aluguel de ônibus, acomodação, refeições, materiais de uso e
consumo durante o evento, aí incluídos desde os materiais de escritório, até as
caixas de som e microfone, para as atividades extras e paralelas, tipo rodas de
viola e cantorias.
Já na saída do
ônibus, no Campo Grande, perto do Teatro Castro Alves, tivemos um atraso
considerável. De repente alguém, já dentro do ônibus, gritou “roubaram a minha
câmera”. Aquilo foi um furdunço. Quem estava dentro da condução saiu pra
calçada e quem estava na calçada entrou pra ajudar. Só que todo mundo se
deslocando, falando ao mesmo tempo e, enfim, nada de câmera. A dona, em estado
de choque, por muito custo aceitou ir na delegacia pra fazer o B.O. devido.
Antes não
tivesse ido. Na maior cara dura, quando ouviu de uma das testemunhas que um
rapaz foi visto andando pra lá e pra cá, dentro do veículo, e que ele tinha um “olhinho
puxado do capeta”, o delegado, na hora soltou um grito:
– Minha Santa
Edwiges. Já sei. É o gringo, o chileno. O nome dele é Raul, mas todo mundo
chama ele de gringo. Ele rouba tudo que pode ser roubado ali no Campo Grande,
minha senhora. Tem uma mão leve da porra e fica só esperando a oportunidade.
Essa figura é famosa aqui.
– Mas porque
vocês não prendem esse cara? Ele fica ali, roubando, todo mundo sabe e o deixa
solto?
– Aqui,
senhora, repare, a gente já prendeu esse gringo umas 20 vezes. Só que aí ele
fica um tempo sumido e logo volta a agir. Como o furto é pouco, de pouco valor,
logo ele está solto de novo. Vou dizer pra senhora uma coisa: isso cansa, viu?
Cansada de
verdade ficou a pobre da moça sem a câmera que ainda teve de ouvir aquela
barbaridade sobre o prende e solta bandido, o que não ajudaria em nada a
recuperar o seu equipamento.
Finalmente,
depois desse contratempo estrambótico, o ônibus ganhou a estrada. Já era quase
noite e a maioria caiu de sono, só acordando na hora do jantar, em uma parada
que tinha como maior característica o frio e a neblina, duas coisas
definitivamente desconhecidas para esses baianos a caminho das Minas Gerais. Foi
um tal de reclamar da friagem que só mesmo uma sopa quentinha deu jeito de
acalmar o espírito da galera.
Na manhã
seguinte – e aqui cabe um parêntesis oportuno, pra comentar como pode esse povo
acordar tão animado, com a rotação em 220 volts, logo cedo. Uma disposição que deu até
tristeza naqueles que queriam uns minutinhos a mais de sono, enquanto o sol
dava as caras timidamente, quem sabe dormitando também.
Mas eu dizia
que na manhã seguinte, mal saímos da parada para o café, o pessoal já estava a
todo vapor. Impressionante a cantoria que se enfileirava e a quantidade de
laranja que o pessoal consumia, espremendo a fruta diretamente na boca e depois
tomando um líquido translúcido que eu, ingenuamente, pensei que era água. Com quase
todos de pé, cambaleando nas curvas, que eram muitas, aquilo mais parecia uma
dança a mover todos na mesma direção, ao mesmo tempo, tudo sincronizado.
Pensando com os
meus botões, eu imaginava a origem do termo “comer água”, que se usa pra referir
ao velho e conhecido "tomar um porre". Era exatamente isso que eu estava vendo: comiam a fruta e junto já ia a
água. Comer água, pois. Tá certíssimo. Baiano sabe das coisas.
A um certo
momento da tarde, não sei bem dizer a hora, os ânimos ficaram mais tranquilos.
Até porque o almoço foi bem forrado e, embora tenha havido uma sutil reclamação
de que faltava um dendê naquele ensopadinho de carne, todo mundo caiu de boca
no estranho guisado.
Ocorre que a
tranquilidade durou pouco, como é fácil prever, dado o contexto dessa viagem
que aqui acompanhamos. No meio de um quase silêncio, em uma paisagem quase
bucólica, varando uma estrada quase segura, de repente se levanta um sujeito
com a cara quase do Gonzaguinha e ganha o corredor do ônibus, com um chapéu
Lampião sendo agitado nas mãos.
Ele ainda nem bem tinha anunciado o seu número e já arrebatava o público com aplausos efusivos e o
coro de Conselheiro, Conselheiro... Então o tal sujeito vestiu uma túnica de
pano de chita, tomou lugar no centro do ônibus e com gestos e entonação teatrais
declamou o que pra mim era uma espécie de literatura de Cordel, contando a saga
de Canudos e os feitos de Antônio Conselheiro. Tudo rimado, tudo metrificado e
os versos entoados faziam as suas evoluções cênicas, respeitando cada pausa
dramática com precisão.
A minha má vontade
em ouvir aquele arremedo de Gonzaguinha foi dando lugar a uma terna admiração. A
memória daquele artista recitando tudo aquilo me cativou. A força daquela
história, as rimas, as palavras encantadas, os aplausos no tempo correto,
marcando o compasso daqueles versos, tudo aquilo era o retrato mais fiel e
legítimo da cultura brasileira, da cultura dos nossos antepassados, da nossa
ancestralidade negra e indígena.
Quando
terminou a sua ode, o rapaz abriu a túnica, estendeu os braços na nossa direção
e deixou à mostra um desenho em uma camiseta. Era o próprio Antônio Conselheiro,
ali, entre anjos, corações e pássaros. E os aplausos foram tantos. E as
lágrimas foram muitas.
Entendi naquela
tarde que somos todos filhos dessa rica e indelével Cultura.
Viva esse povo
lindo do Nordeste.
(Esta crônica
segue na próxima postagem)
Amigo Anderson, embora eu já ter ouvido essa historia, na forma de crônica, na qual você é um mestre, ficou maravilhosa,
ResponderExcluirCanudos é e sempre será fascinante. Tenho um pequeno rincão em minha biblioteca com seis ou sete títulos sobre o assunto. Incluindo, claro, "Os Sertões", de Euclides da Cunha, que já li três vezes. Aguardo, ansioso, a continuação!
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