sábado, 30 de setembro de 2023

O Congresso


No início dos anos 1990 eu trabalhava na área de comunicação de um sindicato, em Salvador. Era um sindicato de servidores públicos, cujas tarefas normais e ao mesmo tempo complexas se resumiam em manter a base minimamente informada. Era esse o mato-sem-cachorro com que eu travava a minha labuta cotidiana.

Se alguém perguntar sobre como é hoje em dia, eu direi, categoricamente, que essa é uma luta que jamais terá fim. Ou seja, os trabalhadores continuam dispersos, infelizmente, e a comunicação sindical correndo contra o tempo.

Então, durante o ano de 1993, todo o trabalho daquele sindicato foi mobilizado em função de um Congresso que ia ter em Belo Horizonte, Minas Gerais, no final de novembro. Foi um ano frenético, ou “norótico”, como dizíamos nas nossas reuniões. Mas até que num prazo razoável a gente já tinha providenciado não só as assembleias para a escolha dos participantes, como também todo o suporte para a nossa participação, como aluguel de ônibus, acomodação, refeições, materiais de uso e consumo durante o evento, aí incluídos desde os materiais de escritório, até as caixas de som e microfone, para as atividades extras e paralelas, tipo rodas de viola e cantorias.

Já na saída do ônibus, no Campo Grande, perto do Teatro Castro Alves, tivemos um atraso considerável. De repente alguém, já dentro do ônibus, gritou “roubaram a minha câmera”. Aquilo foi um furdunço. Quem estava dentro da condução saiu pra calçada e quem estava na calçada entrou pra ajudar. Só que todo mundo se deslocando, falando ao mesmo tempo e, enfim, nada de câmera. A dona, em estado de choque, por muito custo aceitou ir na delegacia pra fazer o B.O. devido.

Antes não tivesse ido. Na maior cara dura, quando ouviu de uma das testemunhas que um rapaz foi visto andando pra lá e pra cá, dentro do veículo, e que ele tinha um “olhinho puxado do capeta”, o delegado, na hora soltou um grito:

– Minha Santa Edwiges. Já sei. É o gringo, o chileno. O nome dele é Raul, mas todo mundo chama ele de gringo. Ele rouba tudo que pode ser roubado ali no Campo Grande, minha senhora. Tem uma mão leve da porra e fica só esperando a oportunidade. Essa figura é famosa aqui.

– Mas porque vocês não prendem esse cara? Ele fica ali, roubando, todo mundo sabe e o deixa solto?

– Aqui, senhora, repare, a gente já prendeu esse gringo umas 20 vezes. Só que aí ele fica um tempo sumido e logo volta a agir. Como o furto é pouco, de pouco valor, logo ele está solto de novo. Vou dizer pra senhora uma coisa: isso cansa, viu?

Cansada de verdade ficou a pobre da moça sem a câmera que ainda teve de ouvir aquela barbaridade sobre o prende e solta bandido, o que não ajudaria em nada a recuperar o seu equipamento.

Finalmente, depois desse contratempo estrambótico, o ônibus ganhou a estrada. Já era quase noite e a maioria caiu de sono, só acordando na hora do jantar, em uma parada que tinha como maior característica o frio e a neblina, duas coisas definitivamente desconhecidas para esses baianos a caminho das Minas Gerais. Foi um tal de reclamar da friagem que só mesmo uma sopa quentinha deu jeito de acalmar o espírito da galera.

Na manhã seguinte – e aqui cabe um parêntesis oportuno, pra comentar como pode esse povo acordar tão animado, com a rotação em 220 volts, logo cedo. Uma disposição que deu até tristeza naqueles que queriam uns minutinhos a mais de sono, enquanto o sol dava as caras timidamente, quem sabe dormitando também.

Mas eu dizia que na manhã seguinte, mal saímos da parada para o café, o pessoal já estava a todo vapor. Impressionante a cantoria que se enfileirava e a quantidade de laranja que o pessoal consumia, espremendo a fruta diretamente na boca e depois tomando um líquido translúcido que eu, ingenuamente, pensei que era água. Com quase todos de pé, cambaleando nas curvas, que eram muitas, aquilo mais parecia uma dança a mover todos na mesma direção, ao mesmo tempo, tudo sincronizado.

Pensando com os meus botões, eu imaginava a origem do termo “comer água”, que se usa pra referir ao velho e conhecido "tomar um porre". Era exatamente isso que eu estava vendo: comiam a fruta e junto já ia a água. Comer água, pois. Tá certíssimo. Baiano sabe das coisas.

A um certo momento da tarde, não sei bem dizer a hora, os ânimos ficaram mais tranquilos. Até porque o almoço foi bem forrado e, embora tenha havido uma sutil reclamação de que faltava um dendê naquele ensopadinho de carne, todo mundo caiu de boca no estranho guisado.

Ocorre que a tranquilidade durou pouco, como é fácil prever, dado o contexto dessa viagem que aqui acompanhamos. No meio de um quase silêncio, em uma paisagem quase bucólica, varando uma estrada quase segura, de repente se levanta um sujeito com a cara quase do Gonzaguinha e ganha o corredor do ônibus, com um chapéu Lampião sendo agitado nas mãos.

Ele ainda nem bem tinha anunciado o seu número e já arrebatava o público com aplausos efusivos e o coro de Conselheiro, Conselheiro... Então o tal sujeito vestiu uma túnica de pano de chita, tomou lugar no centro do ônibus e com gestos e entonação teatrais declamou o que pra mim era uma espécie de literatura de Cordel, contando a saga de Canudos e os feitos de Antônio Conselheiro. Tudo rimado, tudo metrificado e os versos entoados faziam as suas evoluções cênicas, respeitando cada pausa dramática com precisão.

A minha má vontade em ouvir aquele arremedo de Gonzaguinha foi dando lugar a uma terna admiração. A memória daquele artista recitando tudo aquilo me cativou. A força daquela história, as rimas, as palavras encantadas, os aplausos no tempo correto, marcando o compasso daqueles versos, tudo aquilo era o retrato mais fiel e legítimo da cultura brasileira, da cultura dos nossos antepassados, da nossa ancestralidade negra e indígena.

Quando terminou a sua ode, o rapaz abriu a túnica, estendeu os braços na nossa direção e deixou à mostra um desenho em uma camiseta. Era o próprio Antônio Conselheiro, ali, entre anjos, corações e pássaros. E os aplausos foram tantos. E as lágrimas foram muitas.

Entendi naquela tarde que somos todos filhos dessa rica e indelével Cultura.

Viva esse povo lindo do Nordeste.

 

 

(Esta crônica segue na próxima postagem)




2 comentários:

  1. Amigo Anderson, embora eu já ter ouvido essa historia, na forma de crônica, na qual você é um mestre, ficou maravilhosa,

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  2. JOSE WALDEMAR TABACOW7 de outubro de 2023 às 11:42

    Canudos é e sempre será fascinante. Tenho um pequeno rincão em minha biblioteca com seis ou sete títulos sobre o assunto. Incluindo, claro, "Os Sertões", de Euclides da Cunha, que já li três vezes. Aguardo, ansioso, a continuação!

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