quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Renaldo


A mãe já tinha avisado ao filho, por telefone, que havia mandado a carta, junto com um pacote, pelos Correios. O rapaz tinha chegado do trabalho e antes de jantar separou a caixa em cima da mesa, pra ler tudo com calma. Ele tinha ido morar em Salvador logo assim que se formou, tendo sido estagiário da empresa, com a promessa de contratação, o que acabou por se cumprir, fazia já uns cinco anos.

Nesse período, a mãe tinha ido visitá-lo uma única vez. E ele só retornara a Minas Gerais apenas em um raro momento, por ocasião do sepultamento do pai, seu grande incentivador e a pessoa que mais se orgulhava da carreira que escolhera.

 A mãe dizia na carta: “Não sei o que seria dessa casa sem a ajuda da Marlene. O armário do seu pai é um túnel do tempo e eu me surpreendi várias vezes ao encontrar objetos que, por certo, já julgava perdidos por vários anos. Achei coisas suas da escola, presentes do dia dos pais, recortes de jornais com matérias de partidas futebol, relógios velhos, canetas idem, cintos, chaveiros, bonés variados, olha, um saco de lembranças sem fim aquele armário."

Ele ia lendo e rindo, conforme recordava de algumas passagens com o pai, inclusive as em que ajudou a guardar justamente algumas daquelas lembranças.

“Entre as coisas que encontrei, separei esta, especificamente pra te enviar. Eu nem sabia que ele tinha guardado. Juro a você. E como envolve uma relação direta entre vocês dois, não me senti à vontade para me desfazer desse objeto. Com toda a certeza, você saberá, melhor do que eu, dar o destino adequado para ele. Fique com Deus e que a paz da nossa mãe Oxum te guarde e te livre de todo o mal.”

O rapaz nem precisou abrir muito a caixa. Assim que venceu uma das abas da lateral, avistou um pedaço da camisa do seu querido Atlético Mineiro e desabou em um choro copioso, apoiando a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.

Chorou toda a saudade que não havia chorado quando do enterro do velho pai. Depois, entre soluços, continuou a abrir o pacote e, com cuidado, foi desdobrando a camisa à procura do nome do seu ídolo, que sabia estar escrito nas costas. Assim que a esticou por completo, enxugou os olhos e leu em voz alta: Renaldo.

 A história que só aqueles três indivíduos conheciam dava conta de que, desde menino, o filho era doido pra ter uma camisa do time do coração. A família não tinha dinheiro pra esses luxos e o pai decidiu que iria juntar uma graninha, aos poucos, para surpreender o filho no aniversário, justamente no ano em que ele havia passado no exame para a faculdade.

O que era pra ser uma festa, uma realização, virou decepção e um grande mal-estar. Assim que viu o nome do jogador grafado errado na camisa – Renaldo e não Reinaldo – o rapaz se passou e esbravejou com o pai.

Aquilo foi um rompante. Ele mesmo, poucos dias depois, se deu conta da atitude desproporcional e ruim e pediu desculpas ao pai e também à mãe. Falou que reconhecia o esforço que ambos fizeram em prol da sua educação, dos seus estudos, e que, com muita luta, conseguiram dar as melhores condições para que ele alcançasse a sua tão sonhada vaga no ensino superior. Por fim, louvou os méritos dos pais por tudo o que teve na vida.

Ao relembrar esse passado o rapaz ficou ali parado, na mesa. Pensava na surpresa da mãe ao encontrar a camisa no armário do pai e que ela, provavelmente, deve ter revivido tudo aquilo novamente, assim como ele próprio estava fazendo naquele momento. E ficou curioso pra saber o que a mãe pensava sobre tudo e qual sentimento ela preservava daqueles dias, passados todos esses anos.

Quando se falaram por telefone, ambos não conseguiam lembrar que fim tivera a tal camisa. No meio de todo aquele embaraço, simplesmente a camisa desapareceu e ninguém jamais a viu. O assunto, por sua vez, jamais voltou à tona. Era uma espécie de tabu e tampouco o pai o abordava para confidenciar, com a esposa, esse ou aquele sentimento com o erro que cometeu.

– A única coisa que eu me arrependo foi não ter usado a camisa que meu pai me deu. Eu fui covarde. Eu tive vergonha de que todos vissem o nome errado do Reinaldo e eu teria que dizer que foi meu pai que mandou escrever daquele jeito. Mas ele não sabia escrever direito. E eu tive vergonha. Isso me deixa muito mal até hoje, mãe.

– Eu acho que você deve esquecer isso, filho. Já passou. Seu pai tem muito orgulho de você. Sempre teve e tem ainda. Se eu fosse dar um conselho pra você, agora que é um homem formado, um engenheiro importante...

– Ah, mãe, nada disso. Sou seu filho muito mais que engenheiro. Muito mesmo. Fala.

– É que tudo isso que você está pensando sobre a camisa, todas essas lembranças, esse arrependimento em relação à memória do seu pai, tudo isso vai se encaixar quando você vestir essa camisa. Pode acreditar. Os nossos anjos da guarda, os nossos guias espirituais estão só esperando pelo seu sinal pra te dar essa benção, livrar você desses pensamentos aflitivos e, ao final, você vai perceber que a comunhão com o seu pai jamais se quebrou. Porque ele sempre esteve e sempre vai estar com você. E você sabe disso, tenho certeza. Fica em Paz. Deus te abençoe, filho.

– Tchau, mãe. Deus me abençoou quando me fez seu filho. A sua benção.

Por algumas noites, naquela semana, o filho sonhou com o pai. Quase não sabia contar uma sequência, uma cena, não tinha um enredo o sonho, mas sabia que tinha estado com o pai.

No feriado, abriu a gaveta e deu de cara com a camisa. Vestiu. Simplesmente. Olhou no espelho. Estava um pouco apertada. Mas não muito. Dava pra usar.

Saiu com ela envergada de um sentimento novo. O amigo com o qual marcou de encontrar, de longe já via o seu sorriso aberto.

– Camisa do Galo?

– Exatamente. Do maior jogador do Galo e do Brasil.

– Linda a camisa. Parabéns. É nova, é?

– Não é não. Meu pai me deu faz uns sete, oito anos. Ele escreveu Renaldo nela e eu tinha vergonha de usar. Mas agora não tenho vergonha, não. Meu pai não tinha estudo, não sabia escrever direito. Mas me deu ela com muito esforço e cheio de amor. Então agora vou usar sempre, em homenagem a ele e a tudo que ele me deu nessa vida.

– Bacana você usar a camisa. Bacana a história. E parabéns de novo pela camisa. E pelo seu pai.

– Com a benção da minha mãe Oxum.

 

 

 

Essa crônica é dedicada ao Tony, meu amigo de Salvador.

Comemora também os 10 anos desse Blog, iniciado com o lançamento do livro Antes de Mim, exatamente no dia 22 de novembro de 2013. Esta é a crônica de número 225.



segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O Exame


Era um dia lindo de sábado, daqueles que a gente gosta de aproveitar o sol pra ficar refestelado, confortavelmente, só tirando os casacos à medida que o corpo vai esquentando. O tempo fica preguiçoso, o ventinho frio nem incomoda e os passarinhos, sempre por perto, exibem o seu linguajar de cantos e pios infindáveis.

A um certo momento a campainha toca e entra pela casa, esbaforida, a filha da dona Elvira, cheia de papéis nas mãos. Nervosa, ela começa a selecionar algumas folhas, enquanto anuncia o enredo.

– Mamãe, ficaram prontos os seus exames. Passei no laboratório agora e peguei tudo lá. As notícias não são nada boas e eu estou muito preocupada.

– O que tem de errado com os exames? – acudiu a tia, vinda do quarto apressada.

– Ah, eu nem sei mais qual é o pior. Tá tudo meio estranho. Mas o colesterol está horrivelmente preocupante. Minha mãe vai ter que fazer uma dieta pra baixar esse número. Vamos ter de ficar de olho e na verdade será um novo modo de vida daqui pra frente. Essas coisas que ela costuma comer, vai ter de parar imediatamente, por causa do colesterol.

No canto da varanda, com sua calma costumeira a mãe suspirou.

– Olha, eu só sei dizer que não estou sentindo nada. Durmo bem, tomo os meus remedinhos e me sinto ótima. Nem gripe eu pego ultimamente. Não entendo a razão desse alvoroço todo, se vocês querem saber.

– Olha pra mim, mamãe. A gente pode estar se sentindo bem. Ótimo que seja assim. Mas os exames são os exames. São esses números que dizem o quanto a gente está bem de verdade ou não. Então, com esse colesterol do jeito que está aqui, a gente tem de fazer alguma coisa. É risco de vida mesmo. Coisa séria. Vamos ter que cortar umas coisas da sua alimentação, mas é tudo pro seu bem.

– Eu até entendo que a gente precisa sempre verificar o sangue, os glóbulos, as hemácias e todas essas coisas. Não me nego a isso. Eu só digo que estou bem e que ao me sentir bem os índices aí desses exames deveriam estar bem também. É uma coisa lógica.

– Mamãe, não tem nada de lógica. É medicina isso. Ciência.

Enquanto a pobre da dona Elvira continuava ali na varanda, curtindo o seu solzinho da manhã, lendo o seu jornalzinho tranquilamente, a irmã e as duas filhas decifravam a papelada, analisando as tabelas e os percentuais contidos nos exames que ela fizera recentemente e que resultou em todo esse sobressalto.

– Pelo jeito tem que tirar tudo de gordura, saturada principalmente, sal, açúcar, processados, embutidos, o pão.

– Sim, o café também. O vinho. Batata também não pode. Fritura, manteiga, refrigerante.

– O refrigerante pode tirar todo – concordou a dona Elvira, escondendo um sorriso sarcástico por trás da página do jornal estendida.

– Ah, tá. A senhora nem bebe refrigerante!

– Eu até faço essa dieta, sem problema. Mas ela não precisa ser assim tão rigorosa. Não dá pra ser moderada? Como eu já disse, estou me sentindo muito bem, obrigada, e na minha comida do dia a dia não tem nada que seja assim, tão prejudicial à saúde. Eu como de tudo, e tudo moderadamente.

– Pois é, mamãe, mas os exames...

– Ah, os exames...

– Os exames, sim. A gente tem de se basear por aquilo que eles mostram e tentar conviver com as evidências. Mas isso vai ser só até que os índices baixem um pouco e nos deem alguma resposta. Aí a gente vai liberando algumas coisas, entende? – tentou conciliar a filha mais nova.

Definitivamente, não era pela saúde de ferro da dona Elvira, nem pelos seus 93 anos, mas toda a família ficou bem surpresa pela rapidez como tudo mudou. De repente, passou a ser obrigatória a tal da restrição alimentar da idosa. E isso assustou a todos. Num momento estava tudo bem e, no outro, todos esses números aí, exigindo um grande cuidado. “Tudo é muito rápido nessa vida”, chegaram a dizer alguns parentes mais distantes.

O fato é que, nos primeiros dias foi uma luta ferrenha pra que a pobre senhora cumprisse aquela sina. E nos segundos dias podemos dizer o mesmo, assim como nos terceiros. Conforme o tempo ia passando, as pessoas só perguntavam como estava indo o tratamento e como estava o humor da dona Elvira, submetida a um esforço que efetivamente ela não concordava de jeito nenhum.

Estava quase completando duas longas semanas daquela tortura quando, de surpresa, a filha entra novamente pela casa da mãe. Era início de noite e ela tinha saído do trabalho direto pra lá.

Assim que ela entrou, um tanto confusa, não disse coisa com coisa. Primeiro foi logo pedindo desculpas, que o técnico ligou, a máquina deu erro, um tal de reagente. Depois, no mesmo fôlego perguntou se tinha vinho em casa, e que ela tinha trazido queijo... Como assim? O que tem o queijo com isso? – perguntou a tia.

Evidente que ninguém entendia nada daquela conversa. Até que o marido, que vinha logo atrás, passou na cozinha e trouxe um copo d’água.

– Calma, respira. Começa tudo desde o início que assim ninguém consegue te entender.

A filha então se acalmou e enfileirou as palavras pertinentes:

– Eu recebi uma chamada hoje à tarde. Era do laboratório. Eles estavam ligando pra pedir desculpas porque uma das máquinas de análise deu defeito e só agora eles descobriram. Parece que os reagentes estavam vencidos e as amostras ficaram com erro. Eles explicaram que todos os exames feitos durante os últimos 15 dias deram resultados errados, com os números acima do normal, muito acima do real, incluindo o da mamãe.

– Então ela não está com o colesterol alto – disse a tia.

– Isso. Não está. E nem precisava ter feito essa dieta maldita.

– Então, agora, tá tudo liberado como antes – sentenciou a outra filha.

– Claro que vamos ter de refazer todos os exames, pra confirmar isso e tal.

– Mas a princípio tá tudo normal – reiterou.

– Sim, a princípio, sim. Por isso que gente trouxe um queijo bem gostoso e o vinho chileno que ela gosta – irrompeu o genro, entrando pela sala com a garrafa já aberta e pegando as taças na cristaleira.

Erguendo o primeiro brinde, a mãe, aliviada, de repente virou a dona da festa. E entre os votos de saúde e vida longa, foram tratar logo de avisar a toda a família, tendo ao fundo o barulho dos cálices de vinho, tilintando como se fossem música.

Passado algum tempo, depois de ter atendido o telefone para falar com as netas e algumas amigas, dona Elvira se prepara pra levantar da cadeira, ajudada pela filha.

– Mas olha, que confusão essa. Desde o começo eu falei que estava ótima. Falei que nem gripe eu pego. Que tenho saúde de ferro. Eu sabia que estava bem, ora. E sabia que os exames tinham de estar bem também, ora pois. Eu disse, eu disse. Mas a verdade é que, nessa casa, ninguém me ouve mesmo! Está comprovado!

E saiu resmungando na direção do banheiro, enquanto todos escondiam o próprio riso.