Era um dia
lindo de sábado, daqueles que a gente gosta de aproveitar o sol pra ficar
refestelado, confortavelmente, só tirando os casacos à medida que o corpo vai
esquentando. O tempo fica preguiçoso, o ventinho frio nem incomoda e os passarinhos,
sempre por perto, exibem o seu linguajar de cantos e pios infindáveis.
A um certo
momento a campainha toca e entra pela casa, esbaforida, a filha da dona Elvira,
cheia de papéis nas mãos. Nervosa, ela começa a selecionar algumas folhas,
enquanto anuncia o enredo.
– Mamãe, ficaram
prontos os seus exames. Passei no laboratório agora e peguei tudo lá. As
notícias não são nada boas e eu estou muito preocupada.
– O que tem de
errado com os exames? – acudiu a tia, vinda do quarto apressada.
– Ah, eu nem
sei mais qual é o pior. Tá tudo meio estranho. Mas o colesterol está
horrivelmente preocupante. Minha mãe vai ter que fazer uma dieta pra baixar
esse número. Vamos ter de ficar de olho e na verdade será um novo modo de vida
daqui pra frente. Essas coisas que ela costuma comer, vai ter de parar
imediatamente, por causa do colesterol.
No canto da
varanda, com sua calma costumeira a mãe suspirou.
– Olha, eu só
sei dizer que não estou sentindo nada. Durmo bem, tomo os meus remedinhos e me
sinto ótima. Nem gripe eu pego ultimamente. Não entendo a razão desse alvoroço
todo, se vocês querem saber.
– Olha pra
mim, mamãe. A gente pode estar se sentindo bem. Ótimo que seja assim. Mas os
exames são os exames. São esses números que dizem o quanto a gente está bem de
verdade ou não. Então, com esse colesterol do jeito que está aqui, a gente tem
de fazer alguma coisa. É risco de vida mesmo. Coisa séria. Vamos ter que cortar
umas coisas da sua alimentação, mas é tudo pro seu bem.
– Eu até entendo
que a gente precisa sempre verificar o sangue, os glóbulos, as hemácias e todas
essas coisas. Não me nego a isso. Eu só digo que estou bem e que ao me sentir
bem os índices aí desses exames deveriam estar bem também. É uma coisa lógica.
– Mamãe, não
tem nada de lógica. É medicina isso. Ciência.
Enquanto a
pobre da dona Elvira continuava ali na varanda, curtindo o seu solzinho da
manhã, lendo o seu jornalzinho tranquilamente, a irmã e as duas filhas
decifravam a papelada, analisando as tabelas e os percentuais contidos nos
exames que ela fizera recentemente e que resultou em todo esse sobressalto.
– Pelo jeito tem
que tirar tudo de gordura, saturada principalmente, sal, açúcar, processados,
embutidos, o pão.
– Sim, o café
também. O vinho. Batata também não pode. Fritura, manteiga, refrigerante.
– O
refrigerante pode tirar todo – concordou a dona Elvira, escondendo um sorriso
sarcástico por trás da página do jornal estendida.
– Ah, tá. A
senhora nem bebe refrigerante!
– Eu até faço
essa dieta, sem problema. Mas ela não precisa ser assim tão rigorosa. Não dá
pra ser moderada? Como eu já disse, estou me sentindo muito bem, obrigada, e na
minha comida do dia a dia não tem nada que seja assim, tão prejudicial à saúde.
Eu como de tudo, e tudo moderadamente.
– Pois é,
mamãe, mas os exames...
– Ah, os
exames...
– Os exames,
sim. A gente tem de se basear por aquilo que eles mostram e tentar conviver com
as evidências. Mas isso vai ser só até que os índices baixem um pouco e nos deem
alguma resposta. Aí a gente vai liberando algumas coisas, entende? – tentou
conciliar a filha mais nova.
Definitivamente,
não era pela saúde de ferro da dona Elvira, nem pelos seus 93 anos, mas toda a
família ficou bem surpresa pela rapidez como tudo mudou. De repente, passou a ser
obrigatória a tal da restrição alimentar da idosa. E isso assustou a todos. Num
momento estava tudo bem e, no outro, todos esses números aí, exigindo um grande
cuidado. “Tudo é muito rápido nessa vida”, chegaram a dizer alguns parentes
mais distantes.
O fato é que,
nos primeiros dias foi uma luta ferrenha pra que a pobre senhora cumprisse
aquela sina. E nos segundos dias podemos dizer o mesmo, assim como nos
terceiros. Conforme o tempo ia passando, as pessoas só perguntavam como estava
indo o tratamento e como estava o humor da dona Elvira, submetida a um esforço
que efetivamente ela não concordava de jeito nenhum.
Estava quase
completando duas longas semanas daquela tortura quando, de surpresa, a filha
entra novamente pela casa da mãe. Era início de noite e ela tinha saído do
trabalho direto pra lá.
Assim que ela
entrou, um tanto confusa, não disse coisa com coisa. Primeiro foi logo pedindo
desculpas, que o técnico ligou, a máquina deu erro, um tal de reagente. Depois,
no mesmo fôlego perguntou se tinha vinho em casa, e que ela tinha trazido
queijo... Como assim? O que tem o queijo com isso? – perguntou a tia.
Evidente que ninguém
entendia nada daquela conversa. Até que o marido, que vinha logo atrás, passou
na cozinha e trouxe um copo d’água.
– Calma,
respira. Começa tudo desde o início que assim ninguém consegue te entender.
A filha então
se acalmou e enfileirou as palavras pertinentes:
– Eu recebi
uma chamada hoje à tarde. Era do laboratório. Eles estavam ligando pra pedir
desculpas porque uma das máquinas de análise deu defeito e só agora eles
descobriram. Parece que os reagentes estavam vencidos e as amostras ficaram com
erro. Eles explicaram que todos os exames feitos durante os últimos 15 dias deram
resultados errados, com os números acima do normal, muito acima do real,
incluindo o da mamãe.
– Então ela
não está com o colesterol alto – disse a tia.
– Isso. Não
está. E nem precisava ter feito essa dieta maldita.
– Então,
agora, tá tudo liberado como antes – sentenciou a outra filha.
– Claro que
vamos ter de refazer todos os exames, pra confirmar isso e tal.
– Mas a
princípio tá tudo normal – reiterou.
– Sim, a
princípio, sim. Por isso que gente trouxe um queijo bem gostoso e o vinho chileno
que ela gosta – irrompeu o genro, entrando pela sala com a garrafa já aberta e
pegando as taças na cristaleira.
Erguendo o
primeiro brinde, a mãe, aliviada, de repente virou a dona da festa. E entre os votos
de saúde e vida longa, foram tratar logo de avisar a toda a família, tendo ao
fundo o barulho dos cálices de vinho, tilintando como se fossem música.
Passado algum
tempo, depois de ter atendido o telefone para falar com as netas e algumas
amigas, dona Elvira se prepara pra levantar da cadeira, ajudada pela filha.
– Mas olha, que
confusão essa. Desde o começo eu falei que estava ótima. Falei que nem gripe eu
pego. Que tenho saúde de ferro. Eu sabia que estava bem, ora. E sabia que os
exames tinham de estar bem também, ora pois. Eu disse, eu disse. Mas a verdade
é que, nessa casa, ninguém me ouve mesmo! Está comprovado!
E saiu
resmungando na direção do banheiro, enquanto todos escondiam o próprio riso.
Depois que fiz transplant de rim, eu sou a própria D. Elvira!
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