segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O Exame


Era um dia lindo de sábado, daqueles que a gente gosta de aproveitar o sol pra ficar refestelado, confortavelmente, só tirando os casacos à medida que o corpo vai esquentando. O tempo fica preguiçoso, o ventinho frio nem incomoda e os passarinhos, sempre por perto, exibem o seu linguajar de cantos e pios infindáveis.

A um certo momento a campainha toca e entra pela casa, esbaforida, a filha da dona Elvira, cheia de papéis nas mãos. Nervosa, ela começa a selecionar algumas folhas, enquanto anuncia o enredo.

– Mamãe, ficaram prontos os seus exames. Passei no laboratório agora e peguei tudo lá. As notícias não são nada boas e eu estou muito preocupada.

– O que tem de errado com os exames? – acudiu a tia, vinda do quarto apressada.

– Ah, eu nem sei mais qual é o pior. Tá tudo meio estranho. Mas o colesterol está horrivelmente preocupante. Minha mãe vai ter que fazer uma dieta pra baixar esse número. Vamos ter de ficar de olho e na verdade será um novo modo de vida daqui pra frente. Essas coisas que ela costuma comer, vai ter de parar imediatamente, por causa do colesterol.

No canto da varanda, com sua calma costumeira a mãe suspirou.

– Olha, eu só sei dizer que não estou sentindo nada. Durmo bem, tomo os meus remedinhos e me sinto ótima. Nem gripe eu pego ultimamente. Não entendo a razão desse alvoroço todo, se vocês querem saber.

– Olha pra mim, mamãe. A gente pode estar se sentindo bem. Ótimo que seja assim. Mas os exames são os exames. São esses números que dizem o quanto a gente está bem de verdade ou não. Então, com esse colesterol do jeito que está aqui, a gente tem de fazer alguma coisa. É risco de vida mesmo. Coisa séria. Vamos ter que cortar umas coisas da sua alimentação, mas é tudo pro seu bem.

– Eu até entendo que a gente precisa sempre verificar o sangue, os glóbulos, as hemácias e todas essas coisas. Não me nego a isso. Eu só digo que estou bem e que ao me sentir bem os índices aí desses exames deveriam estar bem também. É uma coisa lógica.

– Mamãe, não tem nada de lógica. É medicina isso. Ciência.

Enquanto a pobre da dona Elvira continuava ali na varanda, curtindo o seu solzinho da manhã, lendo o seu jornalzinho tranquilamente, a irmã e as duas filhas decifravam a papelada, analisando as tabelas e os percentuais contidos nos exames que ela fizera recentemente e que resultou em todo esse sobressalto.

– Pelo jeito tem que tirar tudo de gordura, saturada principalmente, sal, açúcar, processados, embutidos, o pão.

– Sim, o café também. O vinho. Batata também não pode. Fritura, manteiga, refrigerante.

– O refrigerante pode tirar todo – concordou a dona Elvira, escondendo um sorriso sarcástico por trás da página do jornal estendida.

– Ah, tá. A senhora nem bebe refrigerante!

– Eu até faço essa dieta, sem problema. Mas ela não precisa ser assim tão rigorosa. Não dá pra ser moderada? Como eu já disse, estou me sentindo muito bem, obrigada, e na minha comida do dia a dia não tem nada que seja assim, tão prejudicial à saúde. Eu como de tudo, e tudo moderadamente.

– Pois é, mamãe, mas os exames...

– Ah, os exames...

– Os exames, sim. A gente tem de se basear por aquilo que eles mostram e tentar conviver com as evidências. Mas isso vai ser só até que os índices baixem um pouco e nos deem alguma resposta. Aí a gente vai liberando algumas coisas, entende? – tentou conciliar a filha mais nova.

Definitivamente, não era pela saúde de ferro da dona Elvira, nem pelos seus 93 anos, mas toda a família ficou bem surpresa pela rapidez como tudo mudou. De repente, passou a ser obrigatória a tal da restrição alimentar da idosa. E isso assustou a todos. Num momento estava tudo bem e, no outro, todos esses números aí, exigindo um grande cuidado. “Tudo é muito rápido nessa vida”, chegaram a dizer alguns parentes mais distantes.

O fato é que, nos primeiros dias foi uma luta ferrenha pra que a pobre senhora cumprisse aquela sina. E nos segundos dias podemos dizer o mesmo, assim como nos terceiros. Conforme o tempo ia passando, as pessoas só perguntavam como estava indo o tratamento e como estava o humor da dona Elvira, submetida a um esforço que efetivamente ela não concordava de jeito nenhum.

Estava quase completando duas longas semanas daquela tortura quando, de surpresa, a filha entra novamente pela casa da mãe. Era início de noite e ela tinha saído do trabalho direto pra lá.

Assim que ela entrou, um tanto confusa, não disse coisa com coisa. Primeiro foi logo pedindo desculpas, que o técnico ligou, a máquina deu erro, um tal de reagente. Depois, no mesmo fôlego perguntou se tinha vinho em casa, e que ela tinha trazido queijo... Como assim? O que tem o queijo com isso? – perguntou a tia.

Evidente que ninguém entendia nada daquela conversa. Até que o marido, que vinha logo atrás, passou na cozinha e trouxe um copo d’água.

– Calma, respira. Começa tudo desde o início que assim ninguém consegue te entender.

A filha então se acalmou e enfileirou as palavras pertinentes:

– Eu recebi uma chamada hoje à tarde. Era do laboratório. Eles estavam ligando pra pedir desculpas porque uma das máquinas de análise deu defeito e só agora eles descobriram. Parece que os reagentes estavam vencidos e as amostras ficaram com erro. Eles explicaram que todos os exames feitos durante os últimos 15 dias deram resultados errados, com os números acima do normal, muito acima do real, incluindo o da mamãe.

– Então ela não está com o colesterol alto – disse a tia.

– Isso. Não está. E nem precisava ter feito essa dieta maldita.

– Então, agora, tá tudo liberado como antes – sentenciou a outra filha.

– Claro que vamos ter de refazer todos os exames, pra confirmar isso e tal.

– Mas a princípio tá tudo normal – reiterou.

– Sim, a princípio, sim. Por isso que gente trouxe um queijo bem gostoso e o vinho chileno que ela gosta – irrompeu o genro, entrando pela sala com a garrafa já aberta e pegando as taças na cristaleira.

Erguendo o primeiro brinde, a mãe, aliviada, de repente virou a dona da festa. E entre os votos de saúde e vida longa, foram tratar logo de avisar a toda a família, tendo ao fundo o barulho dos cálices de vinho, tilintando como se fossem música.

Passado algum tempo, depois de ter atendido o telefone para falar com as netas e algumas amigas, dona Elvira se prepara pra levantar da cadeira, ajudada pela filha.

– Mas olha, que confusão essa. Desde o começo eu falei que estava ótima. Falei que nem gripe eu pego. Que tenho saúde de ferro. Eu sabia que estava bem, ora. E sabia que os exames tinham de estar bem também, ora pois. Eu disse, eu disse. Mas a verdade é que, nessa casa, ninguém me ouve mesmo! Está comprovado!

E saiu resmungando na direção do banheiro, enquanto todos escondiam o próprio riso.

 

 


Um comentário:

  1. Depois que fiz transplant de rim, eu sou a própria D. Elvira!

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