A mãe já tinha
avisado ao filho, por telefone, que havia mandado a carta, junto com um pacote,
pelos Correios. O rapaz tinha chegado do trabalho e antes de jantar separou a
caixa em cima da mesa, pra ler tudo com calma. Ele tinha ido morar em Salvador
logo assim que se formou, tendo sido estagiário da empresa, com a promessa de
contratação, o que acabou por se cumprir, fazia já uns cinco anos.
Nesse período,
a mãe tinha ido visitá-lo uma única vez. E ele só retornara a Minas Gerais apenas
em um raro momento, por ocasião do sepultamento do pai, seu grande incentivador
e a pessoa que mais se orgulhava da carreira que escolhera.
A mãe dizia na carta: “Não sei o que seria
dessa casa sem a ajuda da Marlene. O armário do seu pai é um túnel do tempo e eu
me surpreendi várias vezes ao encontrar objetos que, por certo, já julgava perdidos
por vários anos. Achei coisas suas da escola, presentes do dia dos pais,
recortes de jornais com matérias de partidas futebol, relógios velhos, canetas
idem, cintos, chaveiros, bonés variados, olha, um saco de lembranças sem fim
aquele armário."
Ele ia lendo e
rindo, conforme recordava de algumas passagens com o pai, inclusive as em que
ajudou a guardar justamente algumas daquelas lembranças.
“Entre as
coisas que encontrei, separei esta, especificamente pra te enviar. Eu nem sabia
que ele tinha guardado. Juro a você. E como envolve uma relação direta entre
vocês dois, não me senti à vontade para me desfazer desse objeto. Com toda a
certeza, você saberá, melhor do que eu, dar o destino adequado para ele. Fique
com Deus e que a paz da nossa mãe Oxum te guarde e te livre de todo o mal.”
O rapaz nem
precisou abrir muito a caixa. Assim que venceu uma das abas da lateral, avistou
um pedaço da camisa do seu querido Atlético Mineiro e desabou em um choro
copioso, apoiando a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.
Chorou toda a
saudade que não havia chorado quando do enterro do velho pai. Depois, entre
soluços, continuou a abrir o pacote e, com cuidado, foi desdobrando a camisa à
procura do nome do seu ídolo, que sabia estar escrito nas costas. Assim que a esticou por completo, enxugou os olhos e
leu em voz alta: Renaldo.
A história que só aqueles três indivíduos conheciam
dava conta de que, desde menino, o filho era doido pra ter uma camisa do time
do coração. A família não tinha dinheiro pra esses luxos e o pai decidiu que
iria juntar uma graninha, aos poucos, para surpreender o filho no aniversário,
justamente no ano em que ele havia passado no exame para a faculdade.
O que era pra
ser uma festa, uma realização, virou decepção e um grande mal-estar. Assim que
viu o nome do jogador grafado errado na camisa – Renaldo e não Reinaldo – o
rapaz se passou e esbravejou com o pai.
Aquilo foi um
rompante. Ele mesmo, poucos dias depois, se deu conta da atitude desproporcional
e ruim e pediu desculpas ao pai e também à mãe. Falou que reconhecia o esforço
que ambos fizeram em prol da sua educação, dos seus estudos, e que, com muita
luta, conseguiram dar as melhores condições para que ele alcançasse a sua tão sonhada
vaga no ensino superior. Por fim, louvou os méritos dos pais por tudo o que
teve na vida.
Ao relembrar esse
passado o rapaz ficou ali parado, na mesa. Pensava na surpresa da mãe ao
encontrar a camisa no armário do pai e que ela, provavelmente, deve ter revivido
tudo aquilo novamente, assim como ele próprio estava fazendo naquele momento. E
ficou curioso pra saber o que a mãe pensava sobre tudo e qual sentimento ela
preservava daqueles dias, passados todos esses anos.
Quando se
falaram por telefone, ambos não conseguiam lembrar que fim tivera a tal camisa.
No meio de todo aquele embaraço, simplesmente a camisa desapareceu e ninguém
jamais a viu. O assunto, por sua vez, jamais voltou à tona. Era uma espécie de
tabu e tampouco o pai o abordava para confidenciar, com a esposa, esse ou
aquele sentimento com o erro que cometeu.
– A única
coisa que eu me arrependo foi não ter usado a camisa que meu pai me deu. Eu fui
covarde. Eu tive vergonha de que todos vissem o nome errado do Reinaldo e eu
teria que dizer que foi meu pai que mandou escrever daquele jeito. Mas ele não
sabia escrever direito. E eu tive vergonha. Isso me deixa muito mal até hoje,
mãe.
– Eu acho que
você deve esquecer isso, filho. Já passou. Seu pai tem muito orgulho de você. Sempre
teve e tem ainda. Se eu fosse dar um conselho pra você, agora que é um homem
formado, um engenheiro importante...
– Ah, mãe,
nada disso. Sou seu filho muito mais que engenheiro. Muito mesmo. Fala.
– É que tudo
isso que você está pensando sobre a camisa, todas essas lembranças, esse
arrependimento em relação à memória do seu pai, tudo isso vai se encaixar
quando você vestir essa camisa. Pode acreditar. Os nossos anjos da guarda, os
nossos guias espirituais estão só esperando pelo seu sinal pra te dar essa
benção, livrar você desses pensamentos aflitivos e, ao final, você vai perceber
que a comunhão com o seu pai jamais se quebrou. Porque ele sempre esteve e
sempre vai estar com você. E você sabe disso, tenho certeza. Fica em Paz. Deus
te abençoe, filho.
– Tchau, mãe.
Deus me abençoou quando me fez seu filho. A sua benção.
Por algumas
noites, naquela semana, o filho sonhou com o pai. Quase não sabia contar uma
sequência, uma cena, não tinha um enredo o sonho, mas sabia que tinha estado
com o pai.
No feriado,
abriu a gaveta e deu de cara com a camisa. Vestiu. Simplesmente. Olhou no
espelho. Estava um pouco apertada. Mas não muito. Dava pra usar.
Saiu com ela
envergada de um sentimento novo. O amigo com o qual marcou de encontrar, de
longe já via o seu sorriso aberto.
– Camisa do Galo?
– Exatamente.
Do maior jogador do Galo e do Brasil.
– Linda a
camisa. Parabéns. É nova, é?
– Não é não.
Meu pai me deu faz uns sete, oito anos. Ele escreveu Renaldo nela e eu tinha
vergonha de usar. Mas agora não tenho vergonha, não. Meu pai não tinha estudo,
não sabia escrever direito. Mas me deu ela com muito esforço e cheio de amor. Então
agora vou usar sempre, em homenagem a ele e a tudo que ele me deu nessa vida.
– Bacana você
usar a camisa. Bacana a história. E parabéns de novo pela camisa. E pelo seu
pai.
– Com a benção
da minha mãe Oxum.
Essa crônica é dedicada ao Tony,
meu amigo de Salvador.
Comemora também os 10 anos desse
Blog, iniciado com o lançamento do livro Antes de Mim, exatamente no dia
22 de novembro de 2013. Esta é a crônica de número 225.
Olá, Anderson! Sou seu leitor mais fiel. E achei ótima esta crônica! Eu estava na final entre Flamengo e Atlético MG, em 1980. Toda vez que o "Renaldo" pegava na bola, a torcida rubro-negra ficava num silêncio sepulcral! Alguns viravam de costas para o campo, para não ver a trajédia que se desenhava. Quando ele corria com a bola, parecia haver cola na chuteira. Nunca a distância era maior do que 30 ou 40 centímetros, um sufoco! Ainda bem que aquele jogo teve um final feliz. Abração!
ResponderExcluirVerdade, Tabacow. Depois do nosso Galinho vem o "Renaldo", um craque de bola. Lembro bem das comemorações dos gols, com o punho fechado acima da cabeça. Agradeço, não só por vc ser o leitor mais fiel, mas pelo incentivo de sempre. Abraço.
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