sábado, 30 de dezembro de 2023

Meu Tesouro


Sempre que meu pai queria se certificar que uma pessoa era mesmo professora, ele perguntava se ela sabia onde nasce o Rio Amazonas. Era a única pergunta que ele fazia quando conhecia alguém que lecionasse. Algumas vezes a gente ficava constrangido, é verdade, dizia que era uma mania dele e depois desconversava. Mas quase sempre a pessoa interrogada levava na esportiva, para nosso alívio.

Saber onde nasce o Rio Amazonas, para ele, era sinal de inteligência, de sapiência. Habitualmente ele trazia esta pergunta no bolso e a usava sempre que a oportunidade surgia.

Até hoje eu fico pensando em como meu pai tinha tantas lembranças do seu tempo de escola. Me surpreendo principalmente quando, além de constatar a sua facilidade de relembrar coisas desses tempos, me dou conta de que ele estudou apenas por quatro anos, ou seja, até a quarta série do antigo primário.

Mesmo ainda adolescente, quando a gente sentava pra falar sobre escola, primeiro já sabíamos que em algum momento ele ia recitar as frases inesquecíveis que apontavam o local da nascente do Rio Amazonas, claro. Mas logo em seguida ele falava dos professores, de passagens ocorridas nas aulas, de dias em que acontecia qualquer coisa diferente no caminho pra escola ou mesmo na volta pra casa. Ele ia falando e a gente ia imaginando a escola, a sala, a turma, os alunos, tudo.

Outra coisa que ele lembrava com bastante clareza e precisão era o seu livro escolar preferido: Meu Tesouro, 4ª Série. Ele estendia as mãos como se o livro estivesse pousado nelas e ia descrevendo os detalhes, que tinha um mapa do Brasil em verde, no lado esquerdo inferior da capa, e que, bem lá no alto, trazia o nome das duas autoras em letras grandes.

– Parece que eu estou vendo o livro aqui na minha frente – dizia meneando a cabeça. Não sei o que foi feito dele. Minha mãe deve ter jogado fora, sei lá. Em pouco tempo eu saí da escola e logo comecei a trabalhar. Aí, nunca mais o vi.

O fato é que de tanto ouvir essas histórias do meu pai, do seu tempo de escola, pouco tempo na verdade, uma vez eu decidi que ia procurar o tal Meu Tesouro 4ª Série. Primeiro pra saber se ele existia mesmo. E depois, quem sabe, pra conferir se algum ainda estava à venda.

Com a ajuda da Regina, que é craque em garimpar coisas na internet, localizamos um sebo que tinha. O livro estava bem acabadinho, surradinho, pois era apenas a 6ª Edição, ou seja, acreditamos ter sido impressa no início da década de 1950, que era um pouco depois do período escolar do meu pai. A nossa preocupação com o período é que, às vezes, a depender das edições, acontecem as revisões e ampliações e, com elas, as mudanças de capa. Para o propósito que a gente queria, era imprescindível que fosse a capa que meu pai conhecia, por razões óbvias. Nosso objetivo era que, ao bater o olho no livro, ele o reconhecesse como a um velho companheiro, um amigo de infância.

Para nossa sorte, a surpresa chegou pertinho do Natal. Perfeito para se transformar no presente que a gente queria. Assim que manuseou o pacote ele foi logo dizendo que fazia tempo que não ganhava um livro de presente. E aquela observação foi a prova de que ele jamais esperaria ter nas mãos o seu livro preferido. A nossa expectativa foi grande até a revelação final, até o último papel de presente ser removido.

Minha mãe foi a primeira a reconhecer o livro e a homenagem. Foi a primeira também a esconder de todos nós os olhos molhados de emoção. Fato é que tivemos todos de segurar o choro quando meu pai abraçou o livro, repetindo o seu título, que lia sem parar, apontando para a capa como se fosse um menino, novamente a caminho da escola.

A cada virada de página ele fazia um comentário e nos mostrava o texto impresso, a começar pelo capítulo do Rio Amazonas, logo no início da partição de Geografia. A gente, que já sabia da sua mania de perguntar o local do nascimento do Rio, só tinha o trabalho de rir um pro outro, confirmando que era só uma questão de tempo até que o Planalto de La Raya fosse mencionado. A seguir ele sublinharia, para o nosso deleite, o complemento da lição geográfica:

– Nos confins meridionais do Peru.

E a gente ria dele e com ele.

Muitas vezes conversamos sobre aquele Seu Tesouro. Uma vez ouvi, com espanto, os nomes de dois professores que, do nada, no meio de outras lembranças, ele mencionou. Eram a dona Ernestina e o seu Gonçalo. Ela de Geografia e ele de Ciências Físicas e Naturais.

Engraçado lembrar como ele mencionava o livro de uma maneira interessante. No meio da frase ele dizia, por exemplo, “Quando menino, eu sempre conferia na pasta se estava levando o Meu Tesouro pra aula”, ou se referindo ao tempo presente: “Vou deixar o Meu Tesouro aqui na prateleira, pra ficar mais à mão quando eu quiser ler”. Ou seja, ao invés de falar livro ele falava “meu tesouro”, dando um sentido que ia além do seu título.

Desde o ano de 2015, o que meu pai tinha como o Seu Tesouro passou a ser o Meu Tesouro. Com a partida do dono legítimo eu meio que herdei a sua preciosa e querida publicação. Ela agora mora bem aqui na minha estante, junto de outros livros que considero também meus tesouros.

Quando meu filho veio me visitar, recentemente, sentado à mesa eu notei que ele olhava com atenção a tal estante, presa à parede. Primeiro ele viu os retratos, muitos retratos. Depois os objetos diversos, de povos diversos. Só então ele começou a ler alguns títulos de livros, reconhecendo o nome de alguns dos seus autores, de quem eu vivo falando e contando causos.

Não se pode precisar a data, mas chegará o dia em que os meus tesouros, os meus e o do meu pai, novamente mudarão de mãos.

Que meu pai abençoe também essa mudança.

Um Feliz Ano de 2024 para todos nós.

 



5 comentários:

  1. Feliz 2024 para vocês!!! Que vocês possam encontrar e reencontrar muitos tesouros, nas mais diversas formas, sejam livros, pessoas, memórias, momentos... Sejam felizes, meus amados! Saúde e paz!!!

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  2. Ih, esqueci de mudar para minha persona e saiu anônimo... Da tiazinha aqui de Saquarema! Beijos!!!

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  3. Que assim seja para todos nós. Meu Sogrinhos deve estar um bocado emocionado... assim como eu!! Beijo carinhoso pra vocês 💋 Titi

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  4. Essa crônica é muito bonita. Lembro de como a minha mãe, que estudou até o 5° ano primário, guardava na memória tudo que aprendeu na escola, como se o aprendizado fosse o tesouro e a memória o baú. Eles viveram um tempo em que a escola era um acontecimento, amavam demais a escola. A homenagem que vocês fizeram para seu pai é muito doce. Que essa sensibilidade se espalhe pelo mundo. Beijos e feliz ano novo (daqui do velho mundo!)

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  5. Querido Anderson, voce mismo es un tesoro, que despierta nuestra mente y nuestra emoción en cada crónica que nos regalas. Este es un presente que adoro! Siempre gracias, buen año 2024

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