sábado, 30 de março de 2024

O Proxeneta

 

O neto estava no trabalho quando sua mãe ligou falando do avô. O velho tinha sofrido uma queda em casa e estava no hospital. Era coisa leve, mas como ele era mais próximo, seu parceiraço, largou tudo e foi encontrar com a mãe no pronto socorro.

Não era nada grave, mas sabe como é, “queda de idoso é sempre bom fazer todos os exames e não deixar dúvidas acerca de nada”, disse o médico ao entrar no quarto levando uma prancheta cheia de formulários. Diante da concordância de todos, menos do avô, claro, combinaram as checagens para o dia seguinte e o neto se prontificou a ficar de acompanhante naquela noite.

Viram o futebol na tevê e no intervalo o rapaz desceu pra buscar um sonho na padaria da esquina, doce pelo qual o avô era louco e quando o neto perguntou se ele queria alguma coisa lá de fora, ele respondeu de pronto “um sonho de creme”. “Nem deixou a bola quicar”, foi como contaria mais tarde à mãe, pelo telefone.

Subiu pelo elevador escondendo o pequeno saco de papel e entrou todo faceiro no quarto como se levasse um saco de dinheiro, uma cachaça ou algo fora da lei. O avô sorriu e elogiou a astúcia do rapaz, apontando que logo começaria o segundo tempo do jogo.

– Me conta aí, vô. Qual foi o motivo da queda dessa vez?

– Ah, bobagem, filho.

– Sei. Como sempre. Aliás essas bobagens estão ficando frequentes, né vô?

– Eu abri a geladeira e não reparei uma cadeira atrás de mim. Ela me imprensou na porta e eu desequilibrei. Nada demais.

Durante a noite o neto ficou olhando o avô dormir e foram surgindo várias ideias no sentido de tentar evitar aquelas quedas cada vez mais constantes. Desde que passou a morar sozinho aumentaram as suas ranzinzices e ele jamais aceitou ajuda de alguém. Não queria cuidadora, nem enfermeiro, nem cozinheira, nem nada. Só mesmo a Janice, que ia lá fazer uma faxina durante a semana, molhava as plantas, botava umas roupas na máquina e mesmo assim ele dizia que não precisava, que se virava sozinho.

Então, quando o rapaz saiu do hospital e foi pra casa descansar, lembrou das coisas que havia pensado de noite e passou na loja de ferragens. Escolheu o produto, conversou com o vendedor e depois de tomar um bom banho, foi na casa do avô instalar a surpresa.

Na manhã seguinte a irmã também foi encontrar a mãe na saída do hospital e juntos levaram o vô pra casa, já recuperado e sem qualquer indicação de algo sério, depois dos exames e radiografias. No trajeto, após muito argumento, o avô aquiesceu aos pedidos e algumas providências foram tomadas, eu diria executadas, pelos três familiares.

Tapetes nem pensar. Móveis, quanto mais ficassem fora do caminho era o ideal, sem as famosas quinas que sempre dão um jeito de nos alcançar. Nada no alto dos armários ou em locais que exigissem subir em bancos ou escadas. As plantas foram reduzidas a cinco, e olhe lá, ficando somente as suculentas, pois que não precisavam de água constantemente. Além disso, finalmente o velho concordou com as barras de segurança instaladas no banheiro, inclusive dentro do box, e também no quarto, perto da cama.

Nas despedidas, com as promessas de voltar no dia seguinte, mesmo com a insistência do avô de que não se preocupassem, pois ele estava ótimo, o neto foi até a cozinha apresentar a sua grande obra, a magnífica instalação que ele havia feito no dia anterior.

Entrou na cozinha e apontou pra cima, no exato momento em que a lâmpada se acendeu magicamente. Depois saiu, ficou quietinho e ela se apagou. Aí tornou a entrar e...

– Viu, vô. A lâmpada vai acender toda vez que o senhor entrar na cozinha. É uma célula que se ativa conforme o movimento. Então, o senhor vai entrar na cozinha, ela vai acender automaticamente e quando sair vai apagar, do mesmo jeito. Que tal? Não é o máximo?

– Olha, até que eu gostei. Assim não vou ter de ir até o interruptor acender a luz. Boa ideia. Gostei.

– Depois, conforme o uso a gente pode botar uma igual no banheiro. Acho que vai facilitar demais.

– Pelo menos não vai ter mais cadeira entrando na frente da geladeira pra te derrubar – disse a neta, levantando a sobrancelha.

– Olha só, vô. De dia não dá pra sentir muito a eficiência dela porque está claro. Mas de noite o senhor vai ver como é útil, como faz diferença ao transitar pela casa.

Depois que todos saíram o velho foi andar por toda a casa, conferindo de novo todas as novidades. As barras, os espaços sem os tapetes e os lugares mais amplos, agora sem os móveis atravancando. Tudo em ordem, tudo certo, tudo nos conformes, perfeito: a noite é uma criança com sono.

Pois bastou amanhecer e uma nova página se iniciou nessa nossa história.

O neto estava no trabalho quando sua mãe ligou falando do avô. Dessa vez, porém – e não se trata de uma reles repetição frasal –, o pedido era que ele fosse até lá o quanto antes. Não era queda, nem acidente, mas algo urgente, o que fez o coitado do neto sair correndo de novo, dessa vez pra casa do avô.

Um tanto abatido, aparentando não ter dormido uma noite tranquila, o velho mesmo assim lançou um sorriso ladino, meneou a cabeça e começou:

– Tu não sabes o monstro que é essa luz automática, filho! Se eu acreditasse em fantasmas já teria saído correndo daqui no meio da noite mesmo. Imagine, eu bem dormindo e puft, a assombração acendia a droga da luz. Dava um tempo e bum, outra vez a cozinha estava toda iluminada.

– Mas...

– Espera. Aí, uma hora eu fui andando pra beber água e antes que eu chegasse na porta a bicha já acendeu de novo e me deu o maior susto. Dessa vez assustou a mim e também ao coitado do Proxeneta, que saiu corrido com o rabo entre as pernas, miando de medo.

– Proxeneta? Que Proxeneta, vô?

– Acho que ele, enfim, se assustou com o meu susto. O Proxeneta é o meu gato, que eu ganhei do Leocádio, depois que a mulher dele, a Neide, morreu.

– Peraí, vô. Agora eu realmente não tô entendendo patavina. Provavelmente a luz acendeu por causa do bichano. Ela tem um sensor de movimento e, claro, quando o gato passava, ela acendia.

– Sim, o problema é que isso aconteceu várias vezes no meio da noite. Agora me diz quem consegue dormir assim? – disse já rindo, batendo a palma da mão na perna.

– Tá, mas eu não sabia nada de gato, vô. Quando eu vim botar a lâmpada não tinha gato nenhum aqui.

– Gato é um bicho arisco assim mesmo. E sendo ele novo nessa casa, já que foi o Leocádio que trouxe, deve ter se escondido de você, com medo. Normal.

– Vô, que confusão. Então o que rolou por aqui foi realmente uma noite fantasmagórica! – sentenciou já caindo na risada também, só pensando nos sustos que o avô passou na madrugada.

– Pois é. Noite do capeta. O capeta solto na minha cozinha. Acendendo a luz. Coitado do Proxeneta. Deve ter se arrependido de vir morar aqui.

– Pô, mas também que nome horrível escolheram. Minha nossa!

– Essa também é uma história boa de contar: o Leocádio estava lendo um livro, do Machado de Assis, eu acho. Aí deu de cara com essa palavra, gostou dela e na mesma época apareceu o gato. Quando ele descobriu o significado o gato já estava batizado pelo pai, o filho e o espírito felino, ou espírito machadiano.

O que se sabe é que ficaram ali, rindo e contando histórias, o neto e o avô, por muito tempo ainda, durante quase toda aquela manhã, quando finalmente o rapaz se deteve na cozinha, subiu na escada e trocou a lâmpada assombrada por uma comum. Ao voltar pra sala surpreendeu o idoso, que cochilava pesado afundado na sua cadeira.

– Vem pra cama, vô. Vem comigo. O senhor não dormiu nada de noite. Vem descansar direito. Eu vou voltar pro trabalho e de noite volto aqui pra gente ver o jogo do Mengão. Vou pedir uma pizza, pra gente celebrar o fim das assombrações e ainda te trago um terço benzido pelo Machado de Assis.

O neto deixou o avô descansando no quarto e saiu com pés de pluma. Da porta ainda avistou o bichano magrelo escondido debaixo da cadeira, só espiando.

– Proxeneta! O capeta que assombrou o meu avô. E eu achando que já tinha visto de tudo nessa vida!

 


sexta-feira, 15 de março de 2024

O Jacaré

 

Contam que ele chamava as pessoas de jacaré dentro da sala de cirurgia. As próprias instrumentadoras, que no início achavam estranho e até ficavam incomodadas – justamente, deve-se dizer – depois, com o tempo, se divertiam com as reações das mais novas, afinal estavam em pleno procedimento médico de alto risco e grande responsabilidade.

Todo aquele paramento asséptico, a severidade canônica ali ritualizada em cada etapa da intervenção incidente e, de repente, do nada, o chefe supremo da equipe solta uma frase bisonha:

– Ô jacaré, me passa o bisturi elétrico.

Eu nunca presenciei esse fato estando numa sala de cirurgia, naturalmente. Mas já ouvi relatos de pacientes e atendentes, enfermeiros e outros médicos inclusive. Uma parte achava apenas curioso. Outra encarava como uma prova de que ele estava tranquilo, brincando com os colegas e toda a equipe, no meio de algo tão técnico e cuja precisão necessitava de todo o conhecimento e atenção.

Contudo, a versão que pra mim ficou como a mais provável é a de que ele, simplesmente, não conseguia lembrar o nome das pessoas e, assim, chamando de jacaré, tornava o que poderia ser uma situação embaraçosa em uma simples troça, algo que não ofenderia, portanto.

Era comum, ao final dos procedimentos, ver toda a equipe cirúrgica sair da sala aos risos, comentando a reação de um e de outro colaborador e lembrando as frases famosas do tal médico durante a operação.

Quando eu o conheci, através de um grande amigo, também médico, já sabia que meu nome seria esquecido de pronto e que, logo, eu também, dada a oportunidade e necessidade, seria mais um jacaré, ou melhor, um dos seus jacarés. Confesso que fiquei apreensivo até que esse momento chegasse e, no íntimo, já previa alguma estranheza ou, provavelmente, uma sonora gargalhada como reação incontida.

O tempo passou e um belo dia eu fui convidado, entre outros amigos do médico, para um passeio no seu barco. Marcado o encontro, todos na marina fomos instados a seguir os procedimentos de bordo, como tirar os calçados e ouvir atentamente as instruções.

Era um veleiro não muito grande. Médio eu diria, a partir do meu conhecimento apenas empírico sobre embarcações. O seu mestre auxiliar, uma espécie de capitão, que comandava tudo no barco, deu os primeiros treinamentos, com ênfase na atenção à retranca, uma peça que parece um mastro só que fica na horizontal. É que a danada está sempre mudando de lugar, conforme o vento e a direção da embarcação e, por isso, qualquer encontro com a sua trajetória pode causar, digamos, problemas. O menor deles era jogar um de nós dentro d’água, sem cerimônia e sem perdão. Por outro lado, considerando o peso e a velocidade do tal equipamento, o estrago poderia também nos levar direto para uma mesa de cirurgia, talvez até com alguns conhecidos jacarés em volta.

O barco zarpou e, pra completar, o dia estava lindo. Pouco vento, a embarcação singrava – singrar me lembra o Beto Guedes – facilmente, beirando o litoral e tudo aquilo me remetia aos melhores dias em que eu morei na Praia do Barão e convivia com mares e marés em barcos diversos, desde os grandes, de pesca de arrasto, até os menores, à vela, sem esquecer os que eram dotados de remos e forquilhas, nos quais a gurizada se estapeava pra pegar justamente o lugar do remador.

Ali, no silêncio daquela manhã os barulhos vinham somente das pequenas ondas que alisavam furtivas as laterais do barco e do fácil cortar d’água que a sua proa produzia, lenta e delicadamente. Quando fazíamos curvas, todos se movimentavam, conforme as instruções do mestre, e quem olhasse de fora veria algo como um balé, ensaiadinho. À primeira vista, por certo, jamais alguém poderia perceber a inaptidão daquela tripulação, reunida brejeiramente, sem qualquer intenção olímpica.

Foi então que começou a soprar um vento mais forte, desses de fim de tarde. A gente baixou uma parte da vela, pra diminuir o arrasto e ok, tudo seguia normal. A cervejinha estava boa, uns canapés, uma água geladinha e ali adiante a gente vai contornar aquela boia, anunciou o chefe da tripulação, apontando pra frente.

A princípio, todos ficaram de olho na tal retranca, a fatídica, a assassina, trituradora de crânios. Ela veio e foi, depois voltou e, quando estávamos quase de novo em linha reta o barco deu uma tombada leve à esquerda – faz o “L” aí, jacaré. Nesse momento pintou, sinistra, uma instabilidade. Todo mundo se olhando, o mestre no timão só medindo o giro do barco e, de repente, ele se vira pra mim e fala em tom um tanto incisivo:

– Afoga! Afoga a estibordo! Afoga aí, rápido.

– Afoga, jacaré! Afoga. Afoga logo, jacaré! – gritou também o médico.

Uau. Era comigo a gritaria e eu nem tive tempo de dizer que não estava entendendo nadica de nada. Era pra afogar quem, cacete? Alguém, por favor, poderia falar a minha língua? Que bosta que é afogar a estibordo?

Instintivamente, como sei lá o quê, que agora me faltam até as palavras comparativas, eu peguei uma corda que estava esticada na minha frente e fui levando pra esquerda e pra direita, alternando, até que alguém me confirmasse o lado certo que ela deveria ficar.

– Isso, jacaré. Boa, jacaré. Fez certinho. Beleza pura. Já pode até fazer parte da tripulação...

Era só isso? Era só ficar levando a corda pra lá e pra cá? Mas eu nem fiz nada! Ok, até vou agradecer.

E todos levantaram os seus copos na minha direção, celebrando a manobra estupenda que eu tinha feito. Eu agradeci e ao mesmo tempo disfarcei o “ufa” que me escapou da boca!

Algumas vezes, poucas vezes, eu reencontrei o médico inusitado. Em uma das ocasiões ele me saudou me chamando de jacaré marinheiro. Bateu nas minhas costas e me levou a relembrar aquele dia no seu barco.

Me faltou coragem, mas a minha vontade era esclarecer aquele episódio de uma vez por todas.

Pois até hoje eu não sei que raios significa afogar a estibordo!

E antes que eu me esqueça: jacaré é o...