O neto estava
no trabalho quando sua mãe ligou falando do avô. O velho tinha sofrido uma
queda em casa e estava no hospital. Era coisa leve, mas como ele era mais próximo,
seu parceiraço, largou tudo e foi encontrar com a mãe no pronto socorro.
Não era nada
grave, mas sabe como é, “queda de idoso é sempre bom fazer todos os exames e
não deixar dúvidas acerca de nada”, disse o médico ao entrar no quarto levando
uma prancheta cheia de formulários. Diante da concordância de todos, menos do
avô, claro, combinaram as checagens para o dia seguinte e o neto se prontificou
a ficar de acompanhante naquela noite.
Viram o
futebol na tevê e no intervalo o rapaz desceu pra buscar um sonho na padaria da
esquina, doce pelo qual o avô era louco e quando o neto perguntou se ele queria
alguma coisa lá de fora, ele respondeu de pronto “um sonho de creme”. “Nem
deixou a bola quicar”, foi como contaria mais tarde à mãe, pelo telefone.
Subiu pelo
elevador escondendo o pequeno saco de papel e entrou todo faceiro no quarto
como se levasse um saco de dinheiro, uma cachaça ou algo fora da lei. O avô
sorriu e elogiou a astúcia do rapaz, apontando que logo começaria o segundo
tempo do jogo.
– Me conta aí,
vô. Qual foi o motivo da queda dessa vez?
– Ah, bobagem,
filho.
– Sei. Como
sempre. Aliás essas bobagens estão ficando frequentes, né vô?
– Eu abri a
geladeira e não reparei uma cadeira atrás de mim. Ela me imprensou na porta e
eu desequilibrei. Nada demais.
Durante a
noite o neto ficou olhando o avô dormir e foram surgindo várias ideias no
sentido de tentar evitar aquelas quedas cada vez mais constantes. Desde que
passou a morar sozinho aumentaram as suas ranzinzices e ele jamais aceitou
ajuda de alguém. Não queria cuidadora, nem enfermeiro, nem cozinheira, nem
nada. Só mesmo a Janice, que ia lá fazer uma faxina durante a semana, molhava
as plantas, botava umas roupas na máquina e mesmo assim ele dizia que não
precisava, que se virava sozinho.
Então, quando
o rapaz saiu do hospital e foi pra casa descansar, lembrou das coisas que havia
pensado de noite e passou na loja de ferragens. Escolheu o produto, conversou
com o vendedor e depois de tomar um bom banho, foi na casa do avô instalar a
surpresa.
Na manhã
seguinte a irmã também foi encontrar a mãe na saída do hospital e juntos
levaram o vô pra casa, já recuperado e sem qualquer indicação de algo sério,
depois dos exames e radiografias. No trajeto, após muito argumento, o avô
aquiesceu aos pedidos e algumas providências foram tomadas, eu diria
executadas, pelos três familiares.
Tapetes nem
pensar. Móveis, quanto mais ficassem fora do caminho era o ideal, sem as
famosas quinas que sempre dão um jeito de nos alcançar. Nada no alto dos
armários ou em locais que exigissem subir em bancos ou escadas. As plantas
foram reduzidas a cinco, e olhe lá, ficando somente as suculentas, pois que não
precisavam de água constantemente. Além disso, finalmente o velho concordou com
as barras de segurança instaladas no banheiro, inclusive dentro do box, e também
no quarto, perto da cama.
Nas
despedidas, com as promessas de voltar no dia seguinte, mesmo com a insistência
do avô de que não se preocupassem, pois ele estava ótimo, o neto foi até a
cozinha apresentar a sua grande obra, a magnífica instalação que ele havia
feito no dia anterior.
Entrou na
cozinha e apontou pra cima, no exato momento em que a lâmpada se acendeu
magicamente. Depois saiu, ficou quietinho e ela se apagou. Aí tornou a entrar
e...
– Viu, vô. A
lâmpada vai acender toda vez que o senhor entrar na cozinha. É uma célula que
se ativa conforme o movimento. Então, o senhor vai entrar na cozinha, ela vai
acender automaticamente e quando sair vai apagar, do mesmo jeito. Que tal? Não
é o máximo?
– Olha, até
que eu gostei. Assim não vou ter de ir até o interruptor acender a luz. Boa
ideia. Gostei.
– Depois,
conforme o uso a gente pode botar uma igual no banheiro. Acho que vai facilitar
demais.
– Pelo menos
não vai ter mais cadeira entrando na frente da geladeira pra te derrubar –
disse a neta, levantando a sobrancelha.
– Olha só, vô.
De dia não dá pra sentir muito a eficiência dela porque está claro. Mas de
noite o senhor vai ver como é útil, como faz diferença ao transitar pela casa.
Depois que
todos saíram o velho foi andar por toda a casa, conferindo de novo todas as
novidades. As barras, os espaços sem os tapetes e os lugares mais amplos, agora
sem os móveis atravancando. Tudo em ordem, tudo certo, tudo nos conformes, perfeito:
a noite é uma criança com sono.
Pois bastou
amanhecer e uma nova página se iniciou nessa nossa história.
O neto estava
no trabalho quando sua mãe ligou falando do avô. Dessa vez, porém – e não se
trata de uma reles repetição frasal –, o pedido era que ele fosse até lá o
quanto antes. Não era queda, nem acidente, mas algo urgente, o que fez o
coitado do neto sair correndo de novo, dessa vez pra casa do avô.
Um tanto
abatido, aparentando não ter dormido uma noite tranquila, o velho mesmo assim
lançou um sorriso ladino, meneou a cabeça e começou:
– Tu não sabes
o monstro que é essa luz automática, filho! Se eu acreditasse em fantasmas já
teria saído correndo daqui no meio da noite mesmo. Imagine, eu bem dormindo e
puft, a assombração acendia a droga da luz. Dava um tempo e bum, outra vez a
cozinha estava toda iluminada.
– Mas...
– Espera. Aí,
uma hora eu fui andando pra beber água e antes que eu chegasse na porta a bicha
já acendeu de novo e me deu o maior susto. Dessa vez assustou a mim e também ao
coitado do Proxeneta, que saiu corrido com o rabo entre as pernas, miando de
medo.
– Proxeneta?
Que Proxeneta, vô?
– Acho que ele,
enfim, se assustou com o meu susto. O Proxeneta é o meu gato, que eu ganhei do
Leocádio, depois que a mulher dele, a Neide, morreu.
– Peraí, vô.
Agora eu realmente não tô entendendo patavina. Provavelmente a luz acendeu por
causa do bichano. Ela tem um sensor de movimento e, claro, quando o gato passava,
ela acendia.
– Sim, o problema
é que isso aconteceu várias vezes no meio da noite. Agora me diz quem consegue
dormir assim? – disse já rindo, batendo a palma da mão na perna.
– Tá, mas eu
não sabia nada de gato, vô. Quando eu vim botar a lâmpada não tinha gato nenhum
aqui.
– Gato é um
bicho arisco assim mesmo. E sendo ele novo nessa casa, já que foi o Leocádio
que trouxe, deve ter se escondido de você, com medo. Normal.
– Vô, que
confusão. Então o que rolou por aqui foi realmente uma noite fantasmagórica! – sentenciou
já caindo na risada também, só pensando nos sustos que o avô passou na
madrugada.
– Pois é.
Noite do capeta. O capeta solto na minha cozinha. Acendendo a luz. Coitado do
Proxeneta. Deve ter se arrependido de vir morar aqui.
– Pô, mas também
que nome horrível escolheram. Minha nossa!
– Essa também
é uma história boa de contar: o Leocádio estava lendo um livro, do Machado de
Assis, eu acho. Aí deu de cara com essa palavra, gostou dela e na mesma época
apareceu o gato. Quando ele descobriu o significado o gato já estava batizado
pelo pai, o filho e o espírito felino, ou espírito machadiano.
O que se sabe
é que ficaram ali, rindo e contando histórias, o neto e o avô, por muito tempo
ainda, durante quase toda aquela manhã, quando finalmente o rapaz se deteve na
cozinha, subiu na escada e trocou a lâmpada assombrada por uma comum. Ao voltar
pra sala surpreendeu o idoso, que cochilava pesado afundado na sua cadeira.
– Vem pra
cama, vô. Vem comigo. O senhor não dormiu nada de noite. Vem descansar direito.
Eu vou voltar pro trabalho e de noite volto aqui pra gente ver o jogo do Mengão.
Vou pedir uma pizza, pra gente celebrar o fim das assombrações e ainda te trago
um terço benzido pelo Machado de Assis.
O neto deixou
o avô descansando no quarto e saiu com pés de pluma. Da porta ainda avistou o
bichano magrelo escondido debaixo da cadeira, só espiando.
– Proxeneta! O
capeta que assombrou o meu avô. E eu achando que já tinha visto de tudo nessa
vida!
que querido esse neto!
ResponderExcluirtexto bonito, e real.
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