Contam que ele
chamava as pessoas de jacaré dentro da sala de cirurgia. As próprias
instrumentadoras, que no início achavam estranho e até ficavam incomodadas –
justamente, deve-se dizer – depois, com o tempo, se divertiam com as reações
das mais novas, afinal estavam em pleno procedimento médico de alto risco e grande
responsabilidade.
Todo aquele
paramento asséptico, a severidade canônica ali ritualizada em cada etapa da
intervenção incidente e, de repente, do nada, o chefe supremo da equipe solta
uma frase bisonha:
– Ô jacaré, me
passa o bisturi elétrico.
Eu nunca
presenciei esse fato estando numa sala de cirurgia, naturalmente. Mas já ouvi
relatos de pacientes e atendentes, enfermeiros e outros médicos inclusive. Uma
parte achava apenas curioso. Outra encarava como uma prova de que ele estava
tranquilo, brincando com os colegas e toda a equipe, no meio de algo tão
técnico e cuja precisão necessitava de todo o conhecimento e atenção.
Contudo, a
versão que pra mim ficou como a mais provável é a de que ele, simplesmente, não
conseguia lembrar o nome das pessoas e, assim, chamando de jacaré, tornava o
que poderia ser uma situação embaraçosa em uma simples troça, algo que não ofenderia,
portanto.
Era comum, ao
final dos procedimentos, ver toda a equipe cirúrgica sair da sala aos risos,
comentando a reação de um e de outro colaborador e lembrando as frases famosas
do tal médico durante a operação.
Quando eu o
conheci, através de um grande amigo, também médico, já sabia que meu nome seria
esquecido de pronto e que, logo, eu também, dada a oportunidade e necessidade,
seria mais um jacaré, ou melhor, um dos seus jacarés. Confesso que fiquei
apreensivo até que esse momento chegasse e, no íntimo, já previa alguma
estranheza ou, provavelmente, uma sonora gargalhada como reação incontida.
O tempo passou
e um belo dia eu fui convidado, entre outros amigos do médico, para um passeio
no seu barco. Marcado o encontro, todos na marina fomos instados a seguir os
procedimentos de bordo, como tirar os calçados e ouvir atentamente as instruções.
Era um veleiro
não muito grande. Médio eu diria, a partir do meu conhecimento apenas empírico sobre
embarcações. O seu mestre auxiliar, uma espécie de capitão, que comandava tudo
no barco, deu os primeiros treinamentos, com ênfase na atenção à retranca, uma
peça que parece um mastro só que fica na horizontal. É que a danada está sempre
mudando de lugar, conforme o vento e a direção da embarcação e, por isso,
qualquer encontro com a sua trajetória pode causar, digamos, problemas. O menor
deles era jogar um de nós dentro d’água, sem cerimônia e sem perdão. Por outro
lado, considerando o peso e a velocidade do tal equipamento, o estrago poderia também
nos levar direto para uma mesa de cirurgia, talvez até com alguns conhecidos jacarés
em volta.
O barco zarpou
e, pra completar, o dia estava lindo. Pouco vento, a embarcação singrava – singrar
me lembra o Beto Guedes – facilmente, beirando o litoral e tudo aquilo me remetia
aos melhores dias em que eu morei na Praia do Barão e convivia com mares e
marés em barcos diversos, desde os grandes, de pesca de arrasto, até os menores,
à vela, sem esquecer os que eram dotados de remos e forquilhas, nos quais a
gurizada se estapeava pra pegar justamente o lugar do remador.
Ali, no
silêncio daquela manhã os barulhos vinham somente das pequenas ondas que alisavam
furtivas as laterais do barco e do fácil cortar d’água que a sua proa produzia,
lenta e delicadamente. Quando fazíamos curvas, todos se movimentavam, conforme
as instruções do mestre, e quem olhasse de fora veria algo como um balé,
ensaiadinho. À primeira vista, por certo, jamais alguém poderia perceber a
inaptidão daquela tripulação, reunida brejeiramente, sem qualquer intenção
olímpica.
Foi então que
começou a soprar um vento mais forte, desses de fim de tarde. A gente baixou
uma parte da vela, pra diminuir o arrasto e ok, tudo seguia normal. A
cervejinha estava boa, uns canapés, uma água geladinha e ali adiante a gente
vai contornar aquela boia, anunciou o chefe da tripulação, apontando pra
frente.
A princípio,
todos ficaram de olho na tal retranca, a fatídica, a assassina, trituradora de
crânios. Ela veio e foi, depois voltou e, quando estávamos quase de novo em
linha reta o barco deu uma tombada leve à esquerda – faz o “L” aí, jacaré.
Nesse momento pintou, sinistra, uma instabilidade. Todo mundo se olhando, o
mestre no timão só medindo o giro do barco e, de repente, ele se vira pra mim e
fala em tom um tanto incisivo:
– Afoga! Afoga
a estibordo! Afoga aí, rápido.
– Afoga,
jacaré! Afoga. Afoga logo, jacaré! – gritou também o médico.
Uau. Era
comigo a gritaria e eu nem tive tempo de dizer que não estava entendendo nadica
de nada. Era pra afogar quem, cacete? Alguém, por favor, poderia falar a minha
língua? Que bosta que é afogar a estibordo?
Instintivamente,
como sei lá o quê, que agora me faltam até as palavras comparativas, eu peguei
uma corda que estava esticada na minha frente e fui levando pra esquerda e pra
direita, alternando, até que alguém me confirmasse o lado certo que ela deveria
ficar.
– Isso,
jacaré. Boa, jacaré. Fez certinho. Beleza pura. Já pode até fazer parte da
tripulação...
Era só isso?
Era só ficar levando a corda pra lá e pra cá? Mas eu nem fiz nada! Ok, até vou
agradecer.
E todos
levantaram os seus copos na minha direção, celebrando a manobra estupenda que
eu tinha feito. Eu agradeci e ao mesmo tempo disfarcei o “ufa” que me escapou
da boca!
Algumas vezes,
poucas vezes, eu reencontrei o médico inusitado. Em uma das ocasiões ele me
saudou me chamando de jacaré marinheiro. Bateu nas minhas costas e me levou a
relembrar aquele dia no seu barco.
Me faltou
coragem, mas a minha vontade era esclarecer aquele episódio de uma vez por
todas.
Pois até hoje
eu não sei que raios significa afogar a estibordo!
E antes que eu
me esqueça: jacaré é o...
Nenhum comentário:
Postar um comentário