sexta-feira, 31 de maio de 2024

O Pijama

 

Bianca era uma adolescente que não dava trabalho à mãe. Muito quieta, estudiosa, a menina gostava mesmo era de ficar em casa nos finais de semana e procurava nos canais e nos aplicativos da tevê, os filmes que queria assistir.

A sala de casa mais parecia um quarto, onde as pessoas ficavam de pijama até bem tarde e estendiam o café da manhã desde a cozinha até o sofá, tudo na maior tranquilidade. Principalmente a filha mais nova, essa era a que mais resistia a trocar o pijama pra uma outra roupa qualquer. Não foi à toa que a mãe lhe presenteou com um enorme pijama de zebrinha, todo de tecido atoalhado, com mangas e pernas compridas.

A única preocupação da Bianca era que fosse feita alguma foto sua com o tal pijama. Era lindo, ok. Ela adorava, ok. Mas daí a cair nas mãos e nos olhos das amigas, já era algo que ela tinha uma grande vergonha e por isso cuidava pra que sua imagem vestida de zebra não caísse em mãos alheias. A família entendia com certo exagero toda aquela preocupação da adolescente, pelo simples fato de que o pijama ficava bem bacana nela. Enfim, era a sua vontade. Fazer o quê?

A prima, que morava do outro lado da cidade e, de vez em quando, vinha passar os fins de semana com a tia, era a melhor amiga da pequena Bianca. As duas tinham um gosto cinematográfico parecido e dividiam a pesquisa para programar a maioria dos títulos que assistiam. Além disso, ficavam indicando filmes, diretores e atores, uma pra outra, numa verdadeira garimpagem fílmica.

Naquele dia, logo depois do almoço, a mãe entrou na sala convocando a filha:

– Eu vou ali no ponto de ônibus, buscar a Clô. Ela acabou de ligar dizendo que está chegando. A Bibi quer ir comigo?

– Ai, mãe, eu até quero, mas estou de pijama.

– O que que tem? É pertinho e você vai ficar dentro do carro!

– Será?

– Claro, ninguém vai te ver de zebrinha. Vamos logo, anda.

Interessante foi que, no caminho, a menina tinha a sensação de que as pessoas lá fora conseguiam vê-la dentro do carro. Ela ria, nervosa, mas a mãe fazia piada pra depois jurar que, com o vidro escuro, não dava pra ver nada. Com certeza.

Assim que entrou no veículo, a Clô largou a mochila no banco de trás e ficou de lado para a motorista, de modo que pudesse conversar melhor com a prima. No carro parecia haver uma competição tácita de quem era a mais tagarela. As duas falavam sem respirar, de tanto que emendavam um assunto no outro. Enquanto isso, a mãe tentava uma brecha pra avisar que ia dar uma paradinha no mercadinho pra comprar pão e outras coisas, guloseimas, bolos e doces, na maioria.

Quando estacionou o carro na calçada, em frente ao mercado, a filha meio que surtou:

– Ah, mãe, vai parar aqui? Olha como eu estou? Com esse pijama. Vamos direto pra casa e depois você vem comprar as coisas!

– Ai, filha, é rapidinho. Fiquem as duas aqui dentro do carro que não vai ter problema algum.

– Puxa, se soubesse disso não tinha vindo. Olha o mico que eu estou?

– Que nada, Bi, a prima tá é muito chique com essa zebrinha. Relaxa.

A mãe sumiu dentro do mercadinho e as meninas ali no carro, contando a história da humanidade, de tanto assunto que tinham. Não se sabe quanto tempo depois, a mãe surgiu na calçada com algumas sacolas e a sobrinha saiu pra ajudar.

Quando estava tudo devidamente acondicionado na mala, no que a mãe virou a chave pra ligar o carro, puff, o motor não ligou. Tentou mais uma vez, nada. Foi só o barulhinho seco da ignição que falhava sem piedade. A menina disse “não”, no banco de trás. A prima disse “calma”, no banco da frente. E a mãe motorista disse “pultaquilparil”, socando o volante.

– Eu sabia que ia dar merda. Era só eu botar os pés fora de casa com essa zebrinha do capeta, que isso ia acontecer. E agora, mãe? O que a gente faz?

A mãe saiu sem responder. Entrou no mercado de novo, apressada, e voltou com o seu Jônatas, que trabalhava ali. O homem ouviu com atenção o barulho da ignição sufocada e sentenciou:

– É bateria.

– Como assim, seu Jônatas? O carro é novo? A bateria é nova?

– Essas coisas acontecem. Pode ter alguma perda de energia por algum equipamento funcionando mal. Vamos ver se conseguimos fazer um complemento de carga, de outra bateria para a sua. Pelo menos vai dar pra senhora chegar em casa.

– Estou com duas meninas no carro, como o senhor vê. Elas precisam sair?

– Não. Precisa não.

Aliviadas por não terem que sair do carro, as duas viram o homem pegar um fio extenso e começar a falar com algumas pessoas por perto, apontando pro carro enguiçado e fazendo sinais que remetiam à tal carga que devia ser dada na bateria

Nesse momento, uma van enorme parou ao lado delas. Quando o motorista saiu junto com o filho, as duas meninas tiveram um susto.

– Olha, não é o Guilherme ali naquela van?

– Minha nossa. É o Gui e o pai dele. Vou me jogar atrás do banco. No chão eles não vão me ver.

– Com esses vidros escuros, sem chance. Não pira, Bibi.

De repente, a mãe abre a porta do carro, junto com o seu Jônatas e anuncia:

– Olha filha, vamos fazer uma carga na bateria. A gente estava procurando um outro carro pra dar a carga e olha quem apareceu, o querido do Guilherme, seu amiguinho da escola e o pai dele. Viu que sorte a nossa?

– Mãe, eu estou vestida de zebra, lembra? Como assim o Gui e o pai dele?

– Ah, não vai ter jeito. A gente precisa da ajuda deles pra conseguir ao menos levar o carro até em casa.

– Mas, mãe...

No momento em que abriram o capô dos dois carros e foram identificar as baterias, os polos e os conectores dos fios, a mãe gritou lá de fora:

– Bibi, passa pro banco da frente pra monitorar o painel pra mim. Depois vou te pedir pra virar a chave, tá?

– Ô mãe, que Bibi? Que Bibi, mãe? Não me chama de Bibi não, por favor!

A mãe nem ouviu, ocupada que estava em dar cabo àquela situação.

Ligado o motor da van, agora era só dar a partida no carro enguiçado e a bateria ia carregar. Da primeira vez não ligou. Mas da segunda, sim. A menina então abriu o vidro pra dizer que o painel tinha acendido de novo e, com isso, confirmar as expectativas de todos. Foi nessa hora que o Guilherme, o Gui, chegou na janela onde estava a sua colega de escola.

– Oi, Bibi. É Bibi, né? Tudo bem? Você tá linda nesse pijama. Estava dormindo no carro é?

– Muito engraçadinho você.

– Ué, estamos aqui ajudando a desenguiçar o carro da sua mãe. E eu estou preocupado com o seu sono.

– Eu conheço bem esse seu risinho, tá? Eu não estava dormindo nada, se você quer saber.

– Tá, então de onde você veio, vestida assim de zebrinha? Já sei, estava numa festa a fantasia e o tema era Madagascar. Taí, gostei. Cadê os outros animais, o leão, a girafa e os macaquinhos?

Assim que o nome Madagascar foi pronunciado pelo rapaz, uma sequência de risadas veio de todos os lados. Não só a menina e a prima, antes envergonhada pelo encontro, mas também a sua mãe e o pai do Guilherme, no instante em que ouviram falar no filme, olharam pra menina dentro do carro e deram um tchauzinho pra zebrinha.

No final, até o seu Jônatas, recolhendo os fios, meneava a cabeça e escondia o riso, dizendo baixinho:

– Madagascar! Essa garotada não deixa passar uma!

 

 


sexta-feira, 17 de maio de 2024

O Hino

 

Tudo começou quando a plateia pediu a música do bis. Na dúvida entre qual peça apresentar no encerramento daquele concerto, a pianista, um tanto tímida, se virou para o público na intenção de alguma sugestão.

Por força de ofício eu lia vários jornais assim que chegava no trabalho. Começava pelas notícias que seriam separadas para o clipping, cujos temas fossem cultura e patrimônio e que poderiam ser consideradas, de alguma maneira, de interesse do Instituto.

Foi nessa primeira olhada que reparei a apresentação da pianista Eudóxia de Barros. Marcada para o final da tarde, no hall de um teatro bem perto de mim, no Centro da cidade, na mesma hora eu já separei o recorte e fui ler a matéria com calma. Era uma sessão para alunos de música, das várias escolas que existem ali no entorno, abrangendo tanto a Escola Nacional de Música, lá quase na Lapa, como também a escola do Teatro Municipal, essa formada por alunos bem jovens, adolescentes.

Como o teatro tinha uma peça em cartaz e o palco estava ocupado com os cenários, o encontro foi marcado para o hall, sendo necessário apenas o deslocamento do piano para lá. O público não teria cadeiras disponíveis, mas sim todo o espaço da entrada do teatro, e as pessoas foram incentivadas a levar suas almofadas e outros apetrechos para se acomodar como pudessem.

A maioria optou por sentar no chão mesmo, sem a menor cerimônia e sem qualquer outro utensílio de conforto, a não ser a própria mochila, tantas vezes acostumadas ao chão, simplesmente e funcional. A praticidade estudantil sempre foi uma lição a ser aprendida.

Eu conhecia a professora Eudóxia de Barros de nome. Sabia que era excelente pianista e que havia sido vencedora de alguns prêmios internacionais. Mas o que mais me lembrava dela era de ter escrito um livro sobre piano, a técnica do instrumento. O livro, só pelo título, me aproximava do objetivo de um dia poder tocar ao piano as minhas cantigas e bossas que eu já tocava no violão.

Pedi ao chefe pra sair mais cedo e às 5 da tarde já estava na frente do teatro. A artista entrou com quase nenhuma formalidade e, após agradecer e cumprimentar algumas pessoas próximas do piano, disse que ia fazer breves comentários sobre algumas peças que iria apresentar, umas poucas notas abordando os autores e eventualmente algo sobre as composições e seus contextos à época.

No meio do concerto eu já não sabia se gostava mais das músicas ou das explanações da professora Eudóxia, uma verdadeira aula. O fato é que se trata de uma mulher com talento o bastante para a música e para a prosa, igualmente. É dessas pessoas que falam com tranquilidade e nos prendem a atenção através de um vocábulo preciso e conciso.

O hall do teatro, que parecia inadequado para a música, se mostrou plenamente eficaz e mesmo com as portas de vidro deixando à mostra toda a movimentação de pedestres e veículos do lado de fora, nada ousou atrapalhar aquela bela tarde de cultura musical. Algumas peças, chamadas de aberturas, de grandes sinfonias ou mesmo óperas, passaram por nós como um livro, cujas páginas vão sendo viradas uma a uma.

Bem, mas como já adiantado na primeira frase deste relato, tudo começou de verdade na hora do bis. Quando ela resolveu atender aos pedidos pra tocar a última obra, deu-se um princípio de desordem. Uma desordem ordeira, posso dizer. As pessoas falando umas por cima das outras, os nomes das músicas misturados que mal davam pra entender e alguém, no meio do saguão, que pedia silêncio, tentando acalmar os ânimos. A coisa estava mesmo fadada a não chegar a um consenso.

Nesse momento, um coro lá de trás foi ganhando corpo. Mais e mais pessoas aderiam e passavam a pedir a mesma música. Eu não entendia direito o que era e olhava pra todos os lados. Quando ficou claro o coral, a turba fez-se ouvir, pedindo um tal de hino.

– Hino, hino, hino...

– O quê? Estão pedindo pra tocar o hino? Mas que hino, gente? – me perguntava a senhora ao meu lado, com o guarda-chuva enrolado.

– É isso mesmo. Ela toca o hino. O Hino Nacional Brasileiro – disse um senhor, eufórico.

Bem, eu que já estava pensando em ir embora, decidi que não ia ficar pra ouvir hino coisa nenhuma. Se ainda fosse algo interessante, ok, mas ficar pra ouvir o hino nacional? Era demais pra mim.

Sem dar na pinta, eu fui me levantando, disfarçando pra não sair assim, digamos, antes de todo mundo, mas já querendo ganhar a rua e pensando na minha fila do ônibus que, pelo horário, já devia estar dobrando a esquina.

Dei os primeiros passos na direção da porta, mas pude ouvir fraquinho a professora explicando que era a obra de um autor americano, de Nova Orleans, que no ano 1800 e alguma coisa tinha se apaixonado pelo nosso hino. Sublinhou que o rapaz, ainda bem jovem, já tocava demais e era um fenômeno. O hino, entretanto, quase foi proibido de ser executado no Brasil. Ela ia falando e eu ia ficando, cada vez mais interessado em ver – e ouvir – que raio de música era aquela, cujo título a pianista pronunciou pausada e propositalmente como que para instigar os desatentos, como eu: Grande Fantasia Triunfal Sobre o Hino Nacional Brasileiro.

Os aplausos, por sua vez, já começaram a partir deste anúncio. E durou até o momento em que ela finalmente se sentou no banco do piano.

Depois disso, nada. Nenhum vento, nenhuma mosca, sequer uma folha caiu, um fio de cabelo desalinhou ou uma respiração ousou arfar. Nenhum carro passou lá fora, tampouco nenhuma pessoa cruzou a fachada envidraçada do teatro. Parecia que no mundo todo só havia um piano e um hino.

A gente pensa ter o peito preparado, sempre preparado, para tudo.

Eu não estava preparado pra conhecer aquele hino. Jamais estaria. Não naquele instante.

Cheio de nuances a partir do hino original. Uma homenagem, uma fantasia, uma exaltação. Por vezes o tom menor soava ante o maior, singelamente, tal como uma fuga de Bach. Arrebatador.

Desde então, sempre que aquele hino toca, algo no mundo para, estanca, suspira.

Em mim.