Bianca era uma
adolescente que não dava trabalho à mãe. Muito quieta, estudiosa, a menina
gostava mesmo era de ficar em casa nos finais de semana e procurava nos canais
e nos aplicativos da tevê, os filmes que queria assistir.
A sala de casa
mais parecia um quarto, onde as pessoas ficavam de pijama até bem tarde e
estendiam o café da manhã desde a cozinha até o sofá, tudo na maior
tranquilidade. Principalmente a filha mais nova, essa era a que mais resistia a
trocar o pijama pra uma outra roupa qualquer. Não foi à toa que a mãe lhe
presenteou com um enorme pijama de zebrinha, todo de tecido atoalhado, com
mangas e pernas compridas.
A única
preocupação da Bianca era que fosse feita alguma foto sua com o tal pijama. Era
lindo, ok. Ela adorava, ok. Mas daí a cair nas mãos e nos olhos das amigas, já
era algo que ela tinha uma grande vergonha e por isso cuidava pra que sua
imagem vestida de zebra não caísse em mãos alheias. A família entendia com
certo exagero toda aquela preocupação da adolescente, pelo simples fato de que
o pijama ficava bem bacana nela. Enfim, era a sua vontade. Fazer o quê?
A prima, que
morava do outro lado da cidade e, de vez em quando, vinha passar os fins de
semana com a tia, era a melhor amiga da pequena Bianca. As duas tinham um gosto
cinematográfico parecido e dividiam a pesquisa para programar a maioria dos
títulos que assistiam. Além disso, ficavam indicando filmes, diretores e
atores, uma pra outra, numa verdadeira garimpagem fílmica.
Naquele dia,
logo depois do almoço, a mãe entrou na sala convocando a filha:
– Eu vou ali
no ponto de ônibus, buscar a Clô. Ela acabou de ligar dizendo que está
chegando. A Bibi quer ir comigo?
– Ai, mãe, eu
até quero, mas estou de pijama.
– O que que
tem? É pertinho e você vai ficar dentro do carro!
– Será?
– Claro,
ninguém vai te ver de zebrinha. Vamos logo, anda.
Interessante
foi que, no caminho, a menina tinha a sensação de que as pessoas lá fora
conseguiam vê-la dentro do carro. Ela ria, nervosa, mas a mãe fazia piada pra
depois jurar que, com o vidro escuro, não dava pra ver nada. Com certeza.
Assim que
entrou no veículo, a Clô largou a mochila no banco de trás e ficou de lado para
a motorista, de modo que pudesse conversar melhor com a prima. No carro parecia
haver uma competição tácita de quem era a mais tagarela. As duas falavam sem
respirar, de tanto que emendavam um assunto no outro. Enquanto isso, a mãe
tentava uma brecha pra avisar que ia dar uma paradinha no mercadinho pra
comprar pão e outras coisas, guloseimas, bolos e doces, na maioria.
Quando
estacionou o carro na calçada, em frente ao mercado, a filha meio que surtou:
– Ah, mãe, vai
parar aqui? Olha como eu estou? Com esse pijama. Vamos direto pra casa e depois
você vem comprar as coisas!
– Ai, filha, é
rapidinho. Fiquem as duas aqui dentro do carro que não vai ter problema algum.
– Puxa, se
soubesse disso não tinha vindo. Olha o mico que eu estou?
– Que nada,
Bi, a prima tá é muito chique com essa zebrinha. Relaxa.
A mãe sumiu
dentro do mercadinho e as meninas ali no carro, contando a história da
humanidade, de tanto assunto que tinham. Não se sabe quanto tempo depois, a mãe
surgiu na calçada com algumas sacolas e a sobrinha saiu pra ajudar.
Quando estava
tudo devidamente acondicionado na mala, no que a mãe virou a chave pra ligar o
carro, puff, o motor não ligou. Tentou mais uma vez, nada. Foi só o barulhinho
seco da ignição que falhava sem piedade. A menina disse “não”, no banco de
trás. A prima disse “calma”, no banco da frente. E a mãe motorista disse
“pultaquilparil”, socando o volante.
– Eu sabia que
ia dar merda. Era só eu botar os pés fora de casa com essa zebrinha do capeta,
que isso ia acontecer. E agora, mãe? O que a gente faz?
A mãe saiu sem
responder. Entrou no mercado de novo, apressada, e voltou com o seu Jônatas,
que trabalhava ali. O homem ouviu com atenção o barulho da ignição sufocada e
sentenciou:
– É bateria.
– Como assim,
seu Jônatas? O carro é novo? A bateria é nova?
– Essas coisas
acontecem. Pode ter alguma perda de energia por algum equipamento funcionando
mal. Vamos ver se conseguimos fazer um complemento de carga, de outra bateria
para a sua. Pelo menos vai dar pra senhora chegar em casa.
– Estou com
duas meninas no carro, como o senhor vê. Elas precisam sair?
– Não. Precisa
não.
Aliviadas por
não terem que sair do carro, as duas viram o homem pegar um fio extenso e
começar a falar com algumas pessoas por perto, apontando pro carro enguiçado e
fazendo sinais que remetiam à tal carga que devia ser dada na bateria
Nesse momento,
uma van enorme parou ao lado delas. Quando o motorista saiu junto com o filho,
as duas meninas tiveram um susto.
– Olha, não é
o Guilherme ali naquela van?
– Minha nossa.
É o Gui e o pai dele. Vou me jogar atrás do banco. No chão eles não vão me ver.
– Com esses
vidros escuros, sem chance. Não pira, Bibi.
De repente, a
mãe abre a porta do carro, junto com o seu Jônatas e anuncia:
– Olha filha,
vamos fazer uma carga na bateria. A gente estava procurando um outro carro pra
dar a carga e olha quem apareceu, o querido do Guilherme, seu amiguinho da
escola e o pai dele. Viu que sorte a nossa?
– Mãe, eu
estou vestida de zebra, lembra? Como assim o Gui e o pai dele?
– Ah, não vai
ter jeito. A gente precisa da ajuda deles pra conseguir ao menos levar o carro
até em casa.
– Mas, mãe...
No momento em
que abriram o capô dos dois carros e foram identificar as baterias, os polos e
os conectores dos fios, a mãe gritou lá de fora:
– Bibi, passa
pro banco da frente pra monitorar o painel pra mim. Depois vou te pedir pra
virar a chave, tá?
– Ô mãe, que
Bibi? Que Bibi, mãe? Não me chama de Bibi não, por favor!
A mãe nem
ouviu, ocupada que estava em dar cabo àquela situação.
Ligado o motor
da van, agora era só dar a partida no carro enguiçado e a bateria ia carregar. Da
primeira vez não ligou. Mas da segunda, sim. A menina então abriu o vidro pra
dizer que o painel tinha acendido de novo e, com isso, confirmar as
expectativas de todos. Foi nessa hora que o Guilherme, o Gui, chegou na janela
onde estava a sua colega de escola.
– Oi, Bibi. É
Bibi, né? Tudo bem? Você tá linda nesse pijama. Estava dormindo no carro é?
– Muito
engraçadinho você.
– Ué, estamos aqui
ajudando a desenguiçar o carro da sua mãe. E eu estou preocupado com o seu
sono.
– Eu conheço
bem esse seu risinho, tá? Eu não estava dormindo nada, se você quer saber.
– Tá, então de
onde você veio, vestida assim de zebrinha? Já sei, estava numa festa a fantasia
e o tema era Madagascar. Taí, gostei. Cadê os outros animais, o leão, a girafa
e os macaquinhos?
Assim que o
nome Madagascar foi pronunciado pelo rapaz, uma sequência de risadas veio de
todos os lados. Não só a menina e a prima, antes envergonhada pelo encontro,
mas também a sua mãe e o pai do Guilherme, no instante em que ouviram falar no
filme, olharam pra menina dentro do carro e deram um tchauzinho pra zebrinha.
No final, até
o seu Jônatas, recolhendo os fios, meneava a cabeça e escondia o riso, dizendo
baixinho:
– Madagascar! Essa
garotada não deixa passar uma!
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