sexta-feira, 17 de maio de 2024

O Hino

 

Tudo começou quando a plateia pediu a música do bis. Na dúvida entre qual peça apresentar no encerramento daquele concerto, a pianista, um tanto tímida, se virou para o público na intenção de alguma sugestão.

Por força de ofício eu lia vários jornais assim que chegava no trabalho. Começava pelas notícias que seriam separadas para o clipping, cujos temas fossem cultura e patrimônio e que poderiam ser consideradas, de alguma maneira, de interesse do Instituto.

Foi nessa primeira olhada que reparei a apresentação da pianista Eudóxia de Barros. Marcada para o final da tarde, no hall de um teatro bem perto de mim, no Centro da cidade, na mesma hora eu já separei o recorte e fui ler a matéria com calma. Era uma sessão para alunos de música, das várias escolas que existem ali no entorno, abrangendo tanto a Escola Nacional de Música, lá quase na Lapa, como também a escola do Teatro Municipal, essa formada por alunos bem jovens, adolescentes.

Como o teatro tinha uma peça em cartaz e o palco estava ocupado com os cenários, o encontro foi marcado para o hall, sendo necessário apenas o deslocamento do piano para lá. O público não teria cadeiras disponíveis, mas sim todo o espaço da entrada do teatro, e as pessoas foram incentivadas a levar suas almofadas e outros apetrechos para se acomodar como pudessem.

A maioria optou por sentar no chão mesmo, sem a menor cerimônia e sem qualquer outro utensílio de conforto, a não ser a própria mochila, tantas vezes acostumadas ao chão, simplesmente e funcional. A praticidade estudantil sempre foi uma lição a ser aprendida.

Eu conhecia a professora Eudóxia de Barros de nome. Sabia que era excelente pianista e que havia sido vencedora de alguns prêmios internacionais. Mas o que mais me lembrava dela era de ter escrito um livro sobre piano, a técnica do instrumento. O livro, só pelo título, me aproximava do objetivo de um dia poder tocar ao piano as minhas cantigas e bossas que eu já tocava no violão.

Pedi ao chefe pra sair mais cedo e às 5 da tarde já estava na frente do teatro. A artista entrou com quase nenhuma formalidade e, após agradecer e cumprimentar algumas pessoas próximas do piano, disse que ia fazer breves comentários sobre algumas peças que iria apresentar, umas poucas notas abordando os autores e eventualmente algo sobre as composições e seus contextos à época.

No meio do concerto eu já não sabia se gostava mais das músicas ou das explanações da professora Eudóxia, uma verdadeira aula. O fato é que se trata de uma mulher com talento o bastante para a música e para a prosa, igualmente. É dessas pessoas que falam com tranquilidade e nos prendem a atenção através de um vocábulo preciso e conciso.

O hall do teatro, que parecia inadequado para a música, se mostrou plenamente eficaz e mesmo com as portas de vidro deixando à mostra toda a movimentação de pedestres e veículos do lado de fora, nada ousou atrapalhar aquela bela tarde de cultura musical. Algumas peças, chamadas de aberturas, de grandes sinfonias ou mesmo óperas, passaram por nós como um livro, cujas páginas vão sendo viradas uma a uma.

Bem, mas como já adiantado na primeira frase deste relato, tudo começou de verdade na hora do bis. Quando ela resolveu atender aos pedidos pra tocar a última obra, deu-se um princípio de desordem. Uma desordem ordeira, posso dizer. As pessoas falando umas por cima das outras, os nomes das músicas misturados que mal davam pra entender e alguém, no meio do saguão, que pedia silêncio, tentando acalmar os ânimos. A coisa estava mesmo fadada a não chegar a um consenso.

Nesse momento, um coro lá de trás foi ganhando corpo. Mais e mais pessoas aderiam e passavam a pedir a mesma música. Eu não entendia direito o que era e olhava pra todos os lados. Quando ficou claro o coral, a turba fez-se ouvir, pedindo um tal de hino.

– Hino, hino, hino...

– O quê? Estão pedindo pra tocar o hino? Mas que hino, gente? – me perguntava a senhora ao meu lado, com o guarda-chuva enrolado.

– É isso mesmo. Ela toca o hino. O Hino Nacional Brasileiro – disse um senhor, eufórico.

Bem, eu que já estava pensando em ir embora, decidi que não ia ficar pra ouvir hino coisa nenhuma. Se ainda fosse algo interessante, ok, mas ficar pra ouvir o hino nacional? Era demais pra mim.

Sem dar na pinta, eu fui me levantando, disfarçando pra não sair assim, digamos, antes de todo mundo, mas já querendo ganhar a rua e pensando na minha fila do ônibus que, pelo horário, já devia estar dobrando a esquina.

Dei os primeiros passos na direção da porta, mas pude ouvir fraquinho a professora explicando que era a obra de um autor americano, de Nova Orleans, que no ano 1800 e alguma coisa tinha se apaixonado pelo nosso hino. Sublinhou que o rapaz, ainda bem jovem, já tocava demais e era um fenômeno. O hino, entretanto, quase foi proibido de ser executado no Brasil. Ela ia falando e eu ia ficando, cada vez mais interessado em ver – e ouvir – que raio de música era aquela, cujo título a pianista pronunciou pausada e propositalmente como que para instigar os desatentos, como eu: Grande Fantasia Triunfal Sobre o Hino Nacional Brasileiro.

Os aplausos, por sua vez, já começaram a partir deste anúncio. E durou até o momento em que ela finalmente se sentou no banco do piano.

Depois disso, nada. Nenhum vento, nenhuma mosca, sequer uma folha caiu, um fio de cabelo desalinhou ou uma respiração ousou arfar. Nenhum carro passou lá fora, tampouco nenhuma pessoa cruzou a fachada envidraçada do teatro. Parecia que no mundo todo só havia um piano e um hino.

A gente pensa ter o peito preparado, sempre preparado, para tudo.

Eu não estava preparado pra conhecer aquele hino. Jamais estaria. Não naquele instante.

Cheio de nuances a partir do hino original. Uma homenagem, uma fantasia, uma exaltação. Por vezes o tom menor soava ante o maior, singelamente, tal como uma fuga de Bach. Arrebatador.

Desde então, sempre que aquele hino toca, algo no mundo para, estanca, suspira.

Em mim.

 


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