sexta-feira, 19 de julho de 2024

Ensaio de Orquestra


Era apenas uma entrevista de emprego. Praticamente o futuro gerente já estava acertado com o dono do restaurante e apenas faltava o ok do outro sócio. Para tanto foi marcada uma reunião, que aconteceria no próprio estabelecimento, antes da sua abertura, às 18 horas.

O gerente chegou cedo, no meio da tarde, e foi recebido pelo segurança. Após abrir a porta ele mostrou todo o espaço de atendimento e por fim indicou uma mesa, logo na entrada, pra que ele aguardasse.

Assim que se instalou e apoiou o seu notebook, o casaco e os óculos, o futuro gerente foi atraído pela decoração, os monitores de tevê, os quadros e as luzes do bar. Não deu cinco minutos e o segurança se aproximou.

– Gostou do lugar?

– Sim, bem bonito. Coisa de profissional.

– É mesmo de alto padrão esse restaurante. As pessoas que vêm aqui são cheias da grana. Sabe como é, bebidas caras, pratos caros, e o público está no mesmo nível.

– Perfeitamente.

– É aí que entra a segurança, né doutor? Pra manter tudo em ordem, pro cliente se sentir seguro aqui. Não ter qualquer problema de briga, essas coisas. Dependendo do restaurante, a segurança é a coisa mais importante de uma casa dessa, principalmente por abrir só à noite e ficar até a madrugada.

– Verdade, a segurança é muito importante mesmo.

Assim que ele terminou de falar bateram à porta. Enquanto o candidato a gerente se aprumava, botando os óculos de novo, pensando que eram os sócios, o guarda entrou com umas cinco pessoas, todos funcionários que foram se apresentando um a um.

O homem cumprimentou a todos e logo o quinteto desapareceu na porta que dava acesso a área restrita do restaurante.

Não deu cinco minutos e um rapaz todo vestido de branco, gorro e avental, veio pra perto.

– Boa tarde. O senhor é o gerente novo?

– Ainda não sei se serei.

– Ah, vai ser sim. Tenha fé. Eu sou lá da cozinha, auxiliar ainda. Mas sou eu que faço as compras do dia. Sabe como é, sem os produtos adequados, bem escolhidos, as carnes, os temperos, não tem restaurante. Pra um cardápio de sucesso não basta ter um bom chef. Tem que ter os produtos certos no estoque da cozinha.

– Claro, entendo, você está coberto de razão.

– Pouca gente sabe disso, mas na verdade, sem o auxiliar de cozinha, não tem cardápio de excelência. E sem cardápio, não tem restaurante.

– Verdade, a cozinha é mesmo a alma do restaurante. E o auxiliar também.

O rapaz voltou pra cozinha todo contente e o gerente foi até a área aberta, ao lado do bar, onde tinha um enorme balcão. Lá fora uma moça de luvas e chapéu arrumava as mesas e varria o chão. Depois dos cumprimentos, ele perguntou quantas pessoas integravam o grupo da limpeza.

– Tem grupo não senhor. O grupo sou eu mesmo. Chego cedo e arrumo tudo certinho. Depois, durante a noite eu só dou uma ajeitada nos banheiros e pronto.

– Certo. Bem legal. Parece perfeito.

– Imagina se a pessoa vai num restaurante e encontra o lugar sujo, senhor? Nunca mais volta. Imagina. A primeira coisa que tem que estar perfeita é a limpeza. E pronto. Tem que estar limpo e parecer limpo. Isso sim. Sem limpeza não tem restaurante chique, meu senhor.

– Limpeza e um bar à altura – interrompeu o barman, com duas garrafas nas mãos.

– Ah, você é que pilota o bar? Que lindo ele, né?

– Isso aqui foi escolhido a dedo. Cada garrafa, cada complemento, cada fruta ou adereço aqui tem a minha participação. Você pode ter um chef premiado, numa casa idem, mas sem um bar e um barman maneiro, não tem restaurante.

– É a mais pura verdade – concordou o gerente, continuando o seu passeio pelo salão.

O segurança veio até a porta pra transmitir o recado de que os sócios iam atrasar um pouco. E perguntou se tinha algum problema. O gerente fez sinal positivo com a mão, que estava tudo bem quanto ao horário. A seguir, o guarda apresentou a arquiteta, que também acabava de chegar.

– Boa tarde. Muito impactante o seu trabalho aqui – disse apontando as paredes e os ambientes.

– Obrigada. Eu entendo que o carro-chefe de um estabelecimento é a sua capacidade de ser aconchegante, num ambiente sofisticado e eficiente. Desde a decoração até a disposição das mesas, tudo tem de funcionar como uma engrenagem, sabe? Na verdade, eu costumo dizer que sem uma boa cenografia, não tem restaurante de sucesso. É isso, modéstia à parte.

– Olhando em volta eu sou obrigado a concordar com a senhora. Parabéns.

Não deu cinco minutos e chegaram mais seis pessoas, todas juntas, falando alto e trazendo o segurança pelo braço. Depois de apresentados o que se deu foi uma sucessão de frases, cada qual com a sua posição:

– O doutor vai ser o nosso gerente, né?

– Assim espero.

– É que aqui nós somos como uma família! Um garçom cobre o outro, a gente se ajuda o tempo todo e cada um atende o cliente como se fosse um amigo.

– Tem gente que vem aqui por causa do nosso atendimento. Isso é um troféu pra gente.

– Se eu fosse listar os elogios, nossa, não acabava hoje – disse o senhor baixinho, que parecia ser o mais velho deles.

– A simpatia, a rapidez, a polidez, a educação, a gente sabe bem o nosso papel nesse serviço.

– Eu concordo plenamente. Eu diria até mais. Que o garçom é a alma de um restaurante. Sem garçom não tem restaurante – disse o gerente, abraçado pelo grupo, eufórico com aquelas palavras.

– Mas era isso mesmo que eu ia falar. Grande gerente o senhor vai ser.

E ficaram ali conversando, contando os causos dos clientes, assíduos e esporádicos, e dos bêbados e dos famosos, com suas esposas e suas saias justas, literalmente, até que por fim chegaram os sócios, já quase na hora de abrir as portas.

 

A primeira coisa que o gerente me perguntou, quando se preparava pra me contar essa história, foi se eu tinha assistido ao filme Ensaio de Orquestra, do diretor italiano Federico Fellini. Depois, me reportou que se sentiu dentro daquela comédia, ante as narrativas dos funcionários do restaurante, cada um se vendo como mais imprescindível que o outro.

A similaridade acontece justamente porque, no filme, durante o ensaio de uma orquestra italiana, um canal de tevê vai fazer uma reportagem e pede um depoimento de cada músico. Nos depoimentos, quase todos cômicos, fica claro que cada um considera o seu instrumento como o mais importante da orquestra, a alma da companhia e que, sem ele, não haveria a música.

O Eterno Fellini em sua genialidade!

 

 


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