quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Sorvete no Inverno


O inverno do carioca é peculiar. Se dá 19 graus no termômetro a galera já põe o casaco mais grosso que tem no armário e desanca a reclamar do frio insuportável. Diferente do Sul maravilha, que faz frio mesmo com o sol brilhante no céu limpo, no Rio, o frio, aquele intenso de 19 graus, sempre vem acompanhado de chuva fina, o que nem sempre é agradável.

Eu até gosto do frio. Como carioca, gosto de estar agasalhado no frio, acho as roupas de frio mais elegantes e tal. Mas, por outro lado, me incomoda demais a sensação de estar sentindo frio, nas ocasiões em que me descuido com o vento sul. O que não condiz com essa condição é que apesar disso tudo, pra mim, a cereja do bolo é tomar sorvete no inverno. Dizem que não é bom pra garganta, nem para as vias aéreas superiores, que provoca encarangação sistêmica... Nada! Pra mim sorvete no inverno é uma iguaria. Melhor do que no verão, acredite o prezado leitor.

Fato é que outro dia o meu tênis, de um tom bege clarinho, estava todo sujo. Pra sair no dia seguinte nos conformes, eu dei uma boa lavada nele na véspera, no tanque de casa mesmo. Minhas mãos estavam congelando quando eu tive a boa ideia de acabar o enxágue em outra pia, que tinha água quente. Ufa, foi uma delícia aquele final de lavagem.

Passou todo aquele dia, e mais a noite inteira, e nada do bicho secar. Lembrando da torneira de água quente eu tive outra ideia, que foi botar o tênis no sol, na varanda. Pelo menos até a hora de sair ele acabaria de secar e o processo seria bem mais rápido, claro, com o auxílio do nosso bom e velho astro-rei.

Na hora certinha de sair eu fui lá, tirei o calçado do sol e vesti quase que imediatamente, com umas meias de lã que cuidaram de manter o efeito do sol por ainda muito tempo. A sensação foi imediata e indescritível. Estava tipo 15 graus, um frio do capeta pra carioca, com vento leve mas gelado, e eu ali com os pés quentinhos, um conforto que eu avaliei que já devia ter feito, há muito mais tempo, e que jurei que iria repetir outras vezes.

Não sei se na rua as pessoas reparavam, mas eu estava caminhando e sorrindo, quase desfilando pela calçada na frente de casa. Jamais alguém ia imaginar que era por causa do tênis quentinho. Na certa pensariam: quem sabe o gajo lembrou de uma piada antiga; quem sabe foi o golaço do seu time no domingo anterior. Ou quem sabe, se bem conheço esse sujeito de tênis aquecido, ele está pensando com os seus botões que nessa caminhada cairia muito bem um belo sorvete de morango. É isso! Pra quem gosta de sorvete no frio a hora é mais do que propícia, diriam.

Entrei na primeira padaria e nada de sorvete. Só tinha aqueles potes enormes. No mercado da rua de trás também só aqueles copos de sorvete chiques, de marcas idem, com sabores variados, mas todos com chocolate. Éca! Chocolate não.

A moça disse:

– Naquela farmácia ali também vende sorvete – e apontou pro outro lado da rua.

Eu agradeci, estranhando um pouco, mas topei conferir. O plano original era um sorvete de casquinha, brilhantemente inderretível pro resto da caminhada. Mas como se tratava de uma farmácia, eu já atravessei a rua adequando as minhas expectativas para um picolé mesmo. Que fosse de abacaxi ou de uva e estaria tudo certo.

A farmácia realmente tinha uma geladeira horizontal no canto da loja. Fiquei atento ao cartaz que trazia os preços e os sabores de cada um e notei que as portas deslizantes estavam trancadas, possivelmente por não ter muita saída nesses dias de inverno.

Fiquei esperando que algum funcionário ficasse livre, já que eram muitos clientes em vários atendimentos. Do lado de trás do balcão, bem lá no finalzinho, quase na curva da prateleira, uma moça levantou o dedo me perguntando o remédio que eu queria.

– Sorvete.

– O quê?

– Sorvete – e apontei pra geladeira.

Uma outra atendente, que estava mais perto de mim, gritou pra colega detrás do balcão.

– Absorvente. Ele quer absorvente.

Nesse instante, toda a população da farmácia se virou pra mim.

Eu até poderia ter ficado envergonhado nesse momento, mas não acho nada demais um homem ir à farmácia comprar absorvente. O problema era que, simplesmente, não era isso que eu tinha dito, e sim sorvete.

Balbuciei alguma coisa, apontando a esmo, até que uma das gerentes da farmácia passou como uma flecha pela fila dos idosos e veio até onde eu estava. No caminho, ainda teve tempo de dar uma bronca na menina:

– Que absorvente que nada! Você é doida? Tem que ficar mais esperta, minha filha. É sorvete. O moço estava ali na frente da geladeira, olhando o folheto com os preços.

– Sorvete? Como é que ia adivinhar? Quem é que toma sorvete no inverno?

Eu dei graças a Deus por não ter de explicar tudo. Se a gerente percebeu e veio com a chave pra abrir o freezer, tanto melhor.

– Essa moçada vive no mundo da lua, meu caro. Ela está em período de treinamento e o senhor me desculpe pelo ocorrido. Absorvente... Só na cabeça dela mesmo – disse em tom quase de gracejo, àquela altura do enredo, querendo rir também.

Eu argumentei que não havia problema algum e que, realmente, tomar sorvete no inverno não era lá uma coisa corriqueira, ou trivial. Ainda pensando em distensionar o ambiente eu falei que, provavelmente, passados alguns minutos, poucos, ou assim que eu saísse da loja, todos ali estariam rindo do mal entendido, inclusive a mocinha que levou a bronca na frente de todo mundo.

Finalmente, saí da farmácia com o meu troféu em forma de sorvete e fui caminhando em direção ao Centro, prometendo sentar em algum banco da praça e deixar o tênis ao sol por um bom tempo, até pegar novamente aquela temperatura prazerosa e conservá-la até chegar em casa.

No caminho de volta eu estive pensando uma coisa: antes que o inverno acabe eu vou voltar àquela farmácia. Vou ficar bem lá atrás, quietinho, com a minha senha, e quando chegar a minha vez vou pedir um absorvente, em alto e bom som.

Estou curioso pra ver a cara das atendentes, daquela gerente e das pessoas em volta!



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