Uma das minhas
funções, logo que eu chegava ao trabalho, era ler os jornais do dia e recortar
os assuntos de interesse da empresa, para que circulasse no departamento.
Inevitavelmente, eu também mandava junto as notícias de cultura, agenda de
teatro e shows de música, além de alguns destaques da programação de cinema.
Depois que eu
fazia esses recortes os jornais ficavam liberados e aí todo mundo lia, na
medida em que o trabalho permitisse. No almoço, principalmente, sempre vinha
alguém pedir uma parte específica pra dar uma olhada. Os cadernos de novelas e
esportes eram os mais solicitados.
No meu
departamento éramos dois datilógrafos – sim, essa profissão existia –, três
assistentes administrativos e dois contínuos, que eram os responsáveis pelo
leva e traz de processos entre todos os setores da casa. Na sala ao lado
da nossa ficavam as duas assistentes de gabinete. Eram elas que atendiam o
diretor, os demais chefes de seção e normalmente nos passavam os trabalhos. A
hierarquia rezava que as assistentes eram as nossas chefes imediatas, logo
abaixo do diretor do departamento.
Nos dias em
que o diretor viajava, a gente quase não tinha trabalho, pois não tinha a
circulação dos processos, nem conferência de contratos de cooperação técnica,
tarefa que mais nos tomava tempo e na qual as calculadoras de rolo de papel
eram as mais exigidas. Ainda consigo me lembrar do barulho ritmado das bobinas
sendo expelidas pela impressão da máquina e das teclas sendo acionadas a cada
cálculo processual.
Itajara
era o nome do puro sangue mais famoso do Jockey Club Brasileiro na década de
1980. Termos como “fenômeno”, “lenda do turfe nacional”, “tríplice coroado” e “invicto”
eram comumente associados ao cavalo multicampeão. Suas façanhas arrastavam
multidões ao Hipódromo da Gávea, desde a sua estreia até o dia derradeiro em
que deixou as pistas invicto e completamente laureado.
Os
jornais, nem é preciso dizer, semanas após semanas traziam verdadeiras epopeias
sobre a trajetória do animal, o seu haras de origem e também os jóqueis que
tiveram o privilégio de montar aquele garanhão imbatível.
No nosso
departamento a gente acompanhava as suas corridas, as vitórias e as histórias
dos apostadores, cada dia mais felizes com o seu desempenho. Parecia que a
gente, mesmo de longe, e sem conhecer nada de turfe e apostas, era capaz de
analisar os páreos, os adversários e os melhores jóqueis em cada corrida. No
almoço, no refeitório, o nome Itajara era o mais ouvido entre a gente.
Até que um
dia, uma das assistentes de gabinete se aposentou. Para o seu lugar viria uma
senhora de outra unidade, de São Paulo, para assumir as funções no Rio de
Janeiro, onde ficava a sede. No dia da sua apresentação houve um evento cheio
de pompa, no auditório, com a presença da presidente. Um pouco antes, ela
passou pelo nosso departamento para um primeiro contato com a sua futura
equipe.
Elegante,
finamente trajada com um discreto terno azul marinho, madeixas reluzentemente
contidas por um coque, ela foi trazida pelos braços da assistente aposentante. Era
uma morena de cabelo bem preto, bem alta, olhos grandes, sobrancelha cheia,
forte, com um bração sarado, num tempo em que nem existia academia fora dos
espaços esportivos. Falou brevemente com o diretor, depois cumprimentou a
colega assistente e adentrou a nossa sala com as mãos estendidas a cada um de
nós.
– Boa
tarde, muito prazer, meu nome é Itajara – disse, com firmeza desconcertante.
Desconcertados
ficamos nós, de imediato, todos nós, um a um, olhando a cena incrédula. Não
lembro quem conseguiu responder alguma coisa ou mesmo dizer o próprio nome. No
meu caso, enquanto ela esmagava a minha mão, eu apenas olhei para o lado, como
se perguntasse telepaticamente para a dona Paulina, a então aposentada, se
aquilo era alguma brincadeira. Mas a contar pelo tom sério do seu semblante,
jamais me surgiu a coragem de interpelar qualquer coisa naquela hora. Itajara!
Nenhum de
nós foi ao auditório para a cerimônia de posse. Estávamos em choque. Como a
gente ia chamar aquela nova chefe de Itajara se esse era o nome do nosso cavalo
vencedor? Como alguém bota um nome desse em um ser humano? Como batizam um
cavalo com um nome de gente? Que loucura!
Ainda por
cima, ali no nosso território, a gente fazia piada com todo mundo. Ninguém
escapava. O contínuo baixinho do andar de cima era o Gato Seco, o motorista era
o Jorge Brilhantina e o cara da xerox era o Nilo Pitú. O primeiro ali que
fizesse alguma referência ao famoso equino na frente da chefe estaria no olho
da rua. Claro. Sumariamente. Tanto na cancha seca como na molhada, na reta
final ou entrando pela curva oposta, a demissão era coisa de um sweepstake¹, ou um pescoço
de vantagem.
Foram dias
de muita inquietação. Quando a gente comentava algo, verificava várias vezes se
não tinha alguém por perto. Na verdade, só não rolou um sonoro bullying
com a nossa chefe porque a gente cuidou pra que ela jamais ouvisse quaisquer
das nossas ilações. O assunto “corrida de cavalo” ficou em suspenso até o dia
da sua despedida, que afinal chegou rápido como um
photochart.
De repente o
nosso diretor resolveu ceder a Itajara, a recém chegada Itajara, para um outro
haras, sacanagem, para outro diretor cuja gerente de projetos havia sofrido um grave
acidente de carro. Ela veio toda serelepe se despedir da gente, dizendo que estaria
atuando no prédio da Avenida Antônio Carlos e que se alguém precisasse de
alguma coisa, qualquer coisa, era só procurá-la.
Ainda bem que
aquela convivência não durou muito. Era fatal alguém um dia dar uma rateada e
falar alguma besteira pra moça. A gente até tinha alguma educação, eu acho. Mas
a vontade de fazer piada e curtir com a cara das pessoas era algo mais forte do
que nós.
Depois da estadia
efêmera da assistente não tinha um dia sequer em que a gente não abrisse o
jornal pra conferir os páreos do programa do Jockey Club e tentasse escolher, dentre
os nomes de cavalos e éguas, todos bem estranhos, qual deles cairia bem em um
filho de alguém.
E a cada nome
lido era uma anedota que vinha de montada.
Grande
Itajara!
¹ -
Loteria cujo prêmio é vinculado ao resultado de determinado páreo de uma
corrida de cavalos.