sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Itajara

 

Uma das minhas funções, logo que eu chegava ao trabalho, era ler os jornais do dia e recortar os assuntos de interesse da empresa, para que circulasse no departamento. Inevitavelmente, eu também mandava junto as notícias de cultura, agenda de teatro e shows de música, além de alguns destaques da programação de cinema.

Depois que eu fazia esses recortes os jornais ficavam liberados e aí todo mundo lia, na medida em que o trabalho permitisse. No almoço, principalmente, sempre vinha alguém pedir uma parte específica pra dar uma olhada. Os cadernos de novelas e esportes eram os mais solicitados.

No meu departamento éramos dois datilógrafos – sim, essa profissão existia –, três assistentes administrativos e dois contínuos, que eram os responsáveis pelo leva e traz de processos entre todos os setores da casa. Na sala ao lado da nossa ficavam as duas assistentes de gabinete. Eram elas que atendiam o diretor, os demais chefes de seção e normalmente nos passavam os trabalhos. A hierarquia rezava que as assistentes eram as nossas chefes imediatas, logo abaixo do diretor do departamento.

Nos dias em que o diretor viajava, a gente quase não tinha trabalho, pois não tinha a circulação dos processos, nem conferência de contratos de cooperação técnica, tarefa que mais nos tomava tempo e na qual as calculadoras de rolo de papel eram as mais exigidas. Ainda consigo me lembrar do barulho ritmado das bobinas sendo expelidas pela impressão da máquina e das teclas sendo acionadas a cada cálculo processual.

Itajara era o nome do puro sangue mais famoso do Jockey Club Brasileiro na década de 1980. Termos como “fenômeno”, “lenda do turfe nacional”, “tríplice coroado” e “invicto” eram comumente associados ao cavalo multicampeão. Suas façanhas arrastavam multidões ao Hipódromo da Gávea, desde a sua estreia até o dia derradeiro em que deixou as pistas invicto e completamente laureado.

Os jornais, nem é preciso dizer, semanas após semanas traziam verdadeiras epopeias sobre a trajetória do animal, o seu haras de origem e também os jóqueis que tiveram o privilégio de montar aquele garanhão imbatível.

No nosso departamento a gente acompanhava as suas corridas, as vitórias e as histórias dos apostadores, cada dia mais felizes com o seu desempenho. Parecia que a gente, mesmo de longe, e sem conhecer nada de turfe e apostas, era capaz de analisar os páreos, os adversários e os melhores jóqueis em cada corrida. No almoço, no refeitório, o nome Itajara era o mais ouvido entre a gente.

Até que um dia, uma das assistentes de gabinete se aposentou. Para o seu lugar viria uma senhora de outra unidade, de São Paulo, para assumir as funções no Rio de Janeiro, onde ficava a sede. No dia da sua apresentação houve um evento cheio de pompa, no auditório, com a presença da presidente. Um pouco antes, ela passou pelo nosso departamento para um primeiro contato com a sua futura equipe.

Elegante, finamente trajada com um discreto terno azul marinho, madeixas reluzentemente contidas por um coque, ela foi trazida pelos braços da assistente aposentante. Era uma morena de cabelo bem preto, bem alta, olhos grandes, sobrancelha cheia, forte, com um bração sarado, num tempo em que nem existia academia fora dos espaços esportivos. Falou brevemente com o diretor, depois cumprimentou a colega assistente e adentrou a nossa sala com as mãos estendidas a cada um de nós.

– Boa tarde, muito prazer, meu nome é Itajara – disse, com firmeza desconcertante.

Desconcertados ficamos nós, de imediato, todos nós, um a um, olhando a cena incrédula. Não lembro quem conseguiu responder alguma coisa ou mesmo dizer o próprio nome. No meu caso, enquanto ela esmagava a minha mão, eu apenas olhei para o lado, como se perguntasse telepaticamente para a dona Paulina, a então aposentada, se aquilo era alguma brincadeira. Mas a contar pelo tom sério do seu semblante, jamais me surgiu a coragem de interpelar qualquer coisa naquela hora. Itajara!

Nenhum de nós foi ao auditório para a cerimônia de posse. Estávamos em choque. Como a gente ia chamar aquela nova chefe de Itajara se esse era o nome do nosso cavalo vencedor? Como alguém bota um nome desse em um ser humano? Como batizam um cavalo com um nome de gente? Que loucura!

Ainda por cima, ali no nosso território, a gente fazia piada com todo mundo. Ninguém escapava. O contínuo baixinho do andar de cima era o Gato Seco, o motorista era o Jorge Brilhantina e o cara da xerox era o Nilo Pitú. O primeiro ali que fizesse alguma referência ao famoso equino na frente da chefe estaria no olho da rua. Claro. Sumariamente. Tanto na cancha seca como na molhada, na reta final ou entrando pela curva oposta, a demissão era coisa de um sweepstake¹, ou um pescoço de vantagem.

Foram dias de muita inquietação. Quando a gente comentava algo, verificava várias vezes se não tinha alguém por perto. Na verdade, só não rolou um sonoro bullying com a nossa chefe porque a gente cuidou pra que ela jamais ouvisse quaisquer das nossas ilações. O assunto “corrida de cavalo” ficou em suspenso até o dia da sua despedida, que afinal chegou rápido como um photochart.

De repente o nosso diretor resolveu ceder a Itajara, a recém chegada Itajara, para um outro haras, sacanagem, para outro diretor cuja gerente de projetos havia sofrido um grave acidente de carro. Ela veio toda serelepe se despedir da gente, dizendo que estaria atuando no prédio da Avenida Antônio Carlos e que se alguém precisasse de alguma coisa, qualquer coisa, era só procurá-la.

Ainda bem que aquela convivência não durou muito. Era fatal alguém um dia dar uma rateada e falar alguma besteira pra moça. A gente até tinha alguma educação, eu acho. Mas a vontade de fazer piada e curtir com a cara das pessoas era algo mais forte do que nós.

Depois da estadia efêmera da assistente não tinha um dia sequer em que a gente não abrisse o jornal pra conferir os páreos do programa do Jockey Club e tentasse escolher, dentre os nomes de cavalos e éguas, todos bem estranhos, qual deles cairia bem em um filho de alguém.

E a cada nome lido era uma anedota que vinha de montada.

Grande Itajara!

  

 

¹ - Loteria cujo prêmio é vinculado ao resultado de determinado páreo de uma corrida de cavalos.

 

 


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