quinta-feira, 31 de outubro de 2024

São Benedito

 

O santo negro mais famoso da igreja católica era o santo preferido do meu pai. Desde sempre, ele tinha uma oficina de ótica em casa, onde cortava e lapidava as lentes e depois montava as armações. Nessa época ele trabalhava para uma grande empresa que vendia esses óculos para as grandes lojas.

Me lembro que, quando era possível, eu também ajudava em alguma fase dessa, digamos, linha de montagem, instalada em uma espécie de barracão, todo de madeira, que ficava nos fundos da casa do meu avô, onde a gente morava.

São Benedito sempre esteve no alto da parede principal dessa oficina, com uma luzinha verde a iluminar a sua imagem emoldurada, onde se via o Santo com o menino Jesus nos braços. Quando todas as luzes da oficina eram desligadas e os trabalhos do dia encerrados, a única luz que permanecia acesa era a do São Benedito, ou “O Negão”, que era como meu pai o chamava com a maior devoção e fé.

Ele abria e fechava o dia de trabalho pedindo a proteção do santo. Era assim todos os dias. Ainda mais quando tinha algum trabalho grande, cuja jornada ia ser difícil e longa, aí mesmo é que meu pai chamava pelo Negão várias vezes ao dia, invariavelmente olhando para o quadro e estendendo-lhe as mãos durante a jornada. Muitos anos mais tarde, a ótica que meu pai abriu e que funcionou por cerca de 10 anos, ali mesmo no bairro de Ramos, recebeu o nome de Ótica São Benedito. A gente já sabia que seria esse o nome da loja, mas ver o nome escrito lá no alto em letras enormes fazia até a gente se arrepiar.

Algum tempo depois, já no início dos anos 2000, eu fui morar em Florianópolis,. Uma certa tarde caminhando perto da catedral, conheci o Vitor, um jovem rapaz, que tocava viola nas ruas, lindamente, para conseguir uma graninha. Eu sempre parava pra ouvi-lo e quando era possível ele dar uma pausa a gente conversava rapidamente. Eu elogiava o seu desempenho, as músicas escolhidas e depois de ouvir mais um pouco, retomava o meu caminho.

Uma vez ele me contou como tudo começou. Morando em uma comunidade das mais pobres da cidade, um amigo o avisou de um curso de música da prefeitura que era grátis e, o melhor de tudo, não precisava nem ter instrumento. Ele não teve dúvida e foi lá no local fazer a inscrição. Ao preencher o formulário ele se deparou com um item que pedia pra indicar o instrumento que queria ter as aulas. Foi lendo um a um e percebeu que não conhecia a maioria deles. Tinha fagote, trompa, pífano! Depois leu alguns nomes que ele até conhecia, mas que não o interessava em nada: violino, violoncelo e contrabaixo.

Ele mesmo contou:

– Eu já estava desistindo, quando vi ali quase no final da lista, escrito: “viola”. Pensei, pô viola já é mais popular, dá pra fazer um som com os amigos e tal. Marquei lá a tal da viola. Só que eu pensei que era violão. Aí quando chegou na primeira aula, quando o professor me deu a viola, que pra mim parecia um tipo de violino, eu fiquei branco de vergonha. Mas segurei a onda e disse pra mim mesmo: vou fazer essa primeira aula e depois caio fora daqui.

– E aí, o que veio depois? – perguntei adivinhando a resposta.

– Aí eu fiz aquela primeira aula, me apaixonei pelo som da viola, pelo arco, e nunca mais larguei. Ganhei até o instrumento ao final do curso. Aquele som, puro e melodioso, saindo dali das cordas, pertinho do ouvido da gente! É muito bom tocar a viola, meu amigo.

Eu lembro que ri pelos dois motivos, quando ele acabou a narrativa. Pela aflição dele em receber a viola quando esperava por um violão e, depois, pela satisfação e pelo amor dele logo ao primeiro som, quando abraçou o instrumento perto do ouvido. Tem coisas que a gente ouve alguém contar e que é possível ver as imagens claramente, tal como aconteceu.

Um dia o Vitor custou a me cumprimentar. Eu fiquei ali perto, como sempre fazia e nada. Depois de uma pausa ele me chamou pra perto. Pediu desculpas por não ter me reconhecido de pronto e disse que os seus óculos haviam quebrado, e que ele estava com dificuldades de reconhecer as pessoas e, inclusive, não estava nem podendo ler as partituras.

Na mesma hora eu marquei com ele que, no dia seguinte, deveria me trazer a receita, com o exame de vista. Naquela mesma noite, contando a história do Vitor, meu pai disse pra eu levar a receita pra ele assim que fosse ao Rio e ele ia dar de presente ao músico os óculos novinhos. No início da semana seguinte estava eu chegando na casa do meu pai, com a receita do Vitor na palma da mão.

Meu pai a examinou de cima a baixo, me perguntou mais ou menos como eram os óculos antigos dele e na manhã seguinte fomos ao Centro da cidade comprar as lentes e a armação. No caminho ele ia explicando que ainda tinha a inscrição da loja, da ótica, e que mesmo fechada ele ainda tinha o CNPJ dela como válido e assim podia comprar direto do fornecedor.

Aquela compra pro Vitor foi uma viagem no tempo pra mim. A gente revisitou lugares que ainda estavam na minha memória, e nos quais eu mesmo já tinha ido várias vezes pra comprar insumos para a ótica. Lentes, armações, plaquetas, ponteiras, hastes, ferramentas diversas, diamante para cortar as lentes, tudo tinha um lugar específico onde comprar e eu trazia o endereço de cada um, escrito num papel, inclusive com a dica do ônibus que eu devia pegar e o nome da pessoa que eu deveria procurar.

– Filho, e se você tiver dúvida de alguma coisa, entrega esse cartão da ótica pra pessoa e diz pra ela que você é filho do Adelino. Faz isso e vai dar tudo certo.

E sempre deu mesmo, tudo certo.

Nesse dia andamos juntos, pai e filho, pelo Largo de São Francisco, pela Praça Tiradentes, a Rua da Alfândega, Rua do Ouvidor e eu ia lembrando dos lugares que já tinha ido em outras épocas, à serviço da Ótica São Benedito.

Levei pra Floripa os óculos do Vitor e no primeiro dia fui entregar pra ele na frente da Catedral. Ele mal conseguia agradecer, pois só ria, pondo e tirando a armação do rosto, enquanto balbuciava alguma coisa sobre o presente ser tão essencial pra ele.

De noite eu liguei pro meu pai pra contar o sucesso da nossa empreitada. Enquanto a gente falava mandei uma foto do Vitor de óculos novos e com a viola em punho, pro celular da minha mãe, já que o dele era velhinho e nesse tempo não era todo celular que tinha como ver fotos.

Eu disse que o rapaz tinha adorado o presente, que agradeceu demais, que tinha ficado ótimo no rosto dele e que ele queria mandar um grande abraço pro meu pai. Ele então me respondeu:

– Não tem nada disso de me agradecer, não. Agradeça ao Negão. Ao grande São Benedito.

Falou estas palavras e o telefone ficou mudo de repente. Eu chamava pai, pai? E nada. Já estava ficando preocupado, quando minha mãe surgiu dizendo alô.

– Oi, mãe. Meu pai está bem?

– Está tudo bem, filho. É que assim que ele viu a foto do menino com os óculos, começou a chorar e não para mais. Mas tá tudo bem. Acho que é só emoção mesmo. Você sabe como é o seu pai, né?

 

 

Em todas as crônicas que eu menciono o meu pai, uma frase eu sempre uso para descrever o meu mais profundo agradecimento a Deus por ter sido filho dele. A frase é: Meu pai nunca me ensinou nada, mas eu aprendi muito com ele.

Eu sou o filho do Adelino!

 


sábado, 12 de outubro de 2024

Zildinha

 

A primeira vez que eu a vi, ela estava sentada em uma poltrona branca, na sala da casa da Ana. Vestia um terninho cinza com linhas fininhas brancas e no pescoço uma echarpe muito chique, combinando com o terno. Assim que eu entrei e fui acenando e abraçando os amigos, notei que havia quase que uma fila para cumprimentar aquela elegante senhora, ali no canto da sala.

De longe eu percebia que as pessoas mudavam completamente de fisionomia assim que lhe estendiam as mãos e trocavam as primeiras palavras. Alguns a beijavam no rosto, outros nas mãos, e ela devolvia toda a cordialidade com um olhar único de quem te acolhe sem bem te conhecer.

De imediato eu senti saudades da minha mãe, da minha avó e dos meus tempos de infância, quem sabe estreitando uma realidade na qual eu também seria seu filho ou neto. E ali, de longe, esperando uma vaga naquela fila de cumprimentos eu já era, assim como todos, um súdito daquele semblante fraterno e sublime.

Maior ainda foi a minha surpresa ao vivenciar o sentimento que cada um guardou em si, quando foi a minha vez de lhe estender as mãos.

– Dona Zildinha, boa noite. Tudo bem com a senhora?

Ela me olhou fixamente, pôs as mãos suaves na minha barba, fitou os meus cabelos nos dois lados do rosto e com a minha mão entre as suas, disse calmamente:

– Quem é esse moço bonito?

– Sou um amigo do seu filho Ricardo.

– É o Anderson, amigo lá do museu, mamãe.

– Ah, que bonito ele. Lá do museu. Agora sei.

Toda essa cena jamais saiu da minha lembrança. Detalhadamente, sou capaz de sentir e ouvir de novo cada palavra daquela amiga e querida senhora. E todas as vezes que a gente se encontrava eu me preparava para reviver aquela primeira vez, sabendo que talvez para ela, inexoravelmente, tudo aquilo fosse realmente uma primeira vez. Em sua memória a novidade de certos acontecimentos era algo sempre renovável, e certamente era, também, uma nova e renovada chance para ela ser igualmente acolhedora e gentil com cada um de nós, como se a vida fosse eternamente uma sucessão de primeiros encontros.

Penso que essa qualidade de ser especial para tanta gente, coisa que eu fui testemunhando ao longo do convívio, fez da nossa Zildinha alguém assim tão querida e tão Zildinha ao mesmo tempo.

Na fase de criança, recebeu de um dos irmãos o apelido de truquista. Contam que a menina, pra lá de esperta, era faceira em produzir estripulias as mais variadas e depois, diante dos pais, com todo o seu talento, apenas dizia um furtivo "não fui eu, mãe". E nessa hora o irmão Hélio corrigia: "foi ela sim, é uma truquista". Esse era o seu truque preferido! Posso até imaginar aquele olhar piedoso da menina se transmutando em soslaio intrépido para simplesmente escapar dos castigos que certamente a ela se direcionavam. Puro talento dela, disseram.

Zildinha teve sete filhos. A contar pelo outro talento elogioso que desenvolveu, eles devem ter tido muita sorte na vida. A mãe era exímia cozinheira e uma doceira de mão cheia. Tivesse eu a mesma sorte e teria tido a graça de a ter conhecido bem antes, quando ainda exibia esses doces dotes. Digo isso principalmente com relação aos doces, cujos amores e sabores sempre estiveram mais próximos dos meus gostos pessoais.

Lembrei agora que, na minha primeira infância, minha mãe me chamava e, diante das amigas, me perguntava qual era o meu prato preferido. Eu mal falava, mas já sabia responder com firmeza: quindim. E todos riam juntos.

Se por um lado eu lamento não ter chegado a tempo de ver a fase doceira da querida Zildinha, por outro sou agradecido por tê-la conhecido em sua fase artística. Ver os seus trabalhos, suas pinturas e desenhos, que ela se orgulhava em mostrar um a um, era muito bom. Ela andava pela casa com a gente e ia mostrando todos os que ficavam expostos nas paredes, nas luminárias e no abajur. Depois ia na gaveta e trazia os que eram guardados como obras de arte que são, e ia explicando os detalhes, repetindo as frases e nos conduzindo ao mundo dela.

Quando soube da partida da Zildinha, de manhã, bem cedinho, na mesma hora me veio a imagem do seu mirar singelo, que nos olhava firme. Depois, as lembranças do seu sorriso e do semblante de satisfação que mostrou durante a exposição das suas obras no Museu Victor Meirelles, me impediram de ficar triste. Tristeza não combina com Zildinha.

É que ela parte, mas não pra longe. Talvez parta pra dentro. Pra dentro de nós. Talvez a sua lembrança é que se parta, ou reparta, pra ficar um pouco com cada um de nós. Certo é que cada um vai guardar em um lugar especial uma cena, um olhar, um diálogo, um desenho dela, uma foto e, enfim, uma certa música que ela adorava.

Pois como não cantarolar “índia teus cabelos nos ombros caídos” e não sorrir lembrando da voz dela? Quando ela não só cantava, afinadíssima, mas também dançava e seguia bailando sem esquecer nenhum verso da canção. Pois, definitivamente, a tristeza não combina mesmo nada com a nossa Zildinha.

Certamente, nós, que ficamos, estaremos juntando todas essas lembranças, e são muitas, de uma mulher especial, truquista, doceira e artista, que deixou por aqui o leve perfume das mãos que oferecem rosas, das mãos que sabem ser generosas.

E então, quando estivermos leves de saudades, lembraremos mais uma vez do seu olhar singelo, cheio de carinho, e da generosidade que ela sempre soube nos oferecer.

Zildinha podia não lembrar o nosso nome ou quem a gente era, mas nunca esquecia de ser doce e gentil com cada um de nós. Isso ela jamais esqueceu. E nós jamais a esqueceremos.

Que a sua colhida seja de Paz.

Assim seja!

 

 

Ao nosso igualmente querido Ricardo, um grande e fraterno abraço e toda a nossa solidariedade.

Quem cuida de um, cuida do mundo inteiro.