A primeira vez
que eu a vi, ela estava sentada em uma poltrona branca, na sala da casa da Ana.
Vestia um terninho cinza com linhas fininhas brancas e no pescoço uma echarpe
muito chique, combinando com o terno. Assim que eu entrei e fui acenando e
abraçando os amigos, notei que havia quase que uma fila para cumprimentar
aquela elegante senhora, ali no canto da sala.
De longe eu
percebia que as pessoas mudavam completamente de fisionomia assim que lhe
estendiam as mãos e trocavam as primeiras palavras. Alguns a beijavam no rosto,
outros nas mãos, e ela devolvia toda a cordialidade com um olhar único de quem
te acolhe sem bem te conhecer.
De imediato eu
senti saudades da minha mãe, da minha avó e dos meus tempos de infância, quem
sabe estreitando uma realidade na qual eu também seria seu filho ou neto. E
ali, de longe, esperando uma vaga naquela fila de cumprimentos eu já era, assim
como todos, um súdito daquele semblante fraterno e sublime.
Maior ainda
foi a minha surpresa ao vivenciar o sentimento que cada um guardou em si,
quando foi a minha vez de lhe estender as mãos.
– Dona
Zildinha, boa noite. Tudo bem com a senhora?
Ela me olhou
fixamente, pôs as mãos suaves na minha barba, fitou os meus cabelos nos dois
lados do rosto e com a minha mão entre as suas, disse calmamente:
– Quem é esse
moço bonito?
– Sou um amigo
do seu filho Ricardo.
– É o
Anderson, amigo lá do museu, mamãe.
– Ah, que
bonito ele. Lá do museu. Agora sei.
Toda essa cena
jamais saiu da minha lembrança. Detalhadamente, sou capaz de sentir e ouvir de
novo cada palavra daquela amiga e querida senhora. E todas as vezes que a gente
se encontrava eu me preparava para reviver aquela primeira vez, sabendo que
talvez para ela, inexoravelmente, tudo aquilo fosse realmente uma primeira vez.
Em sua memória a novidade de certos acontecimentos era algo sempre renovável, e
certamente era, também, uma nova e renovada chance para ela ser igualmente
acolhedora e gentil com cada um de nós, como se a vida fosse eternamente uma
sucessão de primeiros encontros.
Penso que essa
qualidade de ser especial para tanta gente, coisa que eu fui testemunhando ao
longo do convívio, fez da nossa Zildinha alguém assim tão querida e tão
Zildinha ao mesmo tempo.
Na fase de
criança, recebeu de um dos irmãos o apelido de truquista. Contam que a menina,
pra lá de esperta, era faceira em produzir estripulias as mais variadas e
depois, diante dos pais, com todo o seu talento, apenas dizia um furtivo "não fui eu, mãe". E nessa hora o irmão Hélio corrigia: "foi ela sim, é uma truquista". Esse era o seu truque preferido! Posso até imaginar aquele olhar piedoso
da menina se transmutando em soslaio intrépido para simplesmente escapar dos
castigos que certamente a ela se direcionavam. Puro talento dela, disseram.
Zildinha teve sete
filhos. A contar pelo outro talento elogioso que desenvolveu, eles devem ter
tido muita sorte na vida. A mãe era exímia cozinheira e uma doceira de mão
cheia. Tivesse eu a mesma sorte e teria tido a graça de a ter conhecido bem
antes, quando ainda exibia esses doces dotes. Digo isso principalmente com
relação aos doces, cujos amores e sabores sempre estiveram mais próximos dos
meus gostos pessoais.
Lembrei agora
que, na minha primeira infância, minha mãe me chamava e, diante das amigas, me
perguntava qual era o meu prato preferido. Eu mal falava, mas já sabia
responder com firmeza: quindim. E todos riam juntos.
Se por um lado
eu lamento não ter chegado a tempo de ver a fase doceira da querida Zildinha,
por outro sou agradecido por tê-la conhecido em sua fase artística. Ver os seus
trabalhos, suas pinturas e desenhos, que ela se orgulhava em mostrar um a um,
era muito bom. Ela andava pela casa com a gente e ia mostrando todos os que
ficavam expostos nas paredes, nas luminárias e no abajur. Depois ia na gaveta e
trazia os que eram guardados como obras de arte que são, e ia explicando os
detalhes, repetindo as frases e nos conduzindo ao mundo dela.
Quando soube
da partida da Zildinha, de manhã, bem cedinho, na mesma hora me veio a imagem
do seu mirar singelo, que nos olhava firme. Depois, as lembranças do seu sorriso
e do semblante de satisfação que mostrou durante a exposição das suas obras no
Museu Victor Meirelles, me impediram de ficar triste. Tristeza não combina com
Zildinha.
É que ela
parte, mas não pra longe. Talvez parta pra dentro. Pra dentro de nós. Talvez a
sua lembrança é que se parta, ou reparta, pra ficar um pouco com cada um de
nós. Certo é que cada um vai guardar em um lugar especial uma cena, um olhar,
um diálogo, um desenho dela, uma foto e, enfim, uma certa música que ela
adorava.
Pois como não
cantarolar “índia teus cabelos nos ombros caídos” e não sorrir lembrando da voz
dela? Quando ela não só cantava, afinadíssima, mas também dançava e seguia
bailando sem esquecer nenhum verso da canção. Pois, definitivamente, a tristeza
não combina mesmo nada com a nossa Zildinha.
Certamente,
nós, que ficamos, estaremos juntando todas essas lembranças, e são muitas, de
uma mulher especial, truquista, doceira e artista, que deixou por aqui o
leve perfume das mãos que oferecem rosas, das mãos que sabem ser generosas.
E então,
quando estivermos leves de saudades, lembraremos mais uma vez do seu olhar
singelo, cheio de carinho, e da generosidade que ela sempre soube nos oferecer.
Zildinha podia
não lembrar o nosso nome ou quem a gente era, mas nunca esquecia de ser doce e
gentil com cada um de nós. Isso ela jamais esqueceu. E nós jamais a
esqueceremos.
Que a sua
colhida seja de Paz.
Assim seja!
Ao nosso
igualmente querido Ricardo, um grande e fraterno abraço e toda a nossa solidariedade.
Quem cuida de
um, cuida do mundo inteiro.
Que linda crônica, Anderson. É tão verdadeira! Encontrar com a Zilda era um acontecimento, esse jeito carinhoso dela de amar o outro. Sempre paquerando a todos, homens e mulheres, para poder exaltar a beleza das pessoas. Acho que no céu tem festa essa semana e todos vão querer dançar com ela. Foi um privilégio imenso conviver com ela e com o Ricardo durante as filmagens de O Artista Mãe. Um abraço pra vcs todos, que são de certa forma uma continuidade da Zilda.
ResponderExcluirRetratou em palavras a Zildinha. Emocionante.
ResponderExcluirLindo, Anderson.
ResponderExcluirQuerido Anderson, gracias por darnos en tus palabras ese aroma y sensación de amor amable que nos transmitía la señora Zildinha, ella ahora descanse en paz haciendo una fiesta en el cielo, mientras Ricardo respira y vive en la certeza de haber dado a su madre el mejor tiempo posible, su compañía llena de amor y arte en cada minuto. Gracias a
ResponderExcluirnuestros queridos Silvana, Hans, Thais y todos los que han hecho el hermoso trabajo de recrear en un filme está vida de amor permanente y siempre de primera vez. Gracias señora Zildinha, fue hermoso conocerla, tomar sus manos, bailar y caminar un poquito juntas. descanse en paz