O santo negro
mais famoso da igreja católica era o santo preferido do meu pai. Desde sempre,
ele tinha uma oficina de ótica em casa, onde cortava e lapidava as lentes e
depois montava as armações. Nessa época ele trabalhava para uma grande empresa
que vendia esses óculos para as grandes lojas.
Me lembro que,
quando era possível, eu também ajudava em alguma fase dessa, digamos, linha de
montagem, instalada em uma espécie de barracão, todo de madeira, que ficava nos
fundos da casa do meu avô, onde a gente morava.
São Benedito
sempre esteve no alto da parede principal dessa oficina, com uma luzinha verde
a iluminar a sua imagem emoldurada, onde se via o Santo com o menino Jesus nos
braços. Quando todas as luzes da oficina eram desligadas e os trabalhos do dia
encerrados, a única luz que permanecia acesa era a do São Benedito, ou “O
Negão”, que era como meu pai o chamava com a maior devoção e fé.
Ele abria e
fechava o dia de trabalho pedindo a proteção do santo. Era assim todos os dias.
Ainda mais quando tinha algum trabalho grande, cuja jornada ia ser difícil e
longa, aí mesmo é que meu pai chamava pelo Negão várias vezes ao dia,
invariavelmente olhando para o quadro e estendendo-lhe as mãos durante a
jornada. Muitos anos mais tarde, a ótica que meu pai abriu e que funcionou por
cerca de 10 anos, ali mesmo no bairro de Ramos, recebeu o nome de Ótica São
Benedito. A gente já sabia que seria esse o nome da loja, mas ver o nome
escrito lá no alto em letras enormes fazia até a gente se arrepiar.
Algum tempo
depois, já no início dos anos 2000, eu fui morar em Florianópolis,. Uma certa
tarde caminhando perto da catedral, conheci o Vitor, um jovem rapaz, que tocava
viola nas ruas, lindamente, para conseguir uma graninha. Eu sempre parava pra
ouvi-lo e quando era possível ele dar uma pausa a gente conversava rapidamente.
Eu elogiava o seu desempenho, as músicas escolhidas e depois de ouvir mais um
pouco, retomava o meu caminho.
Uma vez ele me
contou como tudo começou. Morando em uma comunidade das mais pobres da cidade,
um amigo o avisou de um curso de música da prefeitura que era grátis e, o
melhor de tudo, não precisava nem ter instrumento. Ele não teve dúvida e foi lá
no local fazer a inscrição. Ao preencher o formulário ele se deparou com um
item que pedia pra indicar o instrumento que queria ter as aulas. Foi lendo um
a um e percebeu que não conhecia a maioria deles. Tinha fagote, trompa, pífano!
Depois leu alguns nomes que ele até conhecia, mas que não o interessava em
nada: violino, violoncelo e contrabaixo.
Ele mesmo contou:
– Eu já estava
desistindo, quando vi ali quase no final da lista, escrito: “viola”. Pensei, pô
viola já é mais popular, dá pra fazer um som com os amigos e tal. Marquei lá a
tal da viola. Só que eu pensei que era violão. Aí quando chegou na primeira
aula, quando o professor me deu a viola, que pra mim parecia um tipo de
violino, eu fiquei branco de vergonha. Mas segurei a onda e disse pra mim
mesmo: vou fazer essa primeira aula e depois caio fora daqui.
– E aí, o que
veio depois? – perguntei adivinhando a resposta.
– Aí eu fiz
aquela primeira aula, me apaixonei pelo som da viola, pelo arco, e nunca mais
larguei. Ganhei até o instrumento ao final do curso. Aquele som, puro e melodioso,
saindo dali das cordas, pertinho do ouvido da gente! É muito bom tocar a viola,
meu amigo.
Eu lembro que
ri pelos dois motivos, quando ele acabou a narrativa. Pela aflição dele em
receber a viola quando esperava por um violão e, depois, pela satisfação e pelo
amor dele logo ao primeiro som, quando abraçou o instrumento perto do ouvido.
Tem coisas que a gente ouve alguém contar e que é possível ver as imagens
claramente, tal como aconteceu.
Um dia o Vitor
custou a me cumprimentar. Eu fiquei ali perto, como sempre fazia e nada. Depois
de uma pausa ele me chamou pra perto. Pediu desculpas por não ter me
reconhecido de pronto e disse que os seus óculos haviam quebrado, e que ele
estava com dificuldades de reconhecer as pessoas e, inclusive, não estava nem
podendo ler as partituras.
Na mesma hora
eu marquei com ele que, no dia seguinte, deveria me trazer a receita, com o
exame de vista. Naquela mesma noite, contando a história do Vitor, meu pai
disse pra eu levar a receita pra ele assim que fosse ao Rio e ele ia dar de
presente ao músico os óculos novinhos. No início da semana seguinte estava eu
chegando na casa do meu pai, com a receita do Vitor na palma da mão.
Meu pai a
examinou de cima a baixo, me perguntou mais ou menos como eram os óculos
antigos dele e na manhã seguinte fomos ao Centro da cidade comprar as lentes e
a armação. No caminho ele ia explicando que ainda tinha a inscrição da loja, da
ótica, e que mesmo fechada ele ainda tinha o CNPJ dela como válido e assim
podia comprar direto do fornecedor.
Aquela compra
pro Vitor foi uma viagem no tempo pra mim. A gente revisitou lugares que ainda
estavam na minha memória, e nos quais eu mesmo já tinha ido várias vezes pra
comprar insumos para a ótica. Lentes, armações, plaquetas, ponteiras, hastes, ferramentas
diversas, diamante para cortar as lentes, tudo tinha um lugar específico onde
comprar e eu trazia o endereço de cada um, escrito num papel, inclusive com a dica do
ônibus que eu devia pegar e o nome da pessoa que eu deveria procurar.
– Filho, e se
você tiver dúvida de alguma coisa, entrega esse cartão da ótica pra pessoa e
diz pra ela que você é filho do Adelino. Faz isso e vai dar tudo certo.
E sempre deu
mesmo, tudo certo.
Nesse dia
andamos juntos, pai e filho, pelo Largo de São Francisco, pela Praça
Tiradentes, a Rua da Alfândega, Rua do Ouvidor e eu ia lembrando dos lugares
que já tinha ido em outras épocas, à serviço da Ótica São Benedito.
Levei pra
Floripa os óculos do Vitor e no primeiro dia fui entregar pra ele na frente da
Catedral. Ele mal conseguia agradecer, pois só ria, pondo e tirando a armação
do rosto, enquanto balbuciava alguma coisa sobre o presente ser tão essencial
pra ele.
De noite eu
liguei pro meu pai pra contar o sucesso da nossa empreitada. Enquanto a gente
falava mandei uma foto do Vitor de óculos novos e com a viola em punho, pro
celular da minha mãe, já que o dele era velhinho e nesse tempo não era todo
celular que tinha como ver fotos.
Eu disse que o
rapaz tinha adorado o presente, que agradeceu demais, que tinha ficado ótimo no
rosto dele e que ele queria mandar um grande abraço pro meu pai. Ele então me
respondeu:
– Não tem nada
disso de me agradecer, não. Agradeça ao Negão. Ao grande São Benedito.
Falou estas
palavras e o telefone ficou mudo de repente. Eu chamava pai, pai? E nada. Já
estava ficando preocupado, quando minha mãe surgiu dizendo alô.
– Oi, mãe. Meu
pai está bem?
– Está tudo
bem, filho. É que assim que ele viu a foto do menino com os óculos, começou a
chorar e não para mais. Mas tá tudo bem. Acho que é só emoção mesmo. Você sabe
como é o seu pai, né?
Em todas as
crônicas que eu menciono o meu pai, uma frase eu sempre uso para descrever o
meu mais profundo agradecimento a Deus por ter sido filho dele. A frase é: Meu
pai nunca me ensinou nada, mas eu aprendi muito com ele.
Eu sou o filho
do Adelino!
Que maravilha! Toca nossos corações. Lengo
ResponderExcluirQue crônica mais amorosa!!! Adoro ler suas crônicas, Anderson. Abraços desde longe, Silvana
ResponderExcluirMuito bom meu caro Anderson! Leio tua crônica um dia após o aniversário de meu falecido pai! Enquanto lia também viajei para um saudoso passado ao lado do meu velho, com quem aprendi muito. Grande abraço. (Zeh - Sintrafesc)
ResponderExcluirMaravilha, Anderson! Parabéns!
ResponderExcluirJ. Tabacow
ExcluirSim é mesmo a melhor de todas que já li meu irmão. O pai ficaria muito feliz... Eu sei pois vivi junto contigo tudo isso que descreve com tanta destreza. Obrigado.
ResponderExcluirÀ resposta da tua mãe sobre o estado emocional do teu pai, me emocionei também.
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