No terceiro
gol do Brasil, com Jairzinho marcando o que seria o prenúncio da goleada
histórica por 4 a 1 frente a Itália, notei que começou a chegar gente lá em
casa. Primeiro veio o Sabu, depois o Peri com o Nonoca, mais tarde chegou o
Vinagre, o Augustão e o Bibi, este último o único sambista de carteirinha da
vizinhança.
Sabu era
soldador profissional, Peri era capoeirista e Nonoca professor de Português.
Vinagre era o mais velho e tinha um comércio pequeno na avenida. Ali vendia uma
miscelânea curiosa de objetos, plásticos, louças e utilidades afins. No meio
dessa barafunda eclética de especialidades o Augustão era puro paradoxo. Um
preto retinto, alto, fortão, com um bigode típico de policial mal encarado.
Policial ele até era. Mal encarado jamais. Principalmente quando a gente
passava pelo Largo da Segunda-Feira, onde ele era a autoridade de trânsito da
área. Ali ele dava expediente, trajando com orgulho uma farda impecável e soprando
frenético o seu apito. Quando reconhecia algum amigo passando por ali, abria um
enorme sorriso, super branco, que nos fazia sorrir e acenar de volta.
Pois essa
turma entrou sala adentro e foi logo explicando pro meu pai que a ideia era
organizar, antes mesmo do final do jogo, os instrumentos da bateria. Tão logo
fosse concretizada a peleja lá no México, o bloco de carnaval sairia pelas ruas
celebrando o tão almejado Tricampeonato Mundial.
Bem, não deu
quinze minutos e Carlos Alberto fez o quarto gol, o mais histórico daquela
Copa, recebendo passe de ninguém menos que Pelé. Até o apito final a batucada
já estava instalada na porta de casa, convidando todo o bairro pra festejar.
Cada um que
chegava trazia uma bandeira, uma camisa da seleção ou um instrumento qualquer
de percussão. Em direção à rua principal, o cordão foi ganhando espaço e o
trânsito começava a ser desviado. Era gente, muita gente. A essa altura já
tinha cornetas, pistons e até arriscaria dizer trombones, embora ninguém
soubesse de onde eles tinham saído.
Um pouco mais
para trás do bloco, já enorme, minha mãe levava a mim e meu irmão, cada um em
uma mão, de onde a gente só saía por poucos segundos, pra voltar novamente ao
seu lado. De repente uma movimentação que parecia ser um tumulto, um princípio
de briga e logo se abriu um clarão. De pronto minha mãe percebeu que meu pai
estava no meio da confusão. Ao chegarmos mais perto eu comecei a entender que
alguns homens estavam prendendo o meu pai. Eram policiais à paisana, ao que
tudo indica armados, que tentavam imobilizar os braços do meu pai, o deslocando
para a calçada, perto do muro de uma casa.
Eu tinha uns
nove anos e estava em pânico diante daquela cena. Alguns dos amigos que estavam
no bloco também foram até lá e eu os vi gesticulando com os guardas,
argumentando contra aquela prisão. Eles não tinham qualquer identificação,
nada. Perguntados sobre a razão da detenção ou para onde iriam levá-lo,
desconversavam e não davam qualquer satisfação. Nem pra minha mãe que se
apresentou como sua esposa.
Atônito e já
quase algemado, meu pai estava apavorado e não tinha nada que alguém pudesse
fazer, ali no canto da rua, imobilizado de costas para a parede, com todos
aqueles policiais em volta. De repente, aparece o Augustão, emergindo do meio
da folia. Já chegou mostrando as suas credenciais de policial e disse aos
colegas que conhecia o meu pai e passou a pedir esclarecimentos sobre a
ocorrência.
De pronto
todos nós sentimos uma sensível mudança na abordagem que se desenrolava. Então
o Augustão mostrou onde meu pai morava, apontou até a nossa casa, de número 3. Depois seguiu informando que se tratava de um trabalhador, do ramo de ótica e nos
apontou como sendo sua família. Em um determinado ponto os ânimos foram se
acalmando por completo, até que por fim soltaram o meu pai e asseguraram que
tudo não tinha passado de um engano, um mal entendido, pois meu pai não era a
pessoa que eles estavam procurando.
Ninguém voltou
ao bloco do Tri. Fomos todos lá pra casa, fatigados e ainda bem assustados.
Minha mãe preparou um café e entre os agradecimentos ao Augustão, ficamos cada qual com sua consciência, imaginando até onde tudo aquilo poderia ter ido sem a
intervenção salvadora do amigo policial.
Quando eu
assisti a Ainda Estou Aqui, toda essa história veio rápida à minha
lembrança. Nítida e também melancólica. Pois realmente não dá pra imaginar,
diante do monstro da ditadura – essa ditadura que muitos jovens alegres e
alienados optam por ignorar –, qual teria sido o destino do meu pai, entre
tantos pais, como o pai do Marcelo, o Rubens Paiva. Era uma ida sem volta para todos
nós. Como tantas outras que aconteceram, com seus horrores. Que extirparam
famílias e suas relações para todo o sempre.
Por fim, no espaço entre as minhas lembranças e as celebrações do Prêmio Globo de Ouro, ontem fez 10 anos do passamento do meu pai. Exatamente dia 5 de janeiro. Dia histórico para a Cultura Brasileira, um dia memorável para o cinema e a arte nacionais. O Dia da Fernanda. Um dia em que uma atriz, a melhor filha atriz da melhor mãe atriz brasileira chegou ao topo, ao prêmio máximo da cinematografia mundial. E teve fogos nas cidades, nos grandes centros. Gritos de vitória, de gol, de comemorações de todas as artes. Foi uma noite de festa em todos os teatros, palcos e telas desse país.
E o Brasil todo acordou hoje com o abraço da arte premiada das Fernandas, a filha e a mãe. Cada qual uma Eunice Paiva de seu tempo. Sempre forte e altiva, lutadora e militante. Uma mulher que merecia também uma data só dela.
Em uma das suas entrevistas, hoje pela manhã, Fernandinha disse que tudo parecia com uma Copa do Mundo, um clima de Copa, uma comemoração de Copa. Um clima de união pela arte e pelo cinema. E ela estava certa, mais uma vez.
Que o Dia da
Fernanda, o 5 de janeiro, seja o início do reencontro do Brasil consigo mesmo,
com a democracia e com sua história.
Salve Eunice
Paiva.
Salve Fernanda
Montenegro.
Salve Fernanda
Torres.
Para todo o
sempre!
Parabéns!! Mais uma bela crônica, cheia de sensibilidade e amorosidade. Fui ver o filme com a minha filha que hoje é estudante de História na UFF. Saí muito impactada com a dor contida da Eunice, com a ausência daquele pai. A atuação da Fernanda foi impecável. Mas para mim... O resgaste da memória desses anos de chumbo é o legado maior. O Brasil precisava rever, reviver para não esquecer.
ResponderExcluirLeandra Ferreira Bento.
ResponderExcluirLinda crônica!
ResponderExcluirEu sou o irmão que estava lá de mãos dadas com nossa mãe Jurema na hora da prisão de nosso pai o Adelino. Realmente e meu irmão Anderson sabe bem disso, não lembro de nada disso... Porém tenho o privilégio de ter um escritor de nossas vidas bem ao alcance da mão. Te amo meu querido irmão e obrigado pela estória aqui tão bem contada.
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