sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O Novo Síndico


Bem diferente dizer síndico novo e novo síndico. Na segunda sentença diz-se do indivíduo recém eleito, que foi alçado ao cargo recentemente, revelando-se em uma nova opção. Já no primeiro modelo, trata-se de um síndico cuja idade se refere a alguém imberbe, um jovem aspirante na vida condominial.

Foi essa a conversa que eu presenciei dentro do elevador entre duas senhoras idosas, moradoras de primeira hora daquele edifício, do Centro da cidade. Ao mesmo tempo em que frisavam a diferença entre as duas questões, não deixavam de expor o seu descontentamento com um “moço que nada sabe da vida” vir querer administrar um condomínio, “veja a senhora, o absurdo”.

A outra, que antes apenas concordava, suspirou com intensidade e, olhando-se no espelho, alertou que só nos resta esperar, já que foi a vontade da maioria e, como “sou sempre pelo culto à democracia”, temos de respeitar a vontade dos vizinhos, registrada na assembleia de eleição.

Eu não sabia quem era o síndico novo, tampouco sabia de onde estava vindo aquela inquietação com o tal eleito. Talvez fosse pelo síndico, o cargo em si, talvez fosse pelo “novo”, a idade ou a falta dela, quando se trata de experiência para se ocupar um cargo de administração, seja ele qual for.

Era um prédio antigo, de 12 pavimentos, com corredores amplos nos andares, onde ficavam os elevadores e também as escadas, igualmente amplas e bem iluminadas. Não havia porta corta fogo, pela própria construção da edificação, de tal modo que as escadas ficavam à vista, bem em frente aos elevadores.

Pois bem, é justamente nesse espaço descrito, ou seja, no alto da escada de cada andar, onde ficava uma grande lixeira, um recipiente plástico, devidamente tampado e que fora instalado fazia tempo. Toda tarde vinha um funcionário da limpeza recolher o saco de lixo correspondente, andar por andar.

Uma certa manhã, a surpresa chegou a cavalo. Por ordem do novo síndico, que também era o síndico novo, as tais lixeiras haviam sido recolhidas. No elevador podia-se ler a nova instrução alertando que, daquele dia em diante, os condôminos deveriam levar os seus próprios sacos de lixo até o térreo e depositar no coletor principal do prédio, que era quase um container, de tão grande.

Não sei se devido à minha pouca circulação pelas dependências do edifício ou talvez por minha seletiva desatenção, eu posso jurar que não vi ninguém a reclamar da tal nova medida, aquela recém exarada pelo novo ocupante da governança condominial. Pelo que pude perceber, as pessoas simplesmente passaram a cumprir a regra, ou seja, levar o seu lixo ao local indicado e o bailarico se foi improvisando a contento.

O tempo passou conforme Cazuza um dia cantou. Nesse período as portas das garagens foram lubrificadas, os interfones reparados, algumas luzes substituídas e até o tapete do saguão foi trocado. O síndico novo era só satisfação.

Foi então que, subitamente, sem qualquer notificação e sem aquele famoso aviso no elevador, de repente as lixeiras dos andares voltaram aos seus lugares. Eu ia escrever devidos lugares, mas quem sou eu pra discorrer sobre o que é devido ou não, frente a um síndico novo, formado em Administração pela universidade federal e que, dotado de muitos predicados, vinha fazendo um excelente trabalho à frente daquele tão almejado cargo?

Diante daquele fato, daquele recuo nas determinações sapientes do novo administrador, a minha curiosidade aflorou como nunca antes na história desse país – ah, desculpa, essa frase é de uma outra crônica. Pois eu fiquei com uma enorme pulga pra saber a razão da volta daquelas lixeiras, até então tidas quase como uma plataforma de campanha daquela eleição, me disseram a certa altura. O meu vizinho de porta então, que já tinha sido síndico – nos primórdios, como ele mesmo disse –, ficou em pontas de agulha, querendo desvendar a nova determinação que pegou a todos no contrapé.

A vida leva e traz, a vida faz e desfaz, já dizia o poeta Miguel Wisnik. E foi exatamente esses versos que me vieram à cabeça quando entrei no elevador, indo pro trabalho. As mesmas duas senhoras, novamente lá estavam.

– Eu acho que se você quer mudar alguma coisa, é preciso saber primeiro porque aquela coisa está daquele jeito. Aí sim, depois você avalia se o que você quer mudar faz sentido – disse uma delas.

– Isso. Mudar só por mudar não garante nada.

– E sem ouvir ninguém, olha o absurdo! Chegou aqui num dia e no outro já quer ser o tal?

– Agora voltou com as lixeiras e finalmente entendeu a razão de elas estarem ali.

– Entendeu, não. Aprendeu.

– Verdade. Aprendeu. Até os jovens precisam aprender de vez em quando e parar de achar que sabem de tudo.

Elas deram um sorriso de vitória e eu me despedi com um bom dia protocolar, enquanto escondia o meu riso de canto de boca.

Mas a história ainda estava incompleta para mim. Faltava o toque de mestre, o tópico que teria feito o síndico se curvar à realidade. Uma realidade cruel, como eu vim a saber depois, mas que pode ser explicada na própria existência humana.

A peculiaridade daquele prédio era que ali residiam muitos idosos, muita gente que morava ali era sozinha e já de idade avançada. O benefício de ter uma lixeira no próprio andar facilitava a vida dessas pessoas, pois bastava ir até a frente da escada e deixar o seu lixo, sem precisar andar muito e sem ter a necessidade de usar o elevador para ir até a lixeira principal, no térreo.

Com a retirada delas, isso não só passou a obrigar a todos a cumprir esse novo e longo trajeto, mas principalmente, desajustou o que estava dando certo. É que os idosos, na maioria das vezes, não percebiam quando seus sacos de lixo estavam vazando algum líquido. E esses líquidos são ótimos em produzir mal cheiro, um mal cheiro que agora estava tomando todos os andares do prédio, o saguão e também os elevadores.

Por mais que os abnegados funcionários da limpeza se esforçassem, o cheiro impregnava cada vez mais. E eles passaram a limpar duas vezes por dia, aplicavam desinfetantes, jogavam desengordurantes perfumados de todas as marcas e nada, o cheiro continuava firme e forte. Foi um alívio para eles quando souberam que as lixeiras iam finalmente retornar, para encerrar aquela luta insana.

Tudo enfim parecia ter voltado à normalidade. Foi pura sorte a minha quando, dois dias depois, eu entrei no elevador e não tinha ninguém.  No mesmo instante eu reparei que onde se colocavam os avisos havia um papel e nele estava escrito uma única e curta frase: “A Vida Ensina”. Nossa, eu quase aplaudi. Aquela sutileza! Quase dei um pulo no elevador vazio.

Na mesma hora eu pensei nas velhinhas. Ou nos velhinhos. Em todos eles, enfim. Em todas as pessoas que tinham alguma dificuldade de deslocamento e mobilidade.

Não sei quanto tempo aquele “aviso” ficou ecoando ali, clandestino.

Mas ninguém se atreveu a retirar o papel de dentro do elevador.

 

 


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A Copa do Mundo da Fernanda Torres

 

No terceiro gol do Brasil, com Jairzinho marcando o que seria o prenúncio da goleada histórica por 4 a 1 frente a Itália, notei que começou a chegar gente lá em casa. Primeiro veio o Sabu, depois o Peri com o Nonoca, mais tarde chegou o Vinagre, o Augustão e o Bibi, este último o único sambista de carteirinha da vizinhança.

Sabu era soldador profissional, Peri era capoeirista e Nonoca professor de Português. Vinagre era o mais velho e tinha um comércio pequeno na avenida. Ali vendia uma miscelânea curiosa de objetos, plásticos, louças e utilidades afins. No meio dessa barafunda eclética de especialidades o Augustão era puro paradoxo. Um preto retinto, alto, fortão, com um bigode típico de policial mal encarado. Policial ele até era. Mal encarado jamais. Principalmente quando a gente passava pelo Largo da Segunda-Feira, onde ele era a autoridade de trânsito da área. Ali ele dava expediente, trajando com orgulho uma farda impecável e soprando frenético o seu apito. Quando reconhecia algum amigo passando por ali, abria um enorme sorriso, super branco, que nos fazia sorrir e acenar de volta.

Pois essa turma entrou sala adentro e foi logo explicando pro meu pai que a ideia era organizar, antes mesmo do final do jogo, os instrumentos da bateria. Tão logo fosse concretizada a peleja lá no México, o bloco de carnaval sairia pelas ruas celebrando o tão almejado Tricampeonato Mundial.

Bem, não deu quinze minutos e Carlos Alberto fez o quarto gol, o mais histórico daquela Copa, recebendo passe de ninguém menos que Pelé. Até o apito final a batucada já estava instalada na porta de casa, convidando todo o bairro pra festejar.

Cada um que chegava trazia uma bandeira, uma camisa da seleção ou um instrumento qualquer de percussão. Em direção à rua principal, o cordão foi ganhando espaço e o trânsito começava a ser desviado. Era gente, muita gente. A essa altura já tinha cornetas, pistons e até arriscaria dizer trombones, embora ninguém soubesse de onde eles tinham saído.

Um pouco mais para trás do bloco, já enorme, minha mãe levava a mim e meu irmão, cada um em uma mão, de onde a gente só saía por poucos segundos, pra voltar novamente ao seu lado. De repente uma movimentação que parecia ser um tumulto, um princípio de briga e logo se abriu um clarão. De pronto minha mãe percebeu que meu pai estava no meio da confusão. Ao chegarmos mais perto eu comecei a entender que alguns homens estavam prendendo o meu pai. Eram policiais à paisana, ao que tudo indica armados, que tentavam imobilizar os braços do meu pai, o deslocando para a calçada, perto do muro de uma casa.

Eu tinha uns nove anos e estava em pânico diante daquela cena. Alguns dos amigos que estavam no bloco também foram até lá e eu os vi gesticulando com os guardas, argumentando contra aquela prisão. Eles não tinham qualquer identificação, nada. Perguntados sobre a razão da detenção ou para onde iriam levá-lo, desconversavam e não davam qualquer satisfação. Nem pra minha mãe que se apresentou como sua esposa.

Atônito e já quase algemado, meu pai estava apavorado e não tinha nada que alguém pudesse fazer, ali no canto da rua, imobilizado de costas para a parede, com todos aqueles policiais em volta. De repente, aparece o Augustão, emergindo do meio da folia. Já chegou mostrando as suas credenciais de policial e disse aos colegas que conhecia o meu pai e passou a pedir esclarecimentos sobre a ocorrência.

De pronto todos nós sentimos uma sensível mudança na abordagem que se desenrolava. Então o Augustão mostrou onde meu pai morava, apontou até a nossa casa, de número 3. Depois seguiu informando que se tratava de um trabalhador, do ramo de ótica e nos apontou como sendo sua família. Em um determinado ponto os ânimos foram se acalmando por completo, até que por fim soltaram o meu pai e asseguraram que tudo não tinha passado de um engano, um mal entendido, pois meu pai não era a pessoa que eles estavam procurando.

Ninguém voltou ao bloco do Tri. Fomos todos lá pra casa, fatigados e ainda bem assustados. Minha mãe preparou um café e entre os agradecimentos ao Augustão, ficamos cada qual com sua consciência, imaginando até onde tudo aquilo poderia ter ido sem a intervenção salvadora do amigo policial.

Quando eu assisti a Ainda Estou Aqui, toda essa história veio rápida à minha lembrança. Nítida e também melancólica. Pois realmente não dá pra imaginar, diante do monstro da ditadura – essa ditadura que muitos jovens alegres e alienados optam por ignorar –, qual teria sido o destino do meu pai, entre tantos pais, como o pai do Marcelo, o Rubens Paiva. Era uma ida sem volta para todos nós. Como tantas outras que aconteceram, com seus horrores. Que extirparam famílias e suas relações para todo o sempre.

Por fim, no espaço entre as minhas lembranças e as celebrações do Prêmio Globo de Ouro, ontem fez 10 anos do passamento do meu pai. Exatamente dia 5 de janeiro. Dia histórico para a Cultura Brasileira, um dia memorável para o cinema e a arte nacionais. O Dia da Fernanda. Um dia em que uma atriz, a melhor filha atriz da melhor mãe atriz brasileira chegou ao topo, ao prêmio máximo da cinematografia mundial. E teve fogos nas cidades, nos grandes centros. Gritos de vitória, de gol, de comemorações de todas as artes. Foi uma noite de festa em todos os teatros, palcos e telas desse país.

E o Brasil todo acordou hoje com o abraço da arte premiada das Fernandas, a filha e a mãe. Cada qual uma Eunice Paiva de seu tempo. Sempre forte e altiva, lutadora e militante. Uma mulher que merecia também uma data só dela.

Em uma das suas entrevistas, hoje pela manhã, Fernandinha disse que tudo parecia com uma Copa do Mundo, um clima de Copa, uma comemoração de Copa. Um clima de união pela arte e pelo cinema. E ela estava certa, mais uma vez.

Que o Dia da Fernanda, o 5 de janeiro, seja o início do reencontro do Brasil consigo mesmo, com a democracia e com sua história.

Salve Eunice Paiva.

Salve Fernanda Montenegro.

Salve Fernanda Torres.

Para todo o sempre!