sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A Senha


Djair era o chefe e Alcides o comparsa. Estavam os dois na rua caçando oportunidades pra roubar alguma coisa, de alguém ou de alguma loja, quem sabe um motorista desatento com o celular ou um relógio pra fora da janela, enfim, algo que lhes rendesse algum trocado ao fim do dia exaustivo de trabalho. Sim, para a dupla isso era um dia de trabalho.

As maiores desvantagens desses dois eram, primeiro que não tinham uma arma. Sim, porque com uma arma na mão pode-se exigir, com muito mais facilidade, que alguém lhe ceda a bolsa em troca da vida, evidentemente. A segunda era a falta, ampla e completa, de alguma inteligência. Como dizia o meu pai, qualquer um dos dois que tropeçasse, na mesma hora lhe cresceriam rabo e enorme orelha, tamanha a propensão para o animal que ilustra o imaginário da tal ausência de intelecto.

Andavam a perambular os dois pelo Centro da cidade, até que entraram num banco. Não dava pra declinar da temperatura convidativa daquele ar-condicionado. Eu morreria aqui mesmo, pensou o Alcides, ajeitando o topete engomado que lhe caía na testa. Naquele clima de montanha, analisando o ambiente, quase que escolhendo a vítima, eles pegaram senha e sentaram junto dos idosos em uma das cadeiras que também são alinhadas como uma fila, justamente para falar com o gerente.

O seu Inocêncio, quando chegou a sua vez, deixou cair um envelope que ficou escondido no canto da cadeira, ao lado do braço. Mais rápido do que pensar num golpe de estado, Djair surrupiou o envelope e o mocozeou devidamente, como fazem aliás os experientes meliantes.

Pra disfarçar, foram até o bebedouro, sorveram uma água geladinha, cumprimentaram o segurança e saíram calmamente do banco. Um guarda disse ao outro que o bandido se reconhece pela preocupação com os guardas. “Estão sempre nos olhando, os nossos movimentos”. O outro respondeu que tinha percebido um deles nessa atitude suspeita. “Aquele que tinha cara de fuinha”. Ao que o outro riu e finalizou dizendo que ficou na mesma, pois “ambos tinham uma baita cara de fuinha”. E a risada teve de ser contida, afinal estavam em serviço.

Naquela mesma manhã, de posse do envelope do seu Inocêncio, a dupla engendrou o golpe. Não o de estado. O do seu Inocêncio, cujo envelope “perdido” no banco continha não só o cartão de crédito, mas também os dados da sua conta, o nome do gerente e o seu telefone. Mas, seu Inocêncio...?

– Alô, boa tarde. É o senhor Inocêncio?

– Boa tarde. Sim, sou eu.

– Seu Inocêncio, o senhor perdeu o seu cartão do banco hoje pela manhã, não é mesmo? Aqui, quem está falando é o seu gerente. Nós achamos o seu cartão dentro do terminal de saque eletrônico. Estava dentro do próprio caixa.

– Ah, que bom que vocês o encontraram. Que alívio. Eu posso ir até aí buscar, mais tarde?

– Olha, seu Inocêncio, isso não vai ser possível. É que dado o sinistro, a perda do cartão, nós vamos ter de cancelar este e lhe fornecer um outro. Mas é inteiramente gratuito, entendeu?

– Ah, sim. Outras vezes que eu perdi o cartão e depois achei, aqui em casa mesmo, ele teve de ser cancelado também.

– Isso mesmo. É o procedimento. Mas seu Inocêncio, pra cancelar esse cartão e fazer a solicitação do novo eu preciso confirmar uns dados seus, ok?

– Ok. Perfeitamente. Quais dados?

– Bem, o número da sua conta, a agência e número do cartão.

– Espere um pouco que eu tenho tudo anotado aqui na minha agenda.

– Pois não, seu Inocêncio. Não tenha pressa.

Depois de passar os dados que os golpistas pediram, chegou a encruzilhada final, ou seja, a hora de pedir a senha. Cabe aqui explicar que os dois bilontras, os girigotes, os verdadeiros trafulhas estavam já em outro caixa eletrônico, que ficava na saída da galeria de lojas, um local ermo àquelas horas, prontos pra efetivar o saque com o cartão do coitado do seu Inocêncio. Faltava só a senha, quando aqui retomamos o diálogo infame:

– Obrigado pela confirmação dos seus dados, seu Inocêncio. Agora, para o cancelamento desse cartão, precisamos da sua senha.

– A senha é... Margarida.

Tapando o microfone do seu celular, o Djair sussurrou ao comparsa:

– Digita aí Margarida, ô Cid.

– Ok. Peraí. Mais um pouco. Senha inválida.

– Ô seu Inocêncio, a senha deu inválida. É a sua senha desse cartão aqui que o senhor perdeu que a gente quer. A senha pra saque da sua conta. Entendeu?

– Ah, sim. Desculpe. É verdade. Margarida é a senha pra entrar no banco pela internet, só pra consultas de saldo e tal.

– Ok, seu Inocêncio. E qual é essa senha então? A do saque, viu?

– A senha é Meu Piiiiiiii...

– Ai caceta. Esse velho é maluco – disse o Djair pro Cid, tapando de novo o microfone. Meu Piiiii? Que merda é essa? Ô Cid, eu acho que é algum palavrão isso. Só pode ser. Meu Piiii...? Mas que Meu Piiii? Olha, digita aí meu pinto, meu piru, pau, sei lá. Esses velhos são todos uns tarados de merda. Vai, digita essa joça logo.

– Não tá dando certo não, chefe.

– Ô seu Inocêncio. Essa senha de Piiii aí não tá certa não. Se for um palavrão, pode falar sem medo, viu? Fala direito senão não vou poder cancelar o seu cartão.

– Mas é o Pi. É isso mesmo, como eu falei. É o número do Pi até a quarta casa decimal. Aí, como a senha tinha que ter letra também, eu botei o “Meu” na frente.

– O quê? Como assim, “botou o seu na frente”, seu Inocêncio? Que brincadeira é essa? Botou o seu o quê? O senhor me respeite. Eu sou o gerente.

– Não. Botei o Meu na frente do Piiii. Você não sabe qual é o número de Pi não?

Tapando o microfone mais uma vez, ele pergunta pro topetudo do Cid:

– Ô Cid, seu ameba, qual é o número do Pi? Tu sabes de cor?

– Chefe, vou dizer uma coisa triste para o senhor. Eu não sei nem o número da minha mulher. Quando eu tenho que ligar pra ela eu só busco o nome na lista e ligo. Não sei de cor o número de ninguém. Ainda mais desse tal de Pi aí. Eu sei lá quem é esse cara? Vai ver é gente lá do grupo dos “biquinis pretos”? Essa turma é da pesada! Bandidagem geral mesmo.

– Porra, esse velho já tá me tirando do sério. Acho que vou dar “umas porrada” nele até ele falar a bosta da senha.

– E o plural, chefe, onde fica?

– Ah, Cid, tu vai tomar no cu logo, seu merda.

– Eu só estava ajudando. Nossa! Que violência! Não é umas “porrada”. É umas “porradas”, no plural, concordando com o...

– Chega dessa bosta. Vou voltar aqui pro nosso plano. Foco! Foco!

Djair chamou pelo seu Inocêncio algumas vezes, mas ele não respondeu. Não parecia ter caído a ligação, por isso ele ficou esperando um tempo. Até que a voz surgiu:

– Alô.

– Oi, seu Inocêncio. Pois é. A sua senha não deu certo de novo. Vamos tentar mais uma vez?

– Acho que não é mais preciso, meu amigo. A minha filha chegou em casa pro almoço e disse que já ligou pro banco e cancelou o meu cartão. Me deu a maior bronca quando eu contei que o tinha perdido. Tá aqui uma fera comigo!

– Talquei, seu Inocêncio. Então manda um abraço pra vagabunda da sua filha. E que se foda o senhor também, talquei?

– Igualmente para o senhor e os seus.

E desligou.

 


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