sexta-feira, 11 de abril de 2025

O Vizinho

 

Pouca gente tem um vizinho tão filadapulta quanto o meu. Essa foi a primeira frase que eu ouvi e que me fez virar a cadeira pra ver quem estava falando. Minha consulta ainda ia demorar e a cada vez que o dentista ia na recepção buscar um novo paciente, me avisava que logo me atenderia.

Demorou uma eternidade. Mas poderia ser pior se eu não tivesse presenciado aquele diálogo, cuja história, cheia de detalhes, já prenunciava a possibilidade de uma boa crônica. A certa altura eu já estava torcendo pra que nem o meu dentista, nem o dos outros dois chamasse um de nós e tudo se acabaria ali mesmo, sem fim, como uma série de tevê cuja temporada foi cancelada pelo estúdio.

O fato de eu me virar pra ver quem estava falando foi o bastante para que o narrador me incluísse na conversa, ou na audição, já que era só ele que falava. Eu, por minha vez, estava ávido por saber os pormenores daquele vizinho fiiidumaégua, que foi como ele recomeçou a história, já com a minha assistência.

– O sujeito é um ogro. Não tem a menor educação com nada. Grita dentro de casa tão alto que todo mundo escuta. Xinga a mulher, a filha, o entregador ele ameaça que não vai pagar. Uma alma de cavalo, com todo o meu respeito aos cavalos. Uma vez ele fez uma obra no telhado e o vizinho de trás foi reclamar que estava caindo restos de cimento na varanda dele. Pois o quadrúpede saiu de casa e foi pra porta do sujeito dizendo que ia comer o cara na porrada, que com ele era assim, que ele resolvia tudo no braço. Veio polícia, veio o zelador do condomínio e no final, eu descobri que o filho do cão era o síndico. Sim, ele mesmo, aquele pedaço de cano de passar bosta, de tão grosso, era também o síndico do condomínio. Agora eu pergunto: pode ter gente que vota num coiso desse pra síndico? Só mesmo gente bosta pra votar em outro bosta. (seria isso um aforismo?)

– Nossa, que homem rude – disse o amigo, olhando o relógio e medindo o atraso da sua consulta.

Então o narrador eufórico disse apenas um “Calma, aguarde que vem coisa pior por aí”. Nessa altura eu já tinha puxado a cadeira de lado e fiquei de frente pro contador, evitando que o pescoço começasse a doer num torcicolo que já viria, certamente.

– Pois então, o único que batia de frente com esse vizinho escroto era um ex-bombeiro militar que morava na rua de trás e que sempre reclamava do som alto aos domingos. É que ele fazia churrasco, festa ou sei lá o quê e o som era nas alturas o dia todo. Uma música ruim da porra, sim porque música alta é sempre ruim da porra, e com isso eles ficavam brigando o tempo todo. Era um inferno pra toda a vizinhança, mas quem sempre reclamava e chamava a polícia e ameaçava de volta era esse ex-bombeiro, quer dizer, ao menos ele dizia que tinha sido bombeiro.

– Você conhece esse vizinho?

– Sim, claro. Eu moro no condomínio ao lado, muro com muro. Escuto tudo de casa, as brigas, os xingamentos, a música alta e tudo o mais. Pra você ter uma ideia eu consigo saber certinho quando ele está em casa e quando não está. Aliás é uma paz quando ele está na rua. E o outro vizinho é até gente boa, a gente costuma se encontrar na padaria e ele sempre parece ser um cara bacana.

– Briga entre vizinhos é uma coisa bem comum. Mas, depois de um tempo fica tudo certo.

– Mas, qual nada. Agora é que vem o melhor da história. Escuta.

Nessa hora eu quase esfreguei as mãos de tanta ansiedade pelo que viria. E até me inclinei para ouvir melhor.

– Então. Passou o dia de sábado. Maior silêncio na casa do demônio. Passou o domingo e nada de barulho. Será que estavam viajando? À tarde eu pensei que tinha de saber o que estava acontecendo e fui direto na padaria. Avistei o vizinho bombeiro chegando de bicicleta, já na porta do condomínio dele. Ele me viu e disse “ô rapaz, queria mesmo falar com você”. E eu: “Eu também queria te perguntar uma coisa sobre o seu vizinho simpático. Tá o maior silêncio lá na casa dele e eu achei...” Só que o sujeito me interrompeu na moral: “Pois então, era isso que eu queria te contar, rapaz. O feladapulta morreu! Teve um infarte, estrebuchou no gramado de casa e ali mesmo ficou. Foi na sexta-feira de manhã. Quando o socorro do Samu chegou foi só cobrir o corpo e mandar pro saco. O infarte levou pro inferno aquele capeta, cumpadi! Tu acredita?

– Minha nossa – suspirou o paciente ao meu lado.

– Ele queria gritar de felicidade e eu me fazendo de contido, claro, é uma morte e tal, temos de ter respeito. Mas no minuto seguinte a gente já estava rindo e dando graças a Deus, ou ao capeta, pelo fim rápido daquele pedaço de asno repugnante e quizilento.

– Uau, que história incrível. O que é o destino né?

– Pois você não sabe de nada, meu amigo. Tem mais. Dois dias, eu disse dois dias depois, esse outro vizinho também morreu. Sim, o ex-bombeiro. Caiu de bicicleta, do nada, na rua do condomínio. Bateu a cabeça no meio-fio e empacotou num único suspiro, breve como voa o passarinho, que uma hora está no galho e no segundo seguinte já não está.

– É... é a vida... É o destino... – balbuciou o homem, algo atordoado.

– Pois sim... é a vida... o destino... – concordou o narrador, algo triunfante.

– Vamos lá, Anderson? Tudo bem? É a sua vez.

Eu me levantei, meio confuso, e fui cumprir o meu destino, rezando pra não morrer naquela tarde, nas mãos competentes do doutor Luís.

 





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