Não lembro o
dia exato em que me caiu nas mãos o poema Mude, de Edson Marques. Na nota de
rodapé constava que o texto era atribuído erroneamente a Clarice Lispector e essa
informação me deu uma saborosa dúvida. Por um lado o autor ficava diminuído, sim,
furtado mesmo ao não ter o próprio nome atado ao seu poema. Mas, quem sabe,
algum orgulho ele sentiu por ser o verso considerado tão bom que poderia ter
vindo da maravilhosa lavra da escritora famosa. Quem sabe?
Essa crônica
começa justamente por essa premissa de mudar, mudar o lugar onde eu normalmente
compro o pão doce redondo, com frutas cristalizadas salpicadas e muito creme de
sonho por cima. Só de descrever a gente já sente água na boca.
Quando eu
perguntei pelo pão doce, hoje de manhã, a moça disse “Ah, hoje o padeiro não
fez”. Como assim, não fez? Minha vontade era chamar a senhora do caixa, o dono
da padaria, a guarda real suíça do Vaticano, o prefeito mesmo que fosse, e
denunciar aquele acinte infame de ter o padeiro o poder indigno de decidir o
que vai ser levado ao forno e o que não, sendo que na visão dele o mundo todo
que se dane em suas aspirações matutinas, mélicas e salve-salve.
Como a
atendente, cúmplice do algoz padeiro bambo, definitivamente não estava nem aí
para o meu desalento e inconformismo, a minha primeira preocupação não foi a ausência
da farda suíça ao redor da Rua Conselheiro Mafra, mas sim procurar outra
padaria, quiçá várias, até que toda a inspiração vinda do poema afinal não
fosse suficiente e a tal busca obstinada me tirasse o fôlego, me pondo no rumo
de casa finalmente.
E eu andei um
bocado. De cada beco que eu saía – ou entrava – estava lá a Madalena do Gil a
me cumprimentar. Em outros casos era o Rei do Baião a me curvar o cenho,
cantando que sua vida é andar por esse país... Mas eu ali, firme na busca.
Cucas secas de
sabores mil, biscoitos de todas as manteigas e formas, e os sonhos... ah, os
sonhos aviltados... de chocolate, de doce de leite, ou ainda piores, com seus
deprimentes e ralos cremes de baunilha, ou de sei lá o quê, pálidos, que fariam
retorcer as madeiras nobres dos túmulos do Mosteiro dos Jerônimos de tanto
desleixo e malfeito com o doce clerical e consagrado. Enfim, em nome das
planilhas de custos já não são doces os doces concebidos nas docerias, tampouco
nas padarias sem tradição, mundo afora.
Eu queria só
um pão doce. Com creme de sonho legítimo e alguma fruta cristalizada por cima,
mas intuí que talvez não fosse algo tão simples como eu imaginava. Não nesse
bairro, ou nessa cidade. Eu já tinha andado todo o Centro de cabo a rabo,
cruzado rios, subido montanhas, ladeiras de vai-e-vem, túneis improváveis,
lagos, lagoas e mares, pontes clássicas e suspensas, outras modernas e quase
brutalistas.
Também tinha
entrado, vá lá, em lojas de todos os tipos, desde que servissem algo pra comer.
Pastelarias, hamburguerias, restaurantes típicos variados, de comidas árabes,
japonesas, italianas, alemãs, quase todos por quilo, com opção de lanches estranhos
nas suas nacionalidades.
Dizem que no
deserto, a depender da sede de cada um, a pessoa tem alguma dificuldade de
visualizar o tão almejado oásis. O cérebro já não confirma e nem confia na
qualidade de olhos ressentidos de água e alimento mínimo. Então, no final de
uma rua pequena, que quase nem chega qualquer circulação de monta, eu li a
placa padaria. Tinha um desenho, umas letras desalinhadas que eu nem dei muita
atenção e entrei.
Era uma
padaria modesta. Modesta e híbrida, pois que também servia comida no modo self-service. Ali não
tinha mesa, o balcão rodeava todo o espaço e as pessoas almoçavam lado a lado.
Depois pagavam na saída. A porta se fechou atrás de mim e eu dei uma olhada
geral no ambiente. Gostei do que vi, tudo bem organizado e limpo. Então, tal
como um oásis, lá no fundo, com uma iluminação quase cênica, uma linda vitrine
colorida de doces e pães emergia daquela paisagem de rechôs, pratos e talheres.
Eu tirei os
óculos escuros, esfreguei os olhos procurando algum camelo desavisado por perto
e, em poucos segundos, venci o espaço de almoço, chegando até os doces. Uma
maravilha. Aquilo era uma miragem. O senhor do outro lado do balcão, ao me ver,
ia apontando as iguarias e dizendo o que eram, quais os seus ingredientes
principais e em seguida me deu um recipiente plástico, pra que eu escolhesse o
que quisesse.
A minha busca
tinha terminado. Não só achei o pão doce que eu procurava, com muito creme e as
frutas, como também tive a grata surpresa de me deparar com um sonho digno, com
o creme idem, e, pra completar, chegando aos píncaros do improvável, eles
tinham uma torta enorme de abacaxi, com aquela calda de caramelo por cima. Eu
só não ajoelhei ali mesmo porque não temos ainda um novo papa escolhido pelo conclave
e, com isso, o objeto da minha devoção eclesiástica ia ficar prejudicado. Fora
isso, era o céu. O céu dos doces.
Entrei na fila
do caixa e passei a observar o ambiente, decifrando como era possível juntar o
espaço do almoço com as vitrines daquela padaria perfeita e muito bem montada,
cheia de doces e guloseimas da melhor qualidade.
Voltei pra
casa repassando o périplo da minha aventura naquela manhã e tentando lembrar o
caminho até a padaria, pois de tanto que entrei e saí de beco a minha memória
se preocupava em registrar o trajeto certo para um retorno em breve.
No meu
celular, já em casa, recebi uma mensagem do banco com a despesa do cartão de
crédito, para conferência. Estava escrito: pagamento realizado, Padaria do
Alem, depois vinha o valor, a data e o horário da compra.
Padaria do
Além? Mas... claro, só podia ser. Não tinha nome mais adequado para aquela
padaria. Era o céu aquilo, gente. Eu bem que tinha dito. Falei isso baixinho e
sorri de modo prosaico, olhando a tela do celular.
Desconfiado,
fui pegar a nota esquecida ainda dentro do embrulho. No verso estava escrito:
Padaria do Alemão.
Foi então que
eu entendi que na mensagem do banco, por questão de espaço, não cabia o nome
todo da padaria. Eram poucos caracteres e por isso o nome saiu cortado, sem o “ão”.
Melhor pra
mim.
Muito melhor o
sentimento de ser cliente da Padaria do Além.
https://www.tudoepoema.com.br/edson-marques-mude/
ahahaha, esse crônica é boa demais!
ResponderExcluirMuito boa! Queria saber onde fica. (Lengo)
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