sábado, 24 de maio de 2025

A Caneta

 

A tentação ficava ao lado do colégio. Na mesma calçada. Era sair pelo portão e estar praticamente dentro dela, sujeito a ela. A tentação era uma papelaria, especializada em artigos japoneses. Tinha o nome de Novo Oriente e na fachada havia o desenho de um sol nascente. O proprietário, claro, era um japonês que pouco falava português, assim como a sua família, todos funcionários da loja.

A vitrine, ainda lembro bem, tinha as calculadoras mais lindas, os compassos, estojos de lápis de veludo, cadernos, cada coisa mais tentadora do que a outra. E tudo bem carinho, pois eram itens importados e, no início da década de 1970, a novidade era o máximo, como sempre nos lembra o eterno mestre Gilberto Gil.

Os relógios digitais eram um capítulo à parte. Acendiam o mostrador apenas com um toque dos dedos e alguns até tinham calculadora na tela, coisa que a gente não estava acostumado a ver na época. Mas os relógios só perdiam para as canetas. Ah, as canetas faziam suspirar os mais abastados alunos daquele colégio, que já era, em sua maioria, de gente abastada.

Um dia um aluno da minha sala nos mostrou a caneta que tinha comprado lá na Novo Oriente. Tinha a ponta de feltro, algo assim esponjoso, que tecnicamente chamava de ponta porosa. Fazia um traço levemente fino e, conforme a pressão da mão, engrossava o risco tornando-o um caminho brilhante de tinta firme, com a uniformidade dos japoneses. Uma maravilha.

Na mesma hora a tal caneta começou a circular pela sala de aula, passando de mão em mão, e deixando cada um com o seu assombro particular. Todos perguntavam se era da loja nipônica e a seguir tentavam um traço aqui e ali, no caderno, na capa do livro e até no braço.

No braço, o primeiro que testou logo alardeou dizendo que ficou igualzinho a uma tatuagem. Pela porosidade da caneta, o volume no braço, sei lá, o fato é que essa coisa de tatuagem também era bem incomum na época. Na verdade já era uma fase de transição, pois que até então era uma prática restrita aos estivadores, marinheiros e a algumas mulheres de reputação duvidosa.

Pois no mesmo instante em que o sujeito mostrou a sua “tatuagem” todo mundo queria fazer uma também. A mobilização já estava longe de ser apenas um rabisco, pois um passou a desenhar no braço do outro, de modo a garantir que os objetos gráficos ficassem o mais profissionais possível. Aula, mesmo, não teve mais, se é que a esta altura seja necessário dizer.

Eu me dei conta de que aquela tinta, embora bonita no braço, vinda de uma caneta idem, tinha como peculiaridade a sua singela fixação nas superfícies diversas em que fora aplicada. Entrando na escola no dia seguinte eu percebi que meu braço ainda trazia a estrelinha que alguém – e não lembro quem – desenhou em mim. Na mesma hora me veio a vergonha de que parecia, ou melhor, podia parecer, que eu não tinha tomado banho desde o dia anterior. Ao menos um banho digno, que apagasse o desenho da aula de ontem.

Eu fiz o que pude pra esconder a parte do braço onde havia tinta e fui. Mas bastou que alguém voltasse ao assunto da caneta e da tatuagem, logo depois do recreio, para que eu me sobressaltasse. Claro que o fato ia ser motivo pra alguma zoada e eu não sabia como devia reagir.

A sorte foi que, lá na turma da frente, logo surgiu um alvoroço sobre o mesmo tema e, claro, a vítima foi uma menina da primeira fila, querida dos professores, que era loirinha e usava uns óculos de lentes bem grossas. Por ser bem branquinha, a marca da caneta era evidente. Saltava dos seus braços e não tinha como esconder. E foi ela que concentrou todas as troças, as brincadeiras, as befas e também as mangofas. A menina estava cercada.

Eu fiquei pensando, cá comigo, que duvido que todos os alunos conseguiram tirar a marca daquela caneta. Muita gente devia estar como eu, tentando esconder os desenhos, pois era muito difícil tirar do corpo aquela tinta japonesa do capeta! Pensei isso, mas não disse nada. Fiquei quieto.

E como acontece em todas as histórias que viram romance, uma virada abrupta surgiu. O Jorge Luís, um garoto que sentava ali pelo meio da turma, sorrateiramente veio até a mesa do dono da caneta, pediu emprestada e, sem que ninguém visse, fez um risco no próprio braço. Depois, passou os dedos por cima, molhou na própria boca ao repetir o gesto e foi pra perto da menina, a Marcia Carvalho. Tal como um príncipe, um salvador em seu cavalo branco, o menino disse que ele também tinha tido dificuldade pra tirar a marca, mas que aquilo não significava que ele não tinha tomado banho. Enfim, a teimosia da tinta era fruto da qualidade da própria caneta!

Foi uma surpresa geral. Ao mesmo tempo em que os poucos meninos, que sabiam que ele próprio se riscou, passaram a apoiá-lo sobre a questão do banho, as meninas, por sua vez, que viram na sua atitude um gesto singelo de cavalheirismo, tentando salvar a pobre da Marcia, pediram para que todos parassem de pegar no pé – ou no braço – da menina da primeira fila.

Em poucos minutos outros alunos e alunas se encorajaram e passaram a mostrar as próprias marcas do dia anterior e todos juravam, rindo, que tinham tomado banho, normal, alastrando as piadas que iam surgindo e desfazendo o clima de bullying que já se avizinhava e que naquele tempo ainda não tinha esse nome.

O Jorge Luís ganhou notoriedade por sua atitude nobre e desde então passou a ter o respeito de todos nós, principalmente das meninas, que souberam mais tarde que, na verdade, entre ele e a Marcia, havia ali um caso de amor não correspondido, o que cortou o coração das alunas mais sensíveis.

Alguns meses depois, teve uma votação pra escolher a princesa da sala. Não me lembro se era por ocasião da Festa Junina, Festa do Milho ou alguma coisa parecida. Mas lembro que, em um dos votos surgidos das urnas e lido em voz alta pela comissão de apuração, estava escrito: “Marcia Carvalho, uma princesa estonteante”.

A turma aplaudiu aquele voto por um longo tempo.

Eu aplaudi junto.

Foi o único voto dela.

Ninguém teve dúvida da sua autoria.

 



quarta-feira, 7 de maio de 2025

A Padaria do Além


Não lembro o dia exato em que me caiu nas mãos o poema Mude, de Edson Marques. Na nota de rodapé constava que o texto era atribuído erroneamente a Clarice Lispector e essa informação me deu uma saborosa dúvida. Por um lado o autor ficava diminuído, sim, furtado mesmo ao não ter o próprio nome atado ao seu poema. Mas, quem sabe, algum orgulho ele sentiu por ser o verso considerado tão bom que poderia ter vindo da maravilhosa lavra da escritora famosa. Quem sabe?

Essa crônica começa justamente por essa premissa de mudar, mudar o lugar onde eu normalmente compro o pão doce redondo, com frutas cristalizadas salpicadas e muito creme de sonho por cima. Só de descrever a gente já sente água na boca.

Quando eu perguntei pelo pão doce, hoje de manhã, a moça disse “Ah, hoje o padeiro não fez”. Como assim, não fez? Minha vontade era chamar a senhora do caixa, o dono da padaria, a guarda real suíça do Vaticano, o prefeito mesmo que fosse, e denunciar aquele acinte infame de ter o padeiro o poder indigno de decidir o que vai ser levado ao forno e o que não, sendo que na visão dele o mundo todo que se dane em suas aspirações matutinas, mélicas e salve-salve.

Como a atendente, cúmplice do algoz padeiro bambo, definitivamente não estava nem aí para o meu desalento e inconformismo, a minha primeira preocupação não foi a ausência da farda suíça ao redor da Rua Conselheiro Mafra, mas sim procurar outra padaria, quiçá várias, até que toda a inspiração vinda do poema afinal não fosse suficiente e a tal busca obstinada me tirasse o fôlego, me pondo no rumo de casa finalmente.

E eu andei um bocado. De cada beco que eu saía – ou entrava – estava lá a Madalena do Gil a me cumprimentar. Em outros casos era o Rei do Baião a me curvar o cenho, cantando que sua vida é andar por esse país... Mas eu ali, firme na busca.

Cucas secas de sabores mil, biscoitos de todas as manteigas e formas, e os sonhos... ah, os sonhos aviltados... de chocolate, de doce de leite, ou ainda piores, com seus deprimentes e ralos cremes de baunilha, ou de sei lá o quê, pálidos, que fariam retorcer as madeiras nobres dos túmulos do Mosteiro dos Jerônimos de tanto desleixo e malfeito com o doce clerical e consagrado. Enfim, em nome das planilhas de custos já não são doces os doces concebidos nas docerias, tampouco nas padarias sem tradição, mundo afora.

Eu queria só um pão doce. Com creme de sonho legítimo e alguma fruta cristalizada por cima, mas intuí que talvez não fosse algo tão simples como eu imaginava. Não nesse bairro, ou nessa cidade. Eu já tinha andado todo o Centro de cabo a rabo, cruzado rios, subido montanhas, ladeiras de vai-e-vem, túneis improváveis, lagos, lagoas e mares, pontes clássicas e suspensas, outras modernas e quase brutalistas.

Também tinha entrado, vá lá, em lojas de todos os tipos, desde que servissem algo pra comer. Pastelarias, hamburguerias, restaurantes típicos variados, de comidas árabes, japonesas, italianas, alemãs, quase todos por quilo, com opção de lanches estranhos nas suas nacionalidades.

Dizem que no deserto, a depender da sede de cada um, a pessoa tem alguma dificuldade de visualizar o tão almejado oásis. O cérebro já não confirma e nem confia na qualidade de olhos ressentidos de água e alimento mínimo. Então, no final de uma rua pequena, que quase nem chega qualquer circulação de monta, eu li a placa padaria. Tinha um desenho, umas letras desalinhadas que eu nem dei muita atenção e entrei.

Era uma padaria modesta. Modesta e híbrida, pois que também servia comida no modo self-service. Ali não tinha mesa, o balcão rodeava todo o espaço e as pessoas almoçavam lado a lado. Depois pagavam na saída. A porta se fechou atrás de mim e eu dei uma olhada geral no ambiente. Gostei do que vi, tudo bem organizado e limpo. Então, tal como um oásis, lá no fundo, com uma iluminação quase cênica, uma linda vitrine colorida de doces e pães emergia daquela paisagem de rechôs, pratos e talheres.

Eu tirei os óculos escuros, esfreguei os olhos procurando algum camelo desavisado por perto e, em poucos segundos, venci o espaço de almoço, chegando até os doces. Uma maravilha. Aquilo era uma miragem. O senhor do outro lado do balcão, ao me ver, ia apontando as iguarias e dizendo o que eram, quais os seus ingredientes principais e em seguida me deu um recipiente plástico, pra que eu escolhesse o que quisesse.

A minha busca tinha terminado. Não só achei o pão doce que eu procurava, com muito creme e as frutas, como também tive a grata surpresa de me deparar com um sonho digno, com o creme idem, e, pra completar, chegando aos píncaros do improvável, eles tinham uma torta enorme de abacaxi, com aquela calda de caramelo por cima. Eu só não ajoelhei ali mesmo porque não temos ainda um novo papa escolhido pelo conclave e, com isso, o objeto da minha devoção eclesiástica ia ficar prejudicado. Fora isso, era o céu. O céu dos doces.

Entrei na fila do caixa e passei a observar o ambiente, decifrando como era possível juntar o espaço do almoço com as vitrines daquela padaria perfeita e muito bem montada, cheia de doces e guloseimas da melhor qualidade.

Voltei pra casa repassando o périplo da minha aventura naquela manhã e tentando lembrar o caminho até a padaria, pois de tanto que entrei e saí de beco a minha memória se preocupava em registrar o trajeto certo para um retorno em breve.

No meu celular, já em casa, recebi uma mensagem do banco com a despesa do cartão de crédito, para conferência. Estava escrito: pagamento realizado, Padaria do Alem, depois vinha o valor, a data e o horário da compra.

Padaria do Além? Mas... claro, só podia ser. Não tinha nome mais adequado para aquela padaria. Era o céu aquilo, gente. Eu bem que tinha dito. Falei isso baixinho e sorri de modo prosaico, olhando a tela do celular.

Desconfiado, fui pegar a nota esquecida ainda dentro do embrulho. No verso estava escrito: Padaria do Alemão.

Foi então que eu entendi que na mensagem do banco, por questão de espaço, não cabia o nome todo da padaria. Eram poucos caracteres e por isso o nome saiu cortado, sem o “ão”.

Melhor pra mim.

Muito melhor o sentimento de ser cliente da Padaria do Além.

 

 

 

https://www.tudoepoema.com.br/edson-marques-mude/