A tentação
ficava ao lado do colégio. Na mesma calçada. Era sair pelo portão e estar
praticamente dentro dela, sujeito a ela. A tentação era uma papelaria,
especializada em artigos japoneses. Tinha o nome de Novo Oriente e na fachada
havia o desenho de um sol nascente. O proprietário, claro, era um japonês que
pouco falava português, assim como a sua família, todos funcionários da loja.
A vitrine,
ainda lembro bem, tinha as calculadoras mais lindas, os compassos, estojos de
lápis de veludo, cadernos, cada coisa mais tentadora do que a outra. E tudo bem
carinho, pois eram itens importados e, no início da década de 1970, a novidade
era o máximo, como sempre nos lembra o eterno mestre Gilberto Gil.
Os relógios
digitais eram um capítulo à parte. Acendiam o mostrador apenas com um toque dos
dedos e alguns até tinham calculadora na tela, coisa que a gente não estava
acostumado a ver na época. Mas os relógios só perdiam para as canetas. Ah, as
canetas faziam suspirar os mais abastados alunos daquele colégio, que já era,
em sua maioria, de gente abastada.
Um dia um
aluno da minha sala nos mostrou a caneta que tinha comprado lá na Novo Oriente.
Tinha a ponta de feltro, algo assim esponjoso, que tecnicamente chamava de
ponta porosa. Fazia um traço levemente fino e, conforme a pressão da mão,
engrossava o risco tornando-o um caminho brilhante de tinta firme, com a
uniformidade dos japoneses. Uma maravilha.
Na mesma hora
a tal caneta começou a circular pela sala de aula, passando de mão em mão, e
deixando cada um com o seu assombro particular. Todos perguntavam se era da
loja nipônica e a seguir tentavam um traço aqui e ali, no caderno, na capa do
livro e até no braço.
No braço, o
primeiro que testou logo alardeou dizendo que ficou igualzinho a uma tatuagem.
Pela porosidade da caneta, o volume no braço, sei lá, o fato é que essa coisa
de tatuagem também era bem incomum na época. Na verdade já era uma fase de
transição, pois que até então era uma prática restrita aos estivadores,
marinheiros e a algumas mulheres de reputação duvidosa.
Pois no mesmo
instante em que o sujeito mostrou a sua “tatuagem” todo mundo queria fazer uma
também. A mobilização já estava longe de ser apenas um rabisco, pois um passou
a desenhar no braço do outro, de modo a garantir que os objetos gráficos
ficassem o mais profissionais possível. Aula, mesmo, não teve mais, se é que a
esta altura seja necessário dizer.
Eu me dei
conta de que aquela tinta, embora bonita no braço, vinda de uma caneta idem,
tinha como peculiaridade a sua singela fixação nas superfícies diversas em que
fora aplicada. Entrando na escola no dia seguinte eu percebi que meu braço
ainda trazia a estrelinha que alguém – e não lembro quem – desenhou em mim. Na
mesma hora me veio a vergonha de que parecia, ou melhor, podia parecer, que eu
não tinha tomado banho desde o dia anterior. Ao menos um banho digno, que
apagasse o desenho da aula de ontem.
Eu fiz o que
pude pra esconder a parte do braço onde havia tinta e fui. Mas bastou que
alguém voltasse ao assunto da caneta e da tatuagem, logo depois do recreio,
para que eu me sobressaltasse. Claro que o fato ia ser motivo pra alguma zoada
e eu não sabia como devia reagir.
A sorte foi
que, lá na turma da frente, logo surgiu um alvoroço sobre o mesmo tema e,
claro, a vítima foi uma menina da primeira fila, querida dos professores, que
era loirinha e usava uns óculos de lentes bem grossas. Por ser bem branquinha,
a marca da caneta era evidente. Saltava dos seus braços e não tinha como
esconder. E foi ela que concentrou todas as troças, as brincadeiras, as befas e
também as mangofas. A menina estava cercada.
Eu fiquei
pensando, cá comigo, que duvido que todos os alunos conseguiram tirar a marca
daquela caneta. Muita gente devia estar como eu, tentando esconder os desenhos,
pois era muito difícil tirar do corpo aquela tinta japonesa do capeta! Pensei
isso, mas não disse nada. Fiquei quieto.
E como acontece
em todas as histórias que viram romance, uma virada abrupta surgiu. O Jorge
Luís, um garoto que sentava ali pelo meio da turma, sorrateiramente veio até a
mesa do dono da caneta, pediu emprestada e, sem que ninguém visse, fez um risco
no próprio braço. Depois, passou os dedos por cima, molhou na própria boca ao
repetir o gesto e foi pra perto da menina, a Marcia Carvalho. Tal como um
príncipe, um salvador em seu cavalo branco, o menino disse que ele também tinha
tido dificuldade pra tirar a marca, mas que aquilo não significava que ele não
tinha tomado banho. Enfim, a teimosia da tinta era fruto da qualidade da própria
caneta!
Foi uma
surpresa geral. Ao mesmo tempo em que os poucos meninos, que sabiam que ele
próprio se riscou, passaram a apoiá-lo sobre a questão do banho, as meninas, por
sua vez, que viram na sua atitude um gesto singelo de cavalheirismo, tentando
salvar a pobre da Marcia, pediram para que todos parassem de pegar no pé – ou
no braço – da menina da primeira fila.
Em poucos
minutos outros alunos e alunas se encorajaram e passaram a mostrar as próprias marcas
do dia anterior e todos juravam, rindo, que tinham tomado banho, normal, alastrando
as piadas que iam surgindo e desfazendo o clima de bullying que já se
avizinhava e que naquele tempo ainda não tinha esse nome.
O Jorge Luís
ganhou notoriedade por sua atitude nobre e desde então passou a ter o respeito
de todos nós, principalmente das meninas, que souberam mais tarde que, na
verdade, entre ele e a Marcia, havia ali um caso de amor não correspondido, o que
cortou o coração das alunas mais sensíveis.
Alguns meses
depois, teve uma votação pra escolher a princesa da sala. Não me lembro se era
por ocasião da Festa Junina, Festa do Milho ou alguma coisa parecida. Mas
lembro que, em um dos votos surgidos das urnas e lido em voz alta pela comissão
de apuração, estava escrito: “Marcia Carvalho, uma princesa estonteante”.
A turma
aplaudiu aquele voto por um longo tempo.
Eu aplaudi junto.
Foi o único
voto dela.
Ninguém teve
dúvida da sua autoria.
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