Infelizmente
nós cariocas, brasileiros, convivemos com diversos mundos no nosso próprio
mundo. E eu sempre fiz questão de reparar muito bem em cada um deles. No
percurso cotidiano de casa - trabalho/escola/faculdade - casa, criamos um
automatismo que nos impede que enxerguemos as coisas como elas são de verdade. Muita
gente faz questão de não enxergar, se sente mal. Mas o fato é que todos nós convivemos
com o abismo social que nosso país vive há décadas e com a cruel realidade que
se apresenta para muitas pessoas que encontramos diariamente. Encontramos, mas
não vemos.
Depois
que fiz 18 anos e comecei a dirigir, inevitavelmente era abordado em inúmeros
sinais por pessoas pedindo dinheiro e vendendo de tudo, várias e várias vezes. Alguns
até eu já conhecia por fazer o mesmo percurso todos os dias e eles estarem
sempre lá. E uma regra que eu tenho para vida e que já intrigou muitas pessoas
que andam comigo, de carro ou a pé, é que eu sempre paro para ouvir o que as
pessoas dizem. Sempre. Não importa se é pra pedir dinheiro ou pra responder
pesquisa de mercado. Eu paro e ouço o que eles têm a dizer. Não custa nada. Na
pior das hipóteses eu tinha que dizer: “Não, não posso ajudar”. Nem sempre
posso ajudar, mas acho que para quem é quase invisível para a maioria das
pessoas, parar e ouvir já significa muito.
Já
ouvi de tudo. TUDO mesmo. Desde gente que queria dinheiro para uma refeição,
que estava sem dinheiro pra voltar pra casa, que precisava de doações de
diversos tipos, gente que precisava comprar remédios para alguém da família, ou
que veio para o Rio com uma promessa de emprego que não deu certo e se viu sem
dinheiro para voltar para sua cidade, gente que precisava comprar itens de higiene
para conseguir um emprego. Tudo isso eu já ouvi pelas ruas dessa cidade. Lembro
do rosto de muitos deles. E é engraçado porque inevitavelmente eu tento ajudar,
e geralmente quando tem alguém comigo fica meio chocado desde o momento que eu
paro para ouvir.
Mas
voltando aos sinais de trânsito. Em meio a tudo que se vende, algumas coisas eu
comprava porque pensava que poderia ser útil um dia, como um cheirinho pro
carro, uns panos de chão pra casa, um guarda-chuva, essas coisas. Mas a grande
maioria eu comprava mesmo pra ajudar. Torcendo pra aquele dinheiro ser
realmente usado em uma boa causa.
Sempre
tive na cabeça que a diferença entre quem está sentado nos bancos do motorista
e quem corre entre as motos distribuindo balas sobre os retrovisores não é, na
grande maioria das vezes, absolutamente nada além do acaso. Acaso de ter
nascido aqui e não acolá.
Comprava
umas balas, algumas poucas eu gostava, mas quase nunca abria o pacote, e
guardava no porta-luvas, fechado mesmo.
No
dia que vendi meu carro, estava com a minha mãe na garagem dando uma geral por
dentro pra entregar pra moça que tinha comprado. Minha mãe foi abrir o
porta-luvas e encontrou algumas (várias) balas, amendoins e tudo mais. Começou
a rir porque já tinha presenciado os momentos das compras algumas vezes e
perguntou se podia jogar fora.
Um
tempo depois descobri com a minha mãe que uma amiga dela passou a não mais dar
dinheiro nos sinais, por temer como ele seria utilizado. Ela passou, então, a
andar com biscoitos no carro e entregar para alguma criança que a abordasse nos
sinais vendendo coisas ou pedindo dinheiro apenas. Descobri também, que minha
mãe tinha aderido a essa estratégia, e que estava andando sempre com um
biscoito no carro para essas situações.
Um
tempo se passou, eu já tinha esquecido completamente da tal estratégia do biscoito,
e peguei o carro da minha mãe para ir a algum lugar. Poucos minutos depois de
sair de casa, parei no sinal na Avenida Maracanã, próximo ao shopping. Olhei
pro lado, tinham umas quatro ou cinco crianças, na faixa de 8 a 12 anos. Todas
elas com algo em mãos para vender. No segundo seguinte que olhei pra elas,
lembrei do biscoito e abri o porta-luvas em velocidade recorde. Lá estava ele!
Um Chocolícia! Pensei: “Minha mãe mandou bem nessa!”.
Peguei
o biscoito e deixei no colo escondido. Preparei o texto na minha cabeça e
esperei até um deles vir até mim. Ele vendia bananadas, que eu odeio tanto
quanto amendoim, mas que já tinha comprado também em outras oportunidades.
Ambos. É incrível como em poucos segundos, se a gente observar bem, acontecem
coisas surreais.
Olhando
bem cabisbaixo, e aparentemente cansado já, ele perguntou:
-
Bananada, tio?
Eu
animei a voz:
-
Fala flamenguista! Beleza? Aqui, me responde uma coisa: Gosta de biscoito de chocolate?
Nessa
hora, ele me olhou nos olhos com o olhar mais desconfiado que eu já vi na vida,
digno de quem vive aquela vida, e não respondeu nada. Nada. Provavelmente pensou
que eu faria alguma brincadeira idiota de mau gosto ou algo do tipo. Eu percebi
claramente isso, sorri um pouco e perguntei com ânimo novamente:
-
Pode falar cara, gosta de biscoito de chocolate ou não?
Um
pouco mais confortável ele, ainda olhando nos meus olhos, só balançou a cabeça
respondendo que sim. Peguei o biscoito e entreguei dizendo que era pra ele. Aí,
é nessas horas que a mágica acontece.
Ele,
muito tímido e sem jeito, pegou o biscoito da minha mão com um sorriso lindo, o
sorriso mais inacreditável que eu já vi na vida, sorriso que uma criança de 8,
10 anos DEVE ter, e disse:
-
Obrigado, tio!
Com
o biscoito na mão, parou de vender as bananadas e correu pra calçada chamando
todos os amigos. Antes mesmo do sinal abrir o pacote já estava aberto e cada um
estava com um biscoito na mão.
Observei
tudo até começarem as buzinas. Andei uns cem metros ainda tentando enxergar alguma
coisa pelo retrovisor e parei o carro no primeiro lugar possível que eu vi.
Chorei
tudo que tinha que chorar, por longos minutos.
Fiquei
pensando no incrível poder daquele simples biscoito de chocolate, capaz de
mudar em segundos a expressão, marcada pela angústia do dia a dia, daquele
moleque.
E era
só um pacote de biscoitos de chocolate. Eu juro!