Naquela sexta-feira, depois que os jornais da
noite anunciaram a virada no clima, o vento forte e a chuva, ninguém ousou sair
de casa. Na vizinhança as pessoas assustadas olhavam pela janela aproveitando o
pouco tempo no claro, já que logo a luz ia acabar, deixando que os flashes dos
raios dominassem a paisagem pelo resto da madrugada.
Os sons da tempestade se misturavam com os das
árvores, que a cada raio pareciam deitar-se vencidas. Foi difícil dormir
naquela longa noite de barulhos incômodos e luzes fantasmagóricas.
Na manhã seguinte, assim que a casa acordou,
demos de cara com o Seu Fonseca arrumando o que sobrou da sua pequena horta.
Seu Fonseca era o vizinho do lado, um senhor português de uns 70 anos e muito
amigo do meu sogro. Um verdadeiro sábio das plantas, morava com a
esposa e todos que passavam na rua olhavam por cima do muro para admirar aquele
jardim lindo, as plantas, as árvores e, claro, a horta.
Logo depois que o Daniel nasceu, quase todo dia ele
nos dava um legume por cima do muro que dividia as casas. Dizia que era para a
sopa do menino e eu juro que lembro até hoje da sua voz e das suas pausas sorridentes
quando dizia isso pra mim. Às vezes era uma folha, uma batata doce, uma
couve-flor, uma berinjela. Às vezes era uma fruta, banana, manga, maçã e claro,
mesmo que não fosse da sua horta, o que era raro, a frase era sempre a mesma.
Nesta manhã pós-vendaval, enquanto ele arrumava
o estrago do seu lado, a gente percebeu que a nossa goiabeira havia sido arrancada do chão com raiz e tudo e que, além disso, estava quebrada bem no meio do tronco,
sendo que este só não se partiu por completo porque a árvore foi escorada pelo
muro lateral da vila que tinha do outro lado do quintal.
Assim que deu uma ordem do seu lado Seu Fonseca
veio ver a goiabeira. Olhou daqui, de lá, podou algumas partes e depois voltou
à casa para, dali a pouco, retornar cheio de ferramentas na mão. A gente se
perguntava se não seria trabalho em vão, dado o estado da goiabeira, e a dúvida
era o que ele afinal estava pensando em fazer com a árvore. Se ele iria tirar
do caminho ou cortar em pedaços pra poder jogar fora, enfim.
Nisso, eu fui ao mercado com a minha lista
típica dos sábados. A árvore não saía da cabeça e acho que por isso eu corri
tanto pra voltar logo. Quando entrei com o carro pelo quintal tomei um susto. A
goiabeira estava de pé de novo. Ele tinha botado um ferro sustentando a parte
de cima, que tinha caído, e a parte de baixo estava de novo dentro da terra,
replantada.
Nem tirei as compras do carro. Fui logo olhar
aquilo de perto, enquanto ele ainda terminava o trabalho. E de perto aquilo
parecia um milagre. Inexplicável como tal, eu olhava e não entendia o que via.
De alguma maneira a árvore estava de pé, um pouco torta do meio pra cima é
verdade, com as folhas todas viradas pra baixo, mas os ferros na base acalmavam
a sensação de uma nova queda.
As folhas, por sinal, caíram todas em poucos
dias. A árvore ficou pelada e só sobraram os galhos secos. A gente deu o caso por
perdido, ficamos tristes, claro, mas o Seu Fonseca repetia que era assim mesmo
e ao ouvir isso a gente torcia o nariz escondido dele.
Em pouco tempo ele arrumou por completo a sua
horta e seus jardins; também recomeçou a nos passar as coisas pra sopa do
menino e numa certa manhã ao me cumprimentar pelo muro ele disse:
- Já vistes as folhas novas?
De pronto eu me virei pra goiabeira. Fui até lá,
peguei nas pequenas folhinhas verdinhas de tão novas e uma emoção que eu
desconhecia veio com tudo. Do lado de lá do muro, o Seu Fonseca, achando a coisa mais natural do mundo, apenas apertava os lábios e fitava a árvore de cima a baixo.
Um tempo depois, já toda coberta de folhas, com
todos os galhos virados pra cima buscando o sol, a gente deu de cara com umas
pequenas goiabinhas e dessa vez fomos nós que perguntamos pro Seu Fonseca se
ele já tinha visto e o trouxemos pra ver de perto.
Toda vez que tento contar esta história do Seu
Fonseca com a nossa goiabeira, aquela mesma emoção me toma por completo.
Muitos anos depois, quando revi a goiabeira, enquanto eu lembrava de tudo o que aconteceu, passava a mão pelo
tronco no local onde ficou a marca deixada pelos ferros de sustentação, como se
aquela marca fosse a prova de que tudo existiu mesmo, que tudo foi real e
mágico ao mesmo tempo.
E quando soube da morte daquele amigo e admirável
homem das plantas, eu escrevi um pequeno agradecimento a ele, que no final diz
assim:
“Seu Fonseca, minha oração é agora, mais do que
nunca, um pedido a Deus para que o acolha bem. Entre as plantas, entre os
frutos, entre as nuvens. Muito acima de nós. Muito além do jardim. Obrigado por
salvar a nossa árvore”. Que assim seja.