quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Seu Fonseca


Naquela sexta-feira, depois que os jornais da noite anunciaram a virada no clima, o vento forte e a chuva, ninguém ousou sair de casa. Na vizinhança as pessoas assustadas olhavam pela janela aproveitando o pouco tempo no claro, já que logo a luz ia acabar, deixando que os flashes dos raios dominassem a paisagem pelo resto da madrugada.
Os sons da tempestade se misturavam com os das árvores, que a cada raio pareciam deitar-se vencidas. Foi difícil dormir naquela longa noite de barulhos incômodos e luzes fantasmagóricas.
Na manhã seguinte, assim que a casa acordou, demos de cara com o Seu Fonseca arrumando o que sobrou da sua pequena horta. Seu Fonseca era o vizinho do lado, um senhor português de uns 70 anos e muito amigo do meu sogro. Um verdadeiro sábio das plantas, morava com a esposa e todos que passavam na rua olhavam por cima do muro para admirar aquele jardim lindo, as plantas, as árvores e, claro, a horta.
Logo depois que o Daniel nasceu, quase todo dia ele nos dava um legume por cima do muro que dividia as casas. Dizia que era para a sopa do menino e eu juro que lembro até hoje da sua voz e das suas pausas sorridentes quando dizia isso pra mim. Às vezes era uma folha, uma batata doce, uma couve-flor, uma berinjela. Às vezes era uma fruta, banana, manga, maçã e claro, mesmo que não fosse da sua horta, o que era raro, a frase era sempre a mesma.
Nesta manhã pós-vendaval, enquanto ele arrumava o estrago do seu lado, a gente percebeu que a nossa goiabeira havia sido arrancada do chão com raiz e tudo e que, além disso, estava quebrada bem no meio do tronco, sendo que este só não se partiu por completo porque a árvore foi escorada pelo muro lateral da vila que tinha do outro lado do quintal.
Assim que deu uma ordem do seu lado Seu Fonseca veio ver a goiabeira. Olhou daqui, de lá, podou algumas partes e depois voltou à casa para, dali a pouco, retornar cheio de ferramentas na mão. A gente se perguntava se não seria trabalho em vão, dado o estado da goiabeira, e a dúvida era o que ele afinal estava pensando em fazer com a árvore. Se ele iria tirar do caminho ou cortar em pedaços pra poder jogar fora, enfim.
Nisso, eu fui ao mercado com a minha lista típica dos sábados. A árvore não saía da cabeça e acho que por isso eu corri tanto pra voltar logo. Quando entrei com o carro pelo quintal tomei um susto. A goiabeira estava de pé de novo. Ele tinha botado um ferro sustentando a parte de cima, que tinha caído, e a parte de baixo estava de novo dentro da terra, replantada.
Nem tirei as compras do carro. Fui logo olhar aquilo de perto, enquanto ele ainda terminava o trabalho. E de perto aquilo parecia um milagre. Inexplicável como tal, eu olhava e não entendia o que via. De alguma maneira a árvore estava de pé, um pouco torta do meio pra cima é verdade, com as folhas todas viradas pra baixo, mas os ferros na base acalmavam a sensação de uma nova queda.
As folhas, por sinal, caíram todas em poucos dias. A árvore ficou pelada e só sobraram os galhos secos. A gente deu o caso por perdido, ficamos tristes, claro, mas o Seu Fonseca repetia que era assim mesmo e ao ouvir isso a gente torcia o nariz escondido dele.
Em pouco tempo ele arrumou por completo a sua horta e seus jardins; também recomeçou a nos passar as coisas pra sopa do menino e numa certa manhã ao me cumprimentar pelo muro ele disse:
- Já vistes as folhas novas?
De pronto eu me virei pra goiabeira. Fui até lá, peguei nas pequenas folhinhas verdinhas de tão novas e uma emoção que eu desconhecia veio com tudo. Do lado de lá do muro, o Seu Fonseca, achando a coisa mais natural do mundo, apenas apertava os lábios e fitava a árvore de cima a baixo.
Um tempo depois, já toda coberta de folhas, com todos os galhos virados pra cima buscando o sol, a gente deu de cara com umas pequenas goiabinhas e dessa vez fomos nós que perguntamos pro Seu Fonseca se ele já tinha visto e o trouxemos pra ver de perto.
Toda vez que tento contar esta história do Seu Fonseca com a nossa goiabeira, aquela mesma emoção me toma por completo.
Muitos anos depois, quando revi a goiabeira, enquanto eu lembrava de tudo o que aconteceu, passava a mão pelo tronco no local onde ficou a marca deixada pelos ferros de sustentação, como se aquela marca fosse a prova de que tudo existiu mesmo, que tudo foi real e mágico ao mesmo tempo.
E quando soube da morte daquele amigo e admirável homem das plantas, eu escrevi um pequeno agradecimento a ele, que no final diz assim:
“Seu Fonseca, minha oração é agora, mais do que nunca, um pedido a Deus para que o acolha bem. Entre as plantas, entre os frutos, entre as nuvens. Muito acima de nós. Muito além do jardim. Obrigado por salvar a nossa árvore”. Que assim seja.