Foi por indicação do meu grande amigo Diogo que
o clássico A Felicidade Não Se Compra foi agendado para ser exibido naquela
semana. Uns dias antes eu estava revendo o filme, arrumando as legendas,
tarefas que eu sempre fazia pra dar uma última verificada no arquivo, antes da
sessão.
Produzido em 1946 pelo diretor Frank Capra, o
filme tem James Stewart no papel principal para contar a história de George
Bailey, um honesto pai de família que pensa em se suicidar saltando de uma
ponte, em razão das pressões sofridas pelo homem mais rico da região. Tantos
amigos oram por ele, até que um anjo é enviado à Terra para tentar fazer George
mudar de ideia.
O crítico Rodrigo Cunha escreveu que é
impressionante o fato de um filme de 1946 falar sobre a ganância do ser humano
e valores da vida e ver que isso se mantém até hoje, e numa escala ainda pior.
Eu estava com o filme fresquinho na cabeça indo
jogar tênis naquele sábado. De bike, saí de casa com a raquete pendurada nas
costas, fone de ouvido, água na garrafinha e quando entrei na ciclovia que dava
acesso à ilha, por baixo da ponte, me deparei com uma pessoa andando
perigosamente na mureta da passarela, tendo só o mar abaixo.
Com o susto, parei logo a bicicleta e fui
caminhando devagar, com medo de também assustar o homem. Ao me aproximar vi que era
uma mulher, de uns 30 anos que, ao me ver chegar perto foi logo dizendo:
– Eu quero pular, mas não quero me machucar. Só
tenho medo de ficar machucada. Queria morrer direto, mas não queria ficar no
hospital não.
Surpreso por ela ter falado comigo, a crueza das
suas palavras, ainda por cima naquele tom natural, como se se tratasse de uma
amenidade, eu não sabia o que dizer à moça. Balbuciei alguma coisa e ela foi
falando da sua vida, da família, dos filhos, pontuando sempre que seria melhor
não ter nascido a viver aquela vida ruim, que a sua não-existência seria a
melhor coisa pra todos à sua volta e que não faria falta pra ninguém se ela
pulasse ali naquele momento.
Então, eu não sei de onde, tirei coragem e força
e passei a falar de mim mesmo, pedindo a ela que saísse da mureta ou somente
sentasse na pista pra gente poder conversar porque, se ela se desequilibrasse
um segundo, ali em pé, cairia no mar. O alívio de vê-la sentada quase me fez
levá-la à força pra fora daquela ponte. Mas me acalmei e fui tentando saber
mais sobre ela, sempre falando de mim também e que todos estamos sujeitos a um
sentimento momentâneo de pular da ponte da vida, como dizia o nosso João Cabral
no Morte e Vida Severina.
Aliás, de repente, tanto o filme do Capra como o
texto do Cabral me pareceram tão similares, complementares talvez, que eu devo
ter feito a maior confusão, falando de um e de outro, na tentativa de convencer
aquela mulher – talvez até a mim mesmo – de que a vida é sempre, infinitamente,
boa de ser vivida.
As poucas palavras dela, os poucos relatos que fazia
davam conta de uma pobreza infinita, uma desventura comovente e uma
desesperança que mal tinha forças pra ser narrada, pra virar palavras, linhas,
verso ou prosa. Um universo tão duro que só me fazia pensar nas pessoas que eu
conheço, que têm tudo e mais um pouco e passam todo o seu tempo culpando o
mundo inteiro. Os nomes me vinham à cabeça e eu dizia baixinho que elas deviam
ouvir aquilo.
Foi então que fizemos um trato. Um tanto frágil,
é verdade, mas promissor como única opção para o momento. Disse a ela que eu
queria muito a ajuda de Deus em um assunto de saúde e que, como todos sabemos,
a ajuda dele, seja Deus, o cosmos ou uma energia maior, só vem pelo merecimento
de cada um em relação às suas atitudes na vida. Por isso eu entendia que foi muita
sorte a minha encontrá-la naquele dia e que, se eu conseguisse tirar da sua
cabeça aquela ideia de se jogar da ponte, eu seria atendido por Deus, pois
seria uma boa ação que eu teria feito. Inclusive, continuei, eu poderia estar
ganhando as minhas asas de anjo, no céu, ou no cosmos, caso ela escolhesse
viver.
Ela me olhava, balançava a cabeça, fechava um
olho e torcia os lábios com desconfiança, até rindo de vez em quando, enquanto
eu falava. Já eu nem lembro direito os meus argumentos acerca das dificuldades
das pessoas em viver, cada um com o seu destino, as suas limitações, inclusive
físicas e mentais e, por fim, repetia o que ouvi várias vezes na vida: que você
só entra no céu levando alguém consigo.
Ao mesmo tempo em que eu achava que estava
vencendo a conversa, também achava que somente com as minhas palavras aquilo não
ia dar certo. Então busquei fechar o nosso acordo:
– Olha só, onde eu trabalho a gente vai passar
um filme na próxima quinta-feira. O nome dele é A Felicidade Não Se Compra.
Promete pra mim então que você vai ver esse filme lá e se depois ainda quiser
pular da ponte eu não falo mais nada. Mas tem que ver o filme antes. Combinado?
– Mas o que tem nesse filme? – perguntou ela.
– O filme é bem legal e depois da exibição tem
uma conversa com a plateia e aí eu vou estar lá, a gente conversa mais e aí
então você toma a sua decisão. Só estou te pedindo pra assistir o filme. Você
aceita esse trato comigo? – e estendi-lhe a mão.
Saímos daquela passarela caminhando juntos e a
todo momento eu relembrava do filme da quinta-feira, às 18h30, no lugar tal,
não vai esquecer, anota lá, quero te ver lá, só te peço pra ver o filme e...
nos despedimos do outro lado da ponte, na chegada à ilha.
Eu nunca mais vi aquela moça. Hoje eu nem lembro
mais da sua fisionomia. Ela não foi ver o filme e desapareceu de vez. Não que
eu ache que ela resolveu saltar em uma outra hora. De verdade, eu acho que só o
fato de ela não ter sucumbido àquele impulso ali, em cima da mureta, já foi o
bastante pra afastá-la dos seus maus pensamentos. Assim espero.
Mas uma outra coisa também pode ter acontecido.
Ela pode ter ido no filme e eu posso não ter notado a sua presença. Me lembro que,
enquanto muitas pessoas iam àquelas sessões de cinema só pelos debates do
final, por já conhecerem o filme, muitos também iam lá só pelo filme. Isso pode
ter acontecido com ela. Ela pode ter entrado com as luzes apagadas, saído assim
que o filme terminou e eu nem ter visto. Pode sim.
Acho que no fundo eu prefiro pensar assim. E por
uma simples razão, justamente uma frase ouvida nos debates depois da exibição. Em
dada altura uma menina da plateia pediu a palavra pra dizer que adorou a
sessão. Disse que o filme tinha a idade do seu pai e que mesmo sendo em preto e
branco, coisa que ela não gostava, foi um dos melhores filmes que ela já viu. E
completou:
– Se a pessoa está com algum problema na vida; se
de vez em quando tem vontade de fazer como o cara que queria se suicidar, se essa
pessoa assistir esse filme nunca mais vai querer pular da ponte. Não mesmo! Que
filme lindo!
E foi então que eu preferi pensar que a mulher
da ponte foi salva por aquele filme. Que ela o assistiu, sim, saiu emotiva da
sala e, por causa dele, decidiu seguir em frente.
Nessa história toda eu preferi continuar
torcendo pela vida como um bom Severino que sou. O Severino do Cabral, lá da
Serra da Costela, torcendo pela vida, sempre, mesmo que seja uma vida severina.
“E se somos severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma
morte Severina: que é a morte de quem se morre de velhice antes dos trinta, de
emboscada antes dos vinte e de fome um pouco por dia”.