No sertão de Alagoas Doralice, a Dora, vive com
sua filha Dorinha, de nome Isadora. Nestes anos do final da década de 1950, ela
é Dora de Dorinha, tendo mudado de Dora de Tobias desde que o marido revolveu
ir tentar a vida pros lados do planalto central, atraído pelos boatos de que
iam construir lá uma capital federal toda novinha.
Por aqui viver é luxo, por isso todo mundo
sobrevive. Não chove quase nunca e, com isso, quase nada que se põe na terra
floresce. Os três caprinos que Dora possui são criados soltos justamente por
obra de que, só assim, têm alguma chance de um comer, diz-se o comer de cada
dia.
Nem padre, nem deputado, nem serviço algum, nem
mesmo as nuvens. Às vezes elas duas duvidam de que alguém nesse mundo de meu deus
sabe da existência delas, da sua casinha e suas macaxeiras, as únicas coisas
que ainda insistem em brotar.
O telhado da casa no ano passado ruiu de vez. De
repente deu um gemido e pronto, veio ao chão com toda a poeira em volta. Não
machucou, mas, pelo menos, nos três meses seguintes em que elas dormiram na
sombra da lua, nenhuma gota caiu.
Quando o frio chegava, sempre de noite, na seca
do fraco inverno equatorial, as duas se enrolavam em panos que jogavam por cima
dos ombros e iam se sentar junto do fogo. Cada uma comentava e interpretava a
dança das labaredas do seu jeito, chamando por um bicho, um monstro ou um anjo.
Dora de Dorinha, há tempos, tinha uma garrafa
escondida. Escondida só por respeito à filha porque Dorinha de Dora sabia de
tudo e, sobretudo, quando e porque a mãe se agarrava com ela nas tardes quentes
esperando a lua chegar. Ela dormia resmungando. Era quase uma monodia, uma
melodia de uma só nota, uma cantilena, um réquiem indecifrável que só cessava
com o fim das forças, quando o sono vinha sorrateiro numa nuvem de pensamentos
confusos, enfim, lhe resgatar da vida. Ou da morte.
Numa dessas noites Dora chorou dormindo. Não era
dor. Não era medo. Nada. Deixou-se ficar ali, deitada, e a filha Dorinha se
aproximou devagar, percebendo que a mãe ainda dormia.
– Ô minha filha. Que lindo. O reisado, que
bonito. O coco de roda, o toré, a quadrilha, lembro bem destas. O bumba meu
boi. O maracatu. Sabe qual é o meu sonho, filha? É ter um casaco. Uma lã
fininha, branquinha, pra eu dormir sem acordar mais, pra levar de vez comigo a
sina dessa vida Severina. E acariciar o seu cabelo pela última vez.
Então foi a filha que chorou.
– Eu é que vou lhe acariciar os cabelos,
mãezinha.
Desatinada e perturbada com o delírio da mãe em
pleno sono a menina sentou no chão ao lado da cama e chorou. Relembrava o seu
jeito de falar e aquelas palavras recitadas, tudo soava estranho por não ser o
modo como a mãe se expressava. Era como se alguém estivesse falando por ela,
por toda a existência, as vozes dos antepassados, a voz da alma.
Na manhã seguinte nem Dorinha nem Dora fizeram
qualquer comentário sobre a noite anterior. Dorinha ainda perguntou se a mãe
havia sonhado, se se lembrava de algo, mas nada. Então, quando foi pegar o bule
e o café debaixo da pia a mãe estacou aturdida:
– Virgem Maria, faz uns 10 ou 15 anos que essa
tigela de madeira desapareceu daqui de casa. Eu procuro ela há um tempão e
agora ela está aqui na frente, como se eu estivesse colocado ontem!
– O que é mãe? O que tem essa tigela?
– Olha isso. Pensei até que tinham roubado. Era
da sua avó. Quando me deu ela escreveu Dora bem aqui desse lado. Ela não sabia
ler, assim como eu, mas aprendeu o meu nome só pra escrever na tigela. Consegue
ver?
– Sim, estou vendo.
– Estava sumida esse tempo todo e não sei como apareceu
aqui, assim, de repente.
Alguns dias depois a menina chegou da roça,
prendeu as cabras e encontrou a mãe caída na soleira da porta de casa. Pegou a
bicicleta e foi pedir socorro ao vizinho distante. Este chamou o amigo que
tinha uma caminhonete e foram até a cidade buscar o médico do povoado. Naquela
noite a casa ficou cheia de gente. Muitos vizinhos nem se tinham dado conta que
o Tobias tinha-se ido embora.
Antes de ir embora o médico deu o seu diagnóstico
e disse que só mesmo na capital a dona Dora teria alguma chance e, mesmo assim,
não poderia garantir que ela aguentaria a viagem até lá. A mãe só olhava o
movimento deles e já não falava. Isadora pediu então pra uma das vizinhas ficar
com a mãe na manhã seguinte, pois ela tinha que ir até a cidade. E assim foi.
Naquela noite Dorinha de Dora se preparou para a
despedida. Sem dizer qualquer palavra, pela impossibilidade da mãe, a menina aprontou
a comida, puxou uma cadeira pra perto da cama e tirou da sacola um lindo casaco
branco de lã fininha e vestiu na mãe. Enquanto vestia, Dora de Dorinha
arregalava os olhos e sorria, enquanto acariciava o tecido na altura das mangas
da roupa.
A menina ficou olhando a mãe com o casaco até
adormecer e quando o sol veio abrir o dia, os olhos de Dora já não se abriam
mais. De pé atrás da cama, Dorinha pegou o pente e começou a acariciar o cabelo
da mãe, conforme prometera.
E então o sol, cumprindo a sua rota, caminhou
mais um pouco até entrar certinho pela janela da casa, iluminando a tigela que
estava em cima da mesa.
E nela estava escrito Isadora.