Como acontece com grande parte dos brasileiros
aposentados de salário mínimo, meu pai se endividou ao fazer um empréstimo
nessas financeiras especializadas em fabricar pobres. São um tipo de comércio
que se multiplica Brasil afora e conta com uma realidade peculiar.
De um lado, trazem uma campanha ilusória de
propaganda, prometendo felicidade e dinheiro fácil, mostrando idosos
aposentados, todos risonhos, viajando e comprando o mundo todo. De outro, dada
a irresponsabilidade e o abandono com que são tratados os aposentados e pobres
em geral neste país, toda a conjuntura acaba por resultar em mais dívidas, na
busca por sanar dívidas anteriores.
Não bastasse somente a crueldade desses
empréstimos, essas financeiras ainda brindam a sua clientela com parcelas
extras e cobranças indevidas, o que configurou, no caso do meu pai, em juros
abusivos.
Constrangido diante dos alertas, insistentes, que
todos nós da família fizemos ao saber do contrato firmado, meu pai apenas nos
comunicou que estava entrando com uma ação contra a financeira, através da
defensoria pública, visto que suas alegações haviam sido comprovadas pelo advogado
público e sua ação foi aceita.
A gente ficou se perguntando como ele teria
conseguido produzir o tal processo e ido buscar os seus direitos, sozinho, sem
a nossa ajuda. Tendo estudado apenas até o terceiro ano primário e começado a
trabalhar muito cedo, aquela iniciativa dele foi uma surpresa para a família.
Passados dois anos do início do processo meu pai
começou a se impacientar com a morosidade da tramitação e decidiu que a cada 15
dias ele ia até o fórum pra saber do andamento, perguntar como estão as coisas,
como ele dizia.
A cada vez que ele ia lá voltava mais
contrariado com o descaso, a falta de informações, as pessoas sem educação e a
burocracia. Nada funcionava direito e o processo ficava largado dias, meses,
sem qualquer andamento ou decisão. E meu pai voltava pra casa e nos contava com
detalhes o martírio que era aturar toda aquela gente.
Eu sempre tentava defender a tal morosidade argumentando
que eram muitos processos, poucos servidores públicos e que as empresas eram
bandidas, em sua maioria, sendo que a estrutura do fórum não conseguia atender
a todos com a devida presteza. O problema é que os anos foram passando e nada
de o processo ser resolvido. Perdendo ou ganhando, pelo menos que deem uma
solução, pedia ele.
Até que foi marcada uma audiência entre as
partes. Era a tentativa de um acordo. Neste dia meu pai chegou em casa mais transtornado
ainda. Primeiro porque soube, pelo defensor público, que o seu processo teria
ido parar no perito médico ao invés do perito contábil. E que isso resultou em
um ano de atraso. Ele perguntava: será que ninguém viu que não tinha que ter
ido pro médico? E passou um ano inteiro até descobrirem o erro? E, do novo, a gente
sempre tentava amenizar a situação pra que ele não ficasse mais nervoso, mais
triste, com toda aquela desconsideração.
A segunda coisa que o deixou enraivecido é que,
antes de iniciar a audiência propriamente, na sala de espera ainda, o juiz
passou pelo corredor e parou pra cumprimentar efusivamente os advogados da
financeira. Não foram simples acenos protocolares ou de cortesia. Pareciam velhos amigos se abraçando, aos altos risos, como se estivessem marcando uma bebida para logo mais à noite, disse meu pai. Aquilo o deixou louco de raiva.
O que ele reclamou daquela cena foi uma
odisseia. Contou várias vezes na padaria, no barbeiro e na loja de ração pro
cachorro, que o juiz era amigo da empresa e que aquilo era um absurdo, pois de
que maneira ele iria julgar ou condenar, sendo assim tão próximo de um dos
lados? E, sem conseguir se conter, dizia que a justiça era uma enorme formação
de quadrilha e que nem mesmo o advogado público teria dito nada sobre o ocorrido.
Nem o seu próprio advogado reclamou com o juiz e, por essa razão, aquilo era
indício, dos fortes, de que ele também estava no esquema. E meu pai finalizava dizendo
que, se calhar ele também ia receber algum trocado da financeira, por aceitar
toda aquela armação.
Depois de uns dias, ainda indignado, meu pai decidiu
ir até a ouvidoria do fórum e contou todo o caso. Narrou o encontro festivo do
juiz e levantou a sua condição de parcialidade no julgamento. O atendente informou
que o procedimento indicado era abrir um sei-lá-o-quê-pra-investigar e o
assunto, como de praxe, nunca mais foi mencionado.
Meu pai, sim, onde podia ele contava da sua
indignação, da armação da justiça com a financeira, que o juiz mandou o seu
processo ficar um ano no lugar errado e que passados 6 anos ainda não tinham
dado uma decisão sobre um simples caso de cobrança de juros abusivos, já
comprovado. Afinal, era um tema que deveria ter mais de mil processos iguais só
naquele fórum.
Eu queria pedir desculpas ao meu pai. Durante o tal processo eu defendi a justiça, dei argumentos para tal, mas era muito mais pra que ele ficasse em paz, diante de toda aquela tamanha injustiça. Queria ter lhe
dado um abraço longo de solidariedade, por tudo o que ele passou na tentativa de
fazer valer os seus direitos, mas não deu tempo. Ele faleceu em 2015, sem
sentença alguma no seu processo. Provavelmente ele foi arquivado. E provavelmente
aquele encontro entre o juiz e os advogados já foi repetido algumas vezes, em
tantas outras celebrações da mesma quadrilha.
Quando se sabe que um juiz vende sentença, todos
os juízes vendem sentença. Quando se sabe que um juiz foi imparcial, todos os
juízes são imparciais. Quando se sabe que um juiz é corrupto, todos os juízes
são corruptos. Mesmo quando se afasta um juiz pego nesses crimes, os outros continuam exercendo o
seu direito de julgar, comprometidos com algum interesse indevido e inconfesso.
Os juízes vêm de famílias ricas. São pessoas de
posse, de influência, que não têm a menor ideia do que seja a vida, do que seja
passar necessidade. Desdenham da igualdade de direitos, sempre sobrepondo a
classe social às suas decisões. Para todos eles a justiça só existe para servir
aos seus iguais. Ela se move pelo dinheiro de quem a movimenta.
Preconceito de todo tipo, empáfia, egoísmo e
corrupção têm levado os agentes do direito a pender justamente para a injustiça
em nome da justiça, para a guerra em nome da paz, para a morte em nome da vida.
Eles são os soberbos ignorantes dos tempos atuais. Já não são dotados de honra.
Íntegros também já não são há tempos. Não se importam com a razão nem com a
verdade. Ao contrário do que dizem nas entrevistas, suas sentenças são
orientadas pelo nome inscrito na capa do processo e não pelo seu conteúdo. Ao descumprirem as leis, fazem
isso como se donos delas fossem.
Quem fiscaliza as suas ações? Quem pune as suas
falhas? Quem repõe a justiça e refaz as suas injustiças? Quem consegue levar às
instâncias superiores, senão os que podem pagar por isso? Na esfera das
instâncias primárias eles acabam de sentenciar e logo vem alguém pra fechar o caso
e jogá-lo num arquivo definitivo.
Mas meu pai, bem, meu pai jamais carregou essa
mácula, esse torpe desvio de existência. A injustiça da qual ele foi vítima,
hoje me dá um nó na garganta. Ela foi executada propositalmente, covardemente, coletivamente.
Mesmo com o seu terceiro ano primário ele
conseguiu enxergar o que muitos de nós, inclusive eu, só está vendo agora,
nesses tempos em que as máscaras da justiça brasileira estão sendo depostas,
uma a uma. Tempos em que o estado democrático de direito no Brasil parece que
não deu um único passo pra fora do lodo fétido da ditadura militar.
Mas meu pai, meu pai com o seu pouco estudo,
merece as minhas desculpas. Tardias desculpas.
Pois meu pai nunca me ensinou nada. Mas eu
aprendi muito com ele.