segunda-feira, 15 de julho de 2019

O Processo


Como acontece com grande parte dos brasileiros aposentados de salário mínimo, meu pai se endividou ao fazer um empréstimo nessas financeiras especializadas em fabricar pobres. São um tipo de comércio que se multiplica Brasil afora e conta com uma realidade peculiar.
De um lado, trazem uma campanha ilusória de propaganda, prometendo felicidade e dinheiro fácil, mostrando idosos aposentados, todos risonhos, viajando e comprando o mundo todo. De outro, dada a irresponsabilidade e o abandono com que são tratados os aposentados e pobres em geral neste país, toda a conjuntura acaba por resultar em mais dívidas, na busca por sanar dívidas anteriores.
Não bastasse somente a crueldade desses empréstimos, essas financeiras ainda brindam a sua clientela com parcelas extras e cobranças indevidas, o que configurou, no caso do meu pai, em juros abusivos.
Constrangido diante dos alertas, insistentes, que todos nós da família fizemos ao saber do contrato firmado, meu pai apenas nos comunicou que estava entrando com uma ação contra a financeira, através da defensoria pública, visto que suas alegações haviam sido comprovadas pelo advogado público e sua ação foi aceita.
A gente ficou se perguntando como ele teria conseguido produzir o tal processo e ido buscar os seus direitos, sozinho, sem a nossa ajuda. Tendo estudado apenas até o terceiro ano primário e começado a trabalhar muito cedo, aquela iniciativa dele foi uma surpresa para a família.
Passados dois anos do início do processo meu pai começou a se impacientar com a morosidade da tramitação e decidiu que a cada 15 dias ele ia até o fórum pra saber do andamento, perguntar como estão as coisas, como ele dizia.
A cada vez que ele ia lá voltava mais contrariado com o descaso, a falta de informações, as pessoas sem educação e a burocracia. Nada funcionava direito e o processo ficava largado dias, meses, sem qualquer andamento ou decisão. E meu pai voltava pra casa e nos contava com detalhes o martírio que era aturar toda aquela gente.
Eu sempre tentava defender a tal morosidade argumentando que eram muitos processos, poucos servidores públicos e que as empresas eram bandidas, em sua maioria, sendo que a estrutura do fórum não conseguia atender a todos com a devida presteza. O problema é que os anos foram passando e nada de o processo ser resolvido. Perdendo ou ganhando, pelo menos que deem uma solução, pedia ele.
Até que foi marcada uma audiência entre as partes. Era a tentativa de um acordo. Neste dia meu pai chegou em casa mais transtornado ainda. Primeiro porque soube, pelo defensor público, que o seu processo teria ido parar no perito médico ao invés do perito contábil. E que isso resultou em um ano de atraso. Ele perguntava: será que ninguém viu que não tinha que ter ido pro médico? E passou um ano inteiro até descobrirem o erro? E, do novo, a gente sempre tentava amenizar a situação pra que ele não ficasse mais nervoso, mais triste, com toda aquela desconsideração.
A segunda coisa que o deixou enraivecido é que, antes de iniciar a audiência propriamente, na sala de espera ainda, o juiz passou pelo corredor e parou pra cumprimentar efusivamente os advogados da financeira. Não foram simples acenos protocolares ou de cortesia. Pareciam velhos amigos se abraçando, aos altos risos, como se estivessem marcando uma bebida para logo mais à noite, disse meu pai. Aquilo o deixou louco de raiva.
O que ele reclamou daquela cena foi uma odisseia. Contou várias vezes na padaria, no barbeiro e na loja de ração pro cachorro, que o juiz era amigo da empresa e que aquilo era um absurdo, pois de que maneira ele iria julgar ou condenar, sendo assim tão próximo de um dos lados? E, sem conseguir se conter, dizia que a justiça era uma enorme formação de quadrilha e que nem mesmo o advogado público teria dito nada sobre o ocorrido. Nem o seu próprio advogado reclamou com o juiz e, por essa razão, aquilo era indício, dos fortes, de que ele também estava no esquema. E meu pai finalizava dizendo que, se calhar ele também ia receber algum trocado da financeira, por aceitar toda aquela armação.
Depois de uns dias, ainda indignado, meu pai decidiu ir até a ouvidoria do fórum e contou todo o caso. Narrou o encontro festivo do juiz e levantou a sua condição de parcialidade no julgamento. O atendente informou que o procedimento indicado era abrir um sei-lá-o-quê-pra-investigar e o assunto, como de praxe, nunca mais foi mencionado.
Meu pai, sim, onde podia ele contava da sua indignação, da armação da justiça com a financeira, que o juiz mandou o seu processo ficar um ano no lugar errado e que passados 6 anos ainda não tinham dado uma decisão sobre um simples caso de cobrança de juros abusivos, já comprovado. Afinal, era um tema que deveria ter mais de mil processos iguais só naquele fórum.
Eu queria pedir desculpas ao meu pai. Durante o tal processo eu defendi a justiça, dei argumentos para tal, mas era muito mais pra que ele ficasse em paz, diante de toda aquela tamanha injustiça. Queria ter lhe dado um abraço longo de solidariedade, por tudo o que ele passou na tentativa de fazer valer os seus direitos, mas não deu tempo. Ele faleceu em 2015, sem sentença alguma no seu processo. Provavelmente ele foi arquivado. E provavelmente aquele encontro entre o juiz e os advogados já foi repetido algumas vezes, em tantas outras celebrações da mesma quadrilha.
Quando se sabe que um juiz vende sentença, todos os juízes vendem sentença. Quando se sabe que um juiz foi imparcial, todos os juízes são imparciais. Quando se sabe que um juiz é corrupto, todos os juízes são corruptos. Mesmo quando se afasta um juiz pego nesses crimes, os outros continuam exercendo o seu direito de julgar, comprometidos com algum interesse indevido e inconfesso.
Os juízes vêm de famílias ricas. São pessoas de posse, de influência, que não têm a menor ideia do que seja a vida, do que seja passar necessidade. Desdenham da igualdade de direitos, sempre sobrepondo a classe social às suas decisões. Para todos eles a justiça só existe para servir aos seus iguais. Ela se move pelo dinheiro de quem a movimenta.
Preconceito de todo tipo, empáfia, egoísmo e corrupção têm levado os agentes do direito a pender justamente para a injustiça em nome da justiça, para a guerra em nome da paz, para a morte em nome da vida. Eles são os soberbos ignorantes dos tempos atuais. Já não são dotados de honra. Íntegros também já não são há tempos. Não se importam com a razão nem com a verdade. Ao contrário do que dizem nas entrevistas, suas sentenças são orientadas pelo nome inscrito na capa do processo e não pelo seu conteúdo. Ao descumprirem as leis, fazem isso como se donos delas fossem.
Quem fiscaliza as suas ações? Quem pune as suas falhas? Quem repõe a justiça e refaz as suas injustiças? Quem consegue levar às instâncias superiores, senão os que podem pagar por isso? Na esfera das instâncias primárias eles acabam de sentenciar e logo vem alguém pra fechar o caso e jogá-lo num arquivo definitivo.
Mas meu pai, bem, meu pai jamais carregou essa mácula, esse torpe desvio de existência. A injustiça da qual ele foi vítima, hoje me dá um nó na garganta. Ela foi executada propositalmente, covardemente, coletivamente.
Mesmo com o seu terceiro ano primário ele conseguiu enxergar o que muitos de nós, inclusive eu, só está vendo agora, nesses tempos em que as máscaras da justiça brasileira estão sendo depostas, uma a uma. Tempos em que o estado democrático de direito no Brasil parece que não deu um único passo pra fora do lodo fétido da ditadura militar.
Mas meu pai, meu pai com o seu pouco estudo, merece as minhas desculpas. Tardias desculpas.
Pois meu pai nunca me ensinou nada. Mas eu aprendi muito com ele.