quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Sobre Mães e Filhos

 

Era um sábado modorrento, de chuva fina e vento forte, desses que incomoda, principalmente a pessoas como eu, de cabelo parco e rebelde.

O exame estava marcado para as 10 horas e todo o esforço pra acordar ainda estava martelando a minha cabeça, me perguntando a todo momento porque eu aceitei marcar naquele dia, naquele horário, quando todo mundo ainda aproveitava o sono preguiçoso e vadio, sem despertador.

Passei na portaria, fiz o protocolo de autenticação do plano de saúde na recepção do consultório e me indicaram a sala de espera. Na sala já aguardava uma senhora com sua filha, também quase senhora, ocupando a terceira fila, e um rapaz, sentado na primeira fileira de cadeiras, umas livres outras interditadas com fita amarela.

Eu fiquei na linha das duas senhoras e assim que me acomodei percebi que o rapaz estava com o celular na mão. Seu aparelho emitia insistentemente diversos avisos sonoros, alguns bem conhecidos, e provavelmente vinham dos aplicativos de comunicação, muito comuns hoje em dia. Seus sons variam de marca pra marca, a depender do volume e dos toques escolhidos.

No caso do nosso rapaz posso afirmar que o som estava definitivamente incomodando o recinto. As duas mulheres já demonstravam, sem quaisquer restrições, suas insatisfações com o barulho que soava a cada mensagem trocada ou respondida, e a cada vídeo que era aberto. O mais curioso, naquela circunstância de inconveniente quebra de silêncio em um ambiente hospitalar, era que o evidente importuno sequer era percebido pelo rapaz, ali obnubilado no seu mundo virtual particular.

Eu já estava prestes a me juntar aos protestos silenciosos das duas pacientes quando entra na sala de espera uma outra mulher, trazendo pela mão o seu filho, de idade próxima dos oito anos, eu diria. O menino tinha um dos braços engessado, pendurado numa tipoia, mas, mesmo assim, trazia na mão um singelo tablet que, ao sentar foi imediatamente sacado, ligado e todos notamos que o braço interditado não fazia a menor diferença para o garoto, para o joguinho que já se desenrolava, com sons de motores, freadas, pneus cantando, algumas vozes gritando e um sininho irritante que parecia uma contagem de pontos, ou algo assim.

Não deu nem tempo de a gente piscar e a mãe botou sua bolsa na cadeira ao lado e tomou o tablet da mão do filho:

– Na... na... não! Vamos tirar o som dessa coisa agora.

– Mas, mãe?

– Não tem mãe nem meia mãe. Esse som vai incomodar as outras pessoas. De jeito nenhum. Além do mais isso aqui é um hospital, tem que manter o silêncio. Vamos tirar todo o som ou então desligar o tablet.

A mãe olhou pra trás, pediu desculpas às duas outras mulheres e depois fez um gesto com a cabeça na minha direção. Eu retribuí o aceno dela e, quando cruzei o olhar com as demais pacientes, notei que todos nós tínhamos uma pergunta na garganta, que estava suspensa, flutuando no ar daquele consultório.

No mesmo instante o rapaz da primeira fila se virou pra trás, pausadamente. Estendeu a palma da mão pra mim e depois fez o mesmo gesto para as demais, sendo que cada uma respondeu ao seu jeito, e com alguma simpatia.

Ele então se voltou pra frente, de novo devagar, e silenciou o telefone, guardando-o em seguida no bolso da jaqueta. A pergunta flutuante estava devidamente respondida.

Não dá pra negar que eu fiquei morrendo de saudades da minha mãe. Aquela frase “não tem mãe nem meia mãe” era típica dela. Vai ver era típica de muitas mães. E enquanto eu fiquei esperando pra ser atendido, várias outras frases dela passaram pela minha lembrança.

Se a vida fosse um filme e eu o diretor – coisa que eu recorrentemente me pego em desvario, imaginando orientar cada ator no seu papel – a cena terminaria com um abraço das duas mulheres no rapaz. Elas dizendo que estavam a ponto de se queixar, pedir mesmo pra ele diminuir o som, mas que nem sempre a reação das pessoas é de compreensão e paz. O rapaz, por sua vez, ainda desconcertado, diria que nem havia se tocado da situação e que estava envergonhado por tudo aquilo. Ao final, ele sublinharia que, se sua mãe estivesse ali, ia dar nele a maior bronca da história, por ter sido egoísta e não ter percebido as pessoas em volta.

A cena terminaria com uma feliz sensação coletiva de alívio da nossa parte.

Primeiro, pela resposta à pergunta crucial.

Segundo, pelo fato de ele ter mãe.

E que falta faz uma mãe.

E que falta me faz a minha mãe!



quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O General e a Bicicleta


Quando eu morava no bairro de Coqueiros, em Florianópolis, o meu condomínio tinha um bicicletário todo bem organizado, com os suportes para prender as bikes e até câmera de vigilância, esta milimetricamente instalada de modo a cobrir todo o perímetro e não deixar nenhum ponto cego.

Mesmo assim, numa certa manhã, a roda da frente da minha bicicleta desapareceu. A bike estava inteira, não havia qualquer outro dano, nem ao quadro e nem ao cadeado, que pareciam estar perfeitos, sem quaisquer sinais de avaria.

Minhas esperanças de achar o culpado, provavelmente um ilustre vizinho, foram se esvaindo pouco a pouco depois da informação do síndico de que a tal câmera de vigilância estava quebrada. Ele combinou comigo que ia perguntar ao porteiro da noite e qualquer coisa me avisaria.

O zelador então veio me consolar:

– Eu trabalho aqui há muitos anos e nunca vi coisa assim nesse condomínio. O que é isso, gente? Roubar uma roda de bicicleta? Do vizinho? É o fim do mundo.

Depois ele pensou, pensou, tirou o chapéu e fez um ruído de desaprovação com a boca.

– Olha, eu vou investigar pro senhor. Tem uma rapaziada aqui dentro que eu já estou de olho. Faz tempo que estou com um deles bem aqui na mira. Então, vou ver o que eu consigo e te falo depois.

Eu disse um obrigado automático, sem ligar muito pro termo “investigar” dele.

Naquela mesma semana o zelador já me veio com uma informação.

– Aquele rapaz que eu estava desconfiado, que eu achava que podia ter surrupiado a sua roda? Pois não foi ele não. Eu mesmo falei com o sujeito e o cara disse que não foi ele.

– Como assim? Você perguntou pra ele?

– Isso mesmo. Perguntei: Foi você que roubou a roda da bicicleta do rapaz do 402?

– E aí?

– Aí ele disse que não. Não fui eu que roubei, não, ele disse.– Ah, então você perguntou se era ele o ladrão da roda da bike. Foi isso?

– Exatamente. E ele disse que não foi ele.

Eu não sabia se ria ou se chorava. Se corria ou se ficava. Na verdade, fiquei olhando pra cara do zelador um bom tempo, achando que a qualquer momento ele ia dizer que era uma pegadinha e ia começar a rir de mim. Mas isso não aconteceu. Era sério. Pra ele, pelo menos.

Isso já tem uns bons 10 anos e eu já nem me lembrava direito. Acontece que hoje, inadvertidamente, tudo voltou à minha memória quando eu abri o site de um grande jornal, um ícone do que há de melhor na imprensa nacional, e lá estava escrita a seguinte manchete: General nega ao STF que ABIN produziu relatórios para ajudar o filho do presidente.

Imediatamente imaginei o general explicando que, por sua própria e fulgurante iniciativa, teria batido na porta da ABIN e perguntado diretamente ao próprio chefe da agência sobre os tais relatórios auxiliares. Ao que o chefe, ele mesmo, em pessoa, teria afirmado categoricamente que não fora produzido qualquer documento para auxiliar os advogados daquele bom filho. A matéria se encerrava com a ministra do STF anunciando que usar um órgão do governo federal com finalidade particular é crime.

Naquele exato momento eu concluí que não há qualquer diferença, pelo menos no que se refere a intelecto e discernimento, entre os zeladores e os generais, com todo o respeito aos zeladores.

Pois veja, se o zelador do meu prédio, que investigou aquele roubo da roda da minha bicicleta, estivesse agora investigando essa ocorrência do auxílio-relatório, penso que já estaria tudo devidamente resolvido. Ora, ora, muito simples: se o general do GSI perguntou ao chefe da ABIN e à PGR se eles cometeram um crime e eles disseram que não, poxa, quem vai duvidar? É um caso a ser encerrado, sumariamente.

No despacho, teríamos arquive-se.

Ou melhor queime-se. O jornal, a denúncia, a apuração, com o STF, com tudo.

Senão, vai que alguém descobre que a bomba explodiu dentro do carro, bem no colo do sargento...



terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O Herói

 

Lá em casa sempre teve muita música. Minha mãe vivia cantando e relembrando canções antigas sobre as quais, algumas vezes, ela perguntava se a gente conhecia ou mesmo se sabíamos o nome do artista que gravou. Muitas dessas músicas ela copiava a letra em um pequeno caderno, e fazia isso desde a adolescência.

Meu pai, por sua vez, era um tanto desafinado, mas também tinha os seus cantores preferidos e, para nossa sorte, não vivia cantando pela casa. Ao contrário, fazia questão de silêncio e ficava apontando os trechos da música que ele mais gostava, pedindo pra gente prestar atenção na voz do intérprete, no seu jeito de cantar e na melodia, coisas que o fascinava.

Embora gostasse de muitos artistas brasileiros, o que ele mais admirava era o Johnny Mathis, cantor estadunidense que criou uma pronúncia rebuscada a partir de uma inflexão diferente na voz, que fazia com que as palavras soassem sempre brilhantes dentro da canção. Quando tocava uma música dele o tempo parava para o meu pai. O volume do rádio era aumentado e a veneração era algo solene.

Me lembro até hoje claramente do fascínio do meu pai pelo Johnny Mathis. Não só porque, durante a vida toda, ele sempre prestou suas homenagens ao ídolo, sempre que pôde, mas pelo fato de que, com uns nove anos, quando eu pedi uma vitrola de Natal, ela veio embrulhada junto com um único disco: o LP do Johnny Mathis. O presente era pra mim, mas o gosto musical era um empurrãozinho dele, claro.

Aquele disco tocou tanto na minha vitrola que eu acabei gostando do Johnny. Alguns muitos anos depois eu meio que fui retribuir o presente e dei pro meu pai um tocador de mp3 com umas 50 músicas do seu ídolo. Ele custou a acreditar que ali, naquele espaço do pequeno aparelho, cabia tanta música, de tantos discos, e afinal bastava apertar um único botão pra ouvir cada uma. Uma beleza.

Mas foi quando eu me tornei pai que a minha ficha caiu. Como pai eu pude revisitar o esforço dos meus próprios pais em querer apresentar os seus ídolos, tanto pra mim quanto pros meus irmãos. Era como nos ensinar a apreciar o que vale a pena ser apreciado. Ponto. E ali valia tudo, desde cantar junto, e apontar os meandros da canção, como sublinhar os versos e as palavras exatas escolhidas pelo poeta.

Nesse sentido, confesso que sou um pai ainda mais chato, porquanto não me restrinjo somente à música nesse aspecto. Primeiro, reconheço que dei muita sorte por meus filhos gostarem de tocar violão e por cada um ter buscado o seu jeito aqui e ali, enquanto eu ajudava no que podia ou sabia. Mas esse foi um bom ensejo pra eu poder indicar cantores e compositores aos montes para eles, desde os mais populares até os quase desconhecidos, pois que a qualidade nem sempre está atrelada à quantidade, via de regra.

O problema é que a coisa não parou por aí e, invariavelmente, insistentemente eu diria, de um tempo pra cá, tenho vivido impulsos incontidos de indicar ao meu filho Deco, além de músicas e músicos, escritores, diretores e autores, em seus respectivos livros e filmes, apontando diversos caminhos possíveis que, no meu tempo, eram trilhados somente pelo caseiro Johnny Mathis.

Talvez eu queira, como meu pai também quis, que os meus heróis sejam os heróis do meu filho. Deve ser algo normal, na própria configuração genética mitocondrial que os telômeros um dia cuidarão de nos explicar cientificamente. Mas acho que, no fundo, é o desejo de compartilhar com a melhor parte de nós – os filhos – o que de melhor nos toca a sensibilidade, a vida enfim.

Alguns anos atrás, indo passar as festas no Rio, o Deco foi me buscar no aeroporto. No caminho até o estacionamento ele pegou a minha mochila e disse pra eu entrar no carro enquanto ele ia deixar as bagagens na mala. Ele abriu o carro, eu entrei e ele tocou no painel, que se acendeu todo e, logo em seguida, começou a tocar James Taylor. Lentamente ele voltou, entrou no carro, pôs a chave na ignição e ficou uns instantes ouvindo a música junto comigo.

– James Taylor é o meu Johnny Mathis – eu disse baixinho, ou imaginei ter dito.

Afinal, o meu herói não precisa, necessariamente, ser o herói do meu filho.

Basta que ele seja reconhecido como tal.

E está tudo certo!



Evie, por Johnny Mathis

https://www.youtube.com/watch?v=BWPZXQqf-g4


terça-feira, 24 de novembro de 2020

Dona Preta


Ela faz faxina aqui em casa já há uns quatro anos. Quando apresentada por sua irmã, logo fui avisado de que, embora sendo branca, e muito branca, a dona Preta preferia ser chamada assim pois não gostava do seu nome de batismo: Alciolé.

No mesmo instante fiquei olhando pra ela e pensando em quantas vezes ela já devia ter explicado isso para as pessoas, sempre sublinhando o gosto duvidoso dos pais pela escolha envolvendo a natalidade. Logo me veio à cabeça Laudelina, nome da minha avó, e Adelino, do meu pai. Minha avó acabou preferindo ser só Lina e meu pai optou por adotar o apelido Careca, dado por seu tio ainda na infância.

Nos primeiros dias lá em casa eu esperava a chegada da dona Preta pra sair pro trabalho. Mais tarde, tendo feito uma cópia, resolvi deixar a chave de casa com o porteiro pra que fosse entregue a ela.

Naquele dia, assim que cheguei no trabalho a dona Preta me ligou, dizendo que o porteiro não queria entregar a chave. Dizia ele:

– É que o senhor disse pra entregar a chave pra dona Preta e essa moça aqui não é Preta não.

– Ô seu Pedro, é que o nome dela, quer dizer, o apelido, ou melhor, o nome que ela gosta de ser chamada é dona Preta. Mesmo ela sendo branca. Faz o favor de entregar a chave pra ela, ok?

Ao voltar pra casa, no final da tarde, ele ainda completou, se desculpando, ao mesmo tempo espantado, de como alguém que é branquinha quer ser chamada de Preta. E balançava a cabeça, como se fosse algo por demais reprovável.

A própria dona Preta ria sempre dessas tiradas que surgiam sobre o seu nome e dessa vez, com o Pedro, também não foi diferente. Ela mesma contou que ficou soletrando pra ele o nome verdadeiro até que ele concordasse que era melhor mesmo usar o tal dona Preta.

Eu já suspeitava que os fatos repetitivos estavam prestes a acontecer, quando me mudei de apartamento. Fui morar do outro lado do Centro e, pra evitar transtornos, já deixei uma cópia da chave com a dona Preta. Pedi que ela fosse até lá e desse uma cuidada geral no apê, mesmo antes da chegada da mudança, que aí já adiantava as coisas pra quando entrasse a mobília, com tudo limpinho.

Por algum erro de comunicação, meu provavelmente, a dona Preta não entendeu que a chave que eu havia deixado era a cópia dela. Então, na saída, ela a deixou com o porteiro, pedindo que me entregasse e que eu era o novo morador da unidade tal.

Assim que me viu entrar o porteiro me reconheceu e disse que tinha uma entrega. Abriu a gaveta, me deu a chave e disse que foi a dona Preta que tinha mandado me entregar. Enquanto eu me dava conta da confusão da posse da chave, que era cópia, ele todo sem jeito, cheio de dedos, me disse baixinho:

– O senhor me desculpe por chamar ela assim, mas foi ela mesma que disse que o nome dela é Preta. Eu nem entendi, porque ela é branca, mas não é falta de respeito minha não, tá?

Eu respondi que estava tudo bem e, mais uma vez, me vi explicando que era frequente as pessoas estranharem o nome dela e que tinha certeza de que não tinha sido falta de respeito da parte dele. Ele ficou aliviado com a minha concordância e quando eu pensei que o evento tinha acabado ali ele me veio com mais uma.

– Eu tenho um vizinho, que é negro, mulato eu diria. Ele é casado com uma galega, daqui de Joinville. Outro dia ele estava me contando que o filho dele fez uma pergunta que ele não soube responder. Contou que o garoto percebeu a diferença das famílias do pai e da mãe, quanto a cor da pele, e que notou que a sua está no meio do caminho entre elas. Aí ele sentou no carro do pai e, enquanto arrumava o cinto, mirando o pai pelo espelho disparou: Pai, porque na casa da minha vó eu sou preto e na casa da minha outra vó eu sou branco?

Ele riu quando acabou de contar e arrematou com um singelo “veja o senhor”. Bem, eu, como sempre recorro aos sábios do meu tempo, devolvi também com singeleza:

– Quem está certo é o mestre Caetano. Ele diz que já passou da hora do Brasil entender e admitir que, por aqui, “somos todos meio pretos”.

E fui entrando em direção aos dois elevadores.

Ambos sociais.

E iguais.


quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O Guarda-Vidas


Quando o seu Aníbal sentou na sala de espera, logo estranhou ao ver à sua volta cadeiras interditadas, com os avisos de distanciamento colados no encosto. Foi neste instante que avistou o seu velho amigo e veio sentar na fileira à sua frente. Logo os dois iniciaram um longo papo que, como veremos, vai acabar justamente no guarda-vidas da praia do Campeche.

Note que o nome do segundo personagem, o amigo do seu Aníbal, eu não relatei acima. Minhas desculpas seguem aqui, pois que eles falaram tão rápido que eu, da minha cadeira, também rodeada de outras interditadas, na mesma sala de espera, não consegui perceber quando anunciado. Eu sei que o nome é tudo. Mas posso garantir que, no caso dessa crônica, farei de tudo para que não seja algo prejudicial ao entendimento dos fatos.

Virado para a fileira de trás, seu Aníbal falava com o amigo sobre outros nomes, mas de pessoas conhecidas que não viam há tempos. Iam enfileirando comentários, acontecimentos, casamentos e até o sumiço de alguns deles quando, de repente, a ocorrência passou a ser a Covid.

Um deles contou que uma grande amiga em comum havia sido infectada e passou por maus momentos, tendo sido entubada por vários dias. Teria ficado bem ruim, mesmo depois de ter recebido alta médica e, no processo de sua recuperação, ainda estava submetida a sessões de fisioterapia respiratória, entre outras coisas.

– O que salvou a dona Izabel foi a sua fé – disse um deles. Ela é católica fervorosa, não perde uma missa. E Deus não ia fazer isso com ela. Deus salva as pessoas que merecem. E é assim que tem de ser.

– Ah, meu prezado amigo, vou te dizer uma coisa do fundo da minha alma: se existe um Deus e ele vem pra salvar só as pessoas que merecem, pra mim ele já nem devia ser Deus. Pode pedir o boné esse Deus.

– Mas amigo, como assim? Deus tem que ver se a pessoa é boa, correta. Não vai sair por aí salvando qualquer um não. Não é assim não.

– Olha aqui, se Deus é o pai e ele sabe de tudo, tu achas que ele vai olhar lá de cima e ver a dona Izabel, lá deitada na UTI, e vai ver que ela é boa pessoa, e vai salvá-la? Ao mesmo tempo, vai largar de mão quem não é igual a ela?

Foi nessa hora, de tanto trocar argumentos acerca de Deus e de merecimentos humanos, que o seu Aníbal recorreu ao nosso guarda-vidas do título.

– Ao contrário de você, eu acho que Deus tem de salvar a todos, pois todos são sua criação. Ademais, todos têm família, entes que os amam, pessoas queridas que sentirão a sua falta ou que suas vidas dependem daquela vida que está em risco. Eu moro na praia do Campeche e sempre que vou caminhar na areia vejo lá em cima, na sua casinha amarela, o guarda-vidas de prontidão. Ele está atento às pessoas dentro d’água. Agora imagine que ele vê uma pessoa se afogando, sai esbaforido em socorro dela enquanto vai nadando ao seu encontro, aí ele chega perto e pergunta se ela é uma boa pessoa, se é católica, e enfim avalia se a pessoa merece ser salva ou não.

– Isso é um absurdo.

– Sim, isso é um absurdo sim. As pessoas falam que Deus é fiel, colocam adesivo nos carros, mas elas querem que Deus seja fiel a elas somente, que se acham pessoas boas. E as outras pessoas? Deus deve dizer um sonoro “que se dane”? Que Deus é esse? Se é assim eu prefiro ser devoto do guarda-vidas, que salva todos os que ele pode, sem distinção alguma de qualquer coisa.

Enquanto eu estava adorando aquela conversa, o outro velhinho já estava aflito, olhando toda hora o número da sua senha, torcendo pra atendente chamá-lo e o tirar daquela enrascada. A única coisa que ele conseguiu dizer foi “pensando assim, você tem razão”, e o disse baixinho, quase inaudível, que só mesmo Deus conseguiu ouvir com clareza. O amigo, já meio surdo, precisou se esforçar e depois arrematou:

– A pessoa está na UTI. É a dona Izabel. Nossa querida amiga, ex-vizinha, católica, gente boa. Ok, mas se ao lado da cama dela tem um lá, também doente, talvez entubado, ele também merece a atenção de Deus, a sua misericórdia e o seu milagre. Não é justo a gente dizer que a nossa amiga Izabel se curou porque merecia a ajuda de Deus por esse ou aquele motivo. Como se o outro não merecesse!

Nesse momento, uma senhora que tinha se achegado pelo meio da conversa, veio se aproximando.

– Desculpe a intromissão, mas eu só queria contar uma passagem que aconteceu na porta da igreja lá perto de casa.

– Pois não, pode contar.

– É rapidinho. É que eu estava saindo da missa com um grupo de amigos e ficamos uns minutos conversando na frente da igreja até que um carro, em velocidade, deu uma freada na esquina que assustou a todos nós. Uma senhora do nosso grupo, que passava na esquina no exato momento, ficou tão nervosa que precisou ser amparada. Disse que ficou em estado de choque quando viu que o carro atropelou um rapaz de bicicleta, de leve, mas que o susto foi grande por causa da freada. E a senhora temia pelo pior porque achou que o ciclista era o seu filho. Quando ela chegou perto do nosso grupo disse que estava aliviada, que graças a Deus não era o seu filho. Aí, um amigo a questionou que não era o seu filho, ok, mas era o filho de alguém que tinha sido atropelado. Ele disse: então, o seu filho Deus protege, mas o filho de outra mãe que se dane?

– Que boa história, senhora. Era isso que eu estava falando com o meu amigo. Ué, cadê ele?

– Desculpe, era só isso mesmo que eu queria contar pra vocês – disse a senhora. Na verdade, eu estou esperando o meu filho vir me buscar depois da consulta. Ele trabalha de salva-vidas e está indo pro trabalho daqui a pouco e vai me dar uma carona.

– Que coincidência o seu filho ser guarda-vidas.

– Porquê? O senhor também é?

– Não exatamente. Mas eu acho que nessa vida todos devem ser salvos. Dentro ou fora d’água.

E saíram os dois conversando porta afora.

Esperando pela chegada de Deus.

Ou do salva-vidas.



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O Espelho

 

Folheando a revista naquela manhã, o senhor Tadashi levou um susto quando viu a foto estampada na página central. Mal fechou a publicação sobre os joelhos, no minuto seguinte já estava em Hiroshima, alguns meses depois da infame explosão atômica.

Tadashi morava com os pais e a irmã mais nova na localidade de Kabe, fora da área central da cidade, mas que, como toda a província, sofreu com os horrores daquele ataque, principalmente nos anos seguintes, vivenciando os desdobramentos dos efeitos da radiação sobre a cidade e todo o país.

Depois da morte dos pais, ainda no primeiro ano do bombardeio, o menino descobriu que toda a família tinha sido dizimada. Alguns parentes no mesmo dia do ataque e, os demais, nos meses seguintes. Ele lembrou que sua mãe, antes de morrer, o teria chamado, possivelmente para contar dessas mortes, mas talvez não teria tido coragem, diante do abandono ao qual o filho estaria fadado, junto com sua irmã menor.

Como a maioria das famílias japonesas, os Tadashi também eram muito unidos. Todos os membros mais velhos tinham uma certa responsabilidade na criação e educação dos mais novos, não importando o grau de parentesco. Talvez seja por essa razão que Tadashi sempre sentiu a grande responsabilidade que tinha pela irmã, por cuidar dela, defendê-la e educá-la.

No início, as autoridades do país tentaram encontrar algum parente vivo que pudesse ficar com os irmãos, mas, sem sucesso, eles foram levados para um centro de atendimento improvisado, onde, diante do caos geral instalado naquele país, ao menos tinham onde comer e onde encontrar abrigo para a noite.

Por muitos meses, anos até, os dois irmãos vagavam pelas ruas irreconhecíveis de Hiroshima revirando lixos e restos, à procura de algo que pudesse ser vendido ou trocado. Um desalento extremo.

Quando completou 9 anos, Tadashi foi levado para um campo distante da cidade, onde a radiação teria tido um impacto menor e ali ajudava no plantio de arroz, entre outras coisas. Os recrutados, entre adultos e crianças, saíam cedinho, ainda de madrugada, em um caminhão barulhento e fumacento, e só retornavam à noite. Alguns deles tinham moradia para onde voltar. Os demais, como Tadashi e a irmã, iam direto para o abrigo.

Às vezes, nos intervalos de descanso, sua mãe vinha falar com ele. Dizia que ele estava cuidando bem da irmã e que tudo aquilo ia passar e logo a vida ia melhorar. O garoto, por sua vez, sempre encarou esses diálogos com muita naturalidade, mesmo sabendo que não eram pessoas de verdade. Assim como elas apareciam, desapareciam sem problema algum. Suas tias também vinham, vez em quando, para orientar e avisar dos perigos, sempre incentivando a sua amorosidade em cuidar da irmã pequena, diante de todas as dificuldades.

As dificuldades a serem vencidas eram um mar diante do menino Tadashi. Então, no mesmo mês em que sua irmã morreu ele se inscreveu em um programa da Cruz Vermelha que trazia pessoas para o Brasil. O Brasil era a melhoria de vida sobre a qual sua mãe falara, anos antes. O jovem japonês ganhou então uma nova vida, um recomeço, longe da paisagem dos escombros que ainda lhe vinham recorrentemente à memória.

Erguendo, pois, a revista das pernas naquela manhã, o velho Tadashi agora hesita em voltar à página da fotografia novamente. Olha em volta, confere a tranquilidade da lanchonete e enfim procura uma luz adequada, pra melhor observar aquela imagem da sua infância.

Um menino de uns 7 anos, sujo, cabelos empoeirados, dorso curvado, carrega uma criança nas costas, envolta em um pano esmaecido, amarrado ao seu corpo, com o desenho de pequenas flores meio apagadas na barra. Ele toca a fotografia com as pontas dos dedos, levemente, cerimoniosamente, como que acariciando o papel.

– O tecido de flores da minha mãe – diz baixinho – Eu nem lembrava que era nele que eu carregava a minha querida Izumi, tão pequena. E esse menino parece tão triste, tão triste, minha nossa – repetia escondendo o rosto.

Tadashi naturalmente não lembrava dessa imagem. Jamais a tinha visto, nem visto a si mesmo naquelas condições, nas ruas, naquele cenário terrível e desolador. Em um esforço de memória conseguiu intuir que em um dia longínquo, um fotógrafo de um jornal qualquer estava fazendo uma matéria e veio falar com ele. Tentou trocar algumas palavras mal entendidas, apontou para a máquina fotográfica e se afastou, na certa pra tirar a foto de longe.

A crueza daquela imagem e a tristeza daquele menino o comoviam. As memórias que, por sobrevivência, haviam sido sufocadas, emergiam agora em lágrimas sentidas que vinham dos olhos de um menino que jamais chorou em toda a sua vida.

– Essa foto para mim é um espelho. Eu me sinto diante de um espelho. Um espelho que mostra quem eu sou de verdade. E eu sou esse menino. Levo minha irmã às costas. Eu sou esse menino e sempre serei, pois que nunca deixei de o ser.

Com a foto da revista aberta em cima da mesa, chora agora o senhor Tadashi.

Chora por seu país.

Chora por seus pais.

Chora por sua querida irmã Izumi.

Chora por todos nós!


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Amigo

 

Antes da era Uber os motoristas de táxi eram os profissionais do volante mais completos de que se tinha notícia. Eles eram uma mistura de guia turístico, recepcionista e segurança, que faziam de tudo pra deixar os clientes se sentirem em casa, tranquilamente, seja qual fosse a cidade visitada.

No Rio de Janeiro não era diferente. E o jeito do carioca ainda ajudava nesse tipo de, digamos, atendimento, já que esses motoristas sempre são, ou se dizem, amigos de quase todo mundo, não importando a classe social ou posição prestigiosa.

Eu estava chegando no Rio e meu irmão foi me receber no aeroporto. Dali pegamos um táxi até a casa da mãe, que nesse tempo morava em Ramos. Assim que entramos no carro o motorista me olhou de cima a baixo, retendo sua atenção no violão que eu carregava junto com uma mochila e uma bolsa. Depois de guardar tudo no porta malas ele já entrou no carro doido pra puxar conversa, mas não teve muito jeito porque eu e meu irmão já falávamos pelos cotovelos, eu querendo saber das novidades e ele de como estava a vida na bela cidade de Floripa.

No primeiro suspiro de silêncio o taxista viu uma brecha e entrou no papo. Disse que gostava muito de Florianópolis e que tinha um cliente que, sempre que vinha ao Rio, telefonava pra agendar o transporte pela cidade, em razão dos seus compromissos.

Logo em seguida, sem respirar, perguntou se eu era músico, ao que eu, de pronto, apontei pro meu irmão dizendo que eu só tocava mesmo em casa e que era ele o músico da família. O sujeito pensou por alguns poucos segundos e perguntou aonde ele tocava e com quem ele já tinha trabalhado, mostrando que conhecia bem os lugares onde tinha música ao vivo. Todos os lugares que meu irmão mencionava ele dizia que conhecia, desde a Ilha do Governador até Iguaba, na Região dos Lagos, passando pelo Centro, que era onde meu irmão tocava nessa época.

A conversa ia pingando daqui e dali até que um de nós falou no Luizão Maia, um dos melhores baixistas que o Brasil já teve. O motorista quase largou o volante, de tanto que se virou pra trás pra falar sobre o cara. Disse que o conhecia de muito tempo e que, mesmo ele tendo ido morar no Japão, sempre que vinha ao Rio, combinava de buscá-lo no aeroporto. Que o músico era uma figura, de tão bacana, além de ser um companheiraço.

A conversa parecia que ia findar, mas o taxista tomou novo fôlego:

– Vocês sabiam que o Luizão é tio do Arthur Maia? Eles têm o mesmo sobrenome, mas pouca gente sabe que são parentes. Baita baixistas. Os dois. Geniais.

Meu irmão até sabia disso e eu, bem, eu tratei de esconder a surpresa pra não parecer ignorante. Enquanto isso meu irmão contava que uma vez foi num ensaio, num estúdio de gravação, e o Arthur estava lá, em outra sala, também gravando. Contou que os músicos dos dois estúdios acabaram se confraternizando e até se misturando nas gravações, uns querendo saber do som do outro e que, na ocasião, o baixista famoso pareceu bem simples e generoso no trato com todos eles.

O motorista, pra não ficar atrás, também contou um monte de causos dos dois baixistas, das vindas ao Rio e das idas e vindas em shows, dos amigos em comum, os músicos e as mulheres que sempre estavam em redor desse tipo de gente, como ele mesmo disse.

A gente não sabia se era verdade e que ele contava, mas não chegava a ser algo inconveniente ou maçante. Então a gente seguia ouvindo e se perguntando como o cara conhecia toda aquela gente famosa. Os músicos mais virtuosos que a gente admirava, era só mencionar que ele dizia que conhecia e contava uma passagem com cada um deles.

Em certos momentos a coisa beirava a incredulidade, devo sublinhar. Mas no geral, aquele era mesmo o comportamento comum da classe dos taxistas. Era a camaradagem, a simpatia e a familiaridade no trato com o passageiro que fazia do taxista carioca um verdadeiro amigo de infância, tão logo findava a primeira corrida.

Enquanto a gente pagava e tirava as bagagens, com o carro já na calçada, em frente da casa da minha mãe, o motorista voltou a dizer que, entre todos os músicos, quem ele mais gostava era o Arthur Maia e que estava feliz pela coincidência do meu irmão ter estado com ele no estúdio.

– Aquele rapaz é um menino de ouro. É uma ótima pessoa e um grande músico. Eu gosto muito dele.

A gente balbuciou alguma coisa já em tom de despedida, mas ele retomou:

– Já que você é músico eu vou te pedir um favor: quando você estiver com o Arthurzinho de novo, chama ele de Grão-mestre dos Cavaleiros Peidões. Fala também que foi o Galo Cego quem disse isso e mandou um grande abraço pra ele. Firme, meu irmão? Então, tô indo nessa.

O táxi arrancou, desceu a calçada, virou a esquina furando o sinal vermelho, como de praxe, e eu e meu irmão ficamos ali, só olhando, sem ação.

Durante todo o fim de semana a gente ficou tentando imaginar algum de nós dizendo aquelas insanidades, e logo pro grande Arthur Maia. Claro que não tinha o menor cabimento. E cada vez que chegava alguém novo lá na casa da minha mãe a gente tornava a contar toda a história do tal Galo Cego. Só pra dar mais risadas. Só pra desconfiar, cada vez mais, daquele impagável motorista, amigo dos músicos. E dos Cavaleiros Peidões.