Das crônicas que eu tenho escrito aqui, desde 2013, talvez esta seja a que eu tenha vivido com a menor idade. Acho que o ano era 1970 e eu tinha, portanto, 9 anos.
A escola onde eu fiz o primeiro grau, que naquela época era chamado de primário, foi a Dilermando Cruz, em Ramos, Rio de Janeiro. Não era uma escola militar até onde eu saiba, já que o patrono foi um jornalista e poeta mineiro, mas, naquele tempo, em plena ditadura militar, todas as instituições tinham que prestar alguma continência, direta ou indiretamente, aos militares.
Em algumas escolas do Rio de Janeiro havia uma espécie de guarda militar mirim, chamada de patrulha escolar. Eu fazia parte dessa patrulha na minha escola e entre outras coisas – sem a menor importância, diga-se, – a gente cuidava de fechar o trânsito na saída das aulas, pra que os alunos pudessem atravessar a rua, na volta pra casa. Tinha um guarda de trânsito que ficava de plantão na frente da escola, mas, mesmo assim, a tal patrulha estava lá pra ajudar, levantar as bandeirinhas verde e vermelha e outras firulas do gênero.
No 7 de Setembro a prefeitura do Rio fazia um concurso das melhores marchas escolares, representadas por suas respectivas patrulhas, com direito a troféu e medalhas. Tinha uma seletiva por regiões e depois uma final em algum lugar, que eu não lembro onde era, talvez no Pavilhão de São Cristóvão, um local onde aconteciam feiras e convenções.
Enfim, naquele ano a patrulha da Dilermando foi selecionada pra essa final e venceu o concurso. Não pelo troféu, que ficava com a escola, nem pelas medalhas, que pelo pouco peso todo mundo via que eram vagabundas, o que mais nos animou ao vencer a competição foi saber que iríamos marchar no Maracanã, na final do campeonato estadual daquele ano.
Já na véspera do primeiro ensaio para a grande marcha a ansiedade quase não me deixou dormir. A mim e a muitos colegas que disseram a mesma coisa naquela manhã, quando subimos no ônibus da prefeitura para ir até o estádio. E, claro, dali em diante tudo era novidade. Na chegada ao estacionamento uma equipe de funcionários do Maracanã nos esperava. Dali fizemos um pequeno passeio pelo interior do complexo, indo desde a subida naquelas intermináveis rampas, os acessos aos diversos setores de arquibancadas e cadeiras, os quiosques de lanches, o setor dos banheiros e as cabines das rádios. Tudo era um só fascínio que nossos olhos de meninos do subúrbio cuidavam de gravar na memória.
A visão do gramado, lá do alto do anel superior, era magnífica. Lembro bem do burburinho dos alunos quando se depararam com aquela imensidão verdinha que brilhava ainda mais pelo sol que completava a moldura, fazendo a sombra das marquises circundar todo o relvado.
Estávamos todos de uniforme da escola, assim como as nossas professoras e os monitores da patrulha. Por isso quando subimos as escadas até o gramado parecia que éramos um time de futebol entrando em campo. Alguns gritavam, outros assobiavam e uns faziam gestos de saudação à torcida imaginária e suas bandeiras imensas.
Não durou muito essa sensação porque, já em seguida, começou o ensaio da marcha. A nossa escola tinha uma peculiaridade e suponho que aquilo tenha feito muito sucesso na competição. Era a formação de uma âncora, que a patrulha fazia durante a marcha, sem perder o ritmo da percussão que nos acompanhava. A gente ficava marchando em formação de pelotão um bom tempo e de repente, após um breve sinal, cada um ia pro seu lugar na âncora, mantendo o passo e o compasso, na marcha em si.
Eu não gostava nada daquilo, muito menos aquela âncora nada me dizia. Mas, enfim, era suportável toda aquela perda de tempo, até porque, estar ali no Maraca, fazia tudo valer a pena.
Não sei quanto tempo a gente ficou ensaiando. Só lembro que íamos em todas as direções, e toca de montar a âncora, e desfazer em seguida, e voltar à formação original, e refazer, e agora em frente das cabines de tevê, e depois perto da área e na outra área. Tudo isso parando pra corrigir, ouvindo os monitores endireitando as transições e nos lembrando que no dia da apresentação seria só a gente, sem a ajuda deles.
Estava todo mundo cansado, quando deu a hora do intervalo. Todos nós fomos levados a sentar na sombra, já fora do campo, mas ainda no gramado, e o pessoal da organização desceu as escadas pra buscar o lanche. Enquanto a gente estava se acomodando as professoras avisaram que, durante o lanche, não era permitido deixar objetos no campo e todo o lixo devia ser recolhido e levado dali.
Também avisou que a gente não podia jogar bola no campo pois os nossos sapatos escolares poderiam estragar a grama.
O mais doido foi que aquele aviso durou uns três segundos, se muito.
No exato instante em que ela disse que não podia jogar bola de sapato, todos nós, eu disse todos nós, tiramos os sapatos e as meias e partimos pra dentro do campo. Simultaneamente umas três bolas, de diferentes tamanhos e cores, surgiram de dentro de bolsas, sacolas e mochilas que alguém trouxe, jamais soubemos quem. Pra completar, uma penca, ou renca, de crianças passou a correr pra todos os lados, em direção ao gramado, debandando em todas as direções como se não houvesse amanhã. Meninos e meninas, às dezenas, correndo descalços na mesma direção, atrás de uma bola, gritando, ensandecidas, até chegar ao i-men-so gol. Ali, como não tinha time adversário, todos gritávamos gol a plenos pulmões e depois de alguém ir buscar a bola dentro das redes, começávamos tudo de novo em direção ao gol oposto.
No início, professoras e monitores até tentaram conter alguns estudantes, provavelmente os mais lentos, mas, diante do caso perdido, decidiram por liberar também esses coitados, pra que pudessem curtir a brincadeira. Enquanto isso, do lado de fora, eles se divertiam observando toda a cena maluca, ao lado campo.
A gente corria, e corria, e aquele gramado que não acabava. De uma área a outra mal dava pra ver as balizas lá longe e os alunos pareciam correr atrás do nada, porque nem as bolas eram visíveis daquela distância.
Verdade é que, desse dia, eu até lembro um pouco da marcha, pelo cansaço e pelo sol que estava fritando a gente. Já do lanche eu não lembro de nadinha. Nem sei dizer se eu ou algum dos meus colegas lanchamos. Mas da correria naquela imensidão gramada eu lembro muito bem até hoje e já perdi a conta das vezes em que sonhei com esse dia.
Recordo que durante a correria, sentia que a minha respiração parecia que ia acabar e logo em seguida voltava com todo o fôlego pra eu chegar naquela bola. E lembro também da sensação gostosa do chute perto das traves e poder ouvir o barulho da redonda estufando o barbante, algo mágico, enquanto o autor do gol – eu – corria pra torcida agradecendo pela vitória triunfal.
Nessa época, nas peladas que a gurizada jogava bem em frente da minha casa, sempre que surgia alguma disputa sobre quem era o melhor boleiro da rua eu acabava logo com a discussão, perguntando:
– Tu já fez algum gol no Maracanã? – e saía de lado, com um leve risinho e um ar de vencedor.
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