sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Judith


Minha mãe tinha bronquite. Desde pequena vivia às voltas com sua respiração descompassada e na fase adulta, por recomendação médica, passou a usar periodicamente uma bombinha – como ela chamava –, que não era nada mais que um inalador, via oral, um santo remédio para aliviar nos surtos de falta de ar.

A bronquite é um mal que, embora não seja tão grave, tem uma peculiaridade que faz com que todo mundo tenha uma sugestão na manga, sempre que está diante deste diagnóstico. Assim era também com a dona Jurema. Em todo lado que ia alguém sugeria uma fórmula milagrosa, seja chá, água, planta, raspa disso e daquilo, simpatias mil, exercícios diversos, maneiras estranhas com posições idem para se deitar e até objetos variados a serem aplicados na boca, durante a noite, e que controlariam a respiração durante o sono.

Tinha vezes que a crise só regredia se ela fosse socorrida no hospital, às pressas, pra ficar no balão, que era como a gente chamava o bronco dilatador enorme, quase uma cápsula espacial, que só tinha lá. A gente ficava horas e horas ali na recepção esperando, até que enfim ela surgia numa cadeira de rodas trazida pela enfermagem, renovada, porém abatida.

Foi durante uma festa de santo, no centro espírita que ela frequentava, que um orixá a chamou pra perto e entre uma dança e outra sussurrou que, como solução para a cura da sua bronquite, ela deveria criar uma tartaruga. Sem entender a frase súbita, ela esperou o término daquela gira e foi até a entidade para obter mais detalhes. A recomendação, pois, era de criar uma tartaruga, mas uma que tivesse treze pintas no casco. E era isso, apenas criar essa tartaruga e ela ia se curar da bronquite.

Dentre todas as indicações que surgiram ao longo dos anos, sejam as médicas e as não-médicas, aquela jamais seria apenas mais uma, até porque havia de ser considerada de onde vinha e de quem vinha. Então minha mãe, primeiro, disse que o problema era onde iria achar uma tartaruga de treze pintas. Depois, analisando melhor, cuidar de uma tartaruga não seria algo assim tão difícil, a ponto de inviabilizar a tentativa. Assim, a família toda, e os amigos também, passaram a ter como missão conseguir aquele animal raro que, no orbe das divindades africanas, curava bronquite.

Não lembro quanto tempo se passou mas, um dia, uma amiga da família chegou lá em casa com uma caixa de papelão e deu pra minha mãe. A gente já tinha quase esquecido do caso mas, assim que ela abriu a caixa e disse um “minha nossa, você conseguiu achar”, todos em volta já sabíamos que se tratava do famigerado réptil. Interessante foi notar as pessoas chegando perto do animal e apontando o dedo para contar as suas pintas, como que pra se certificar de que tinha realmente as treze que o orixá prescreveu.

Daquele dia em diante minha mãe nunca mais usou a sua bombinha. Não sei quantas vezes a vi contando esse caso e mostrando a sua melhora na respiração desde então. Uma vez ela foi buscar a dita cuja na gaveta pra mostrar pra alguém e quando a acionou descobriu que, de tanto tempo sem uso, já nem funcionava mais e a ponta de onde antes saía o spray do remédio estava até travada. Estava tudo colado já e, vai ver, nem tinha mais líquido algum lá dentro, o que provava o tanto de tempo que o aparelho não era usado.

 Muitos anos depois a tartaruga das treze pintas foi doada pra um casal, amigo da família, que vivia num sítio fora da cidade, justamente numa época em que a gente passou a morar em apartamento. Foram poucos esses anos e, logo que voltamos a residir em casa térrea novamente, minha mãe ficou com pena de pegar de volta o bicho.

Outro lapso de tempo considerável e minha irmã Alyne ganha de presente de uma amiga, também numa caixa de papelão, uma pequeníssima tartaruga. Logo que vimos a pequena, nascida em Pindamonhangaba, e que cabia na palma da nossa mão, nos demos conta de que estávamos todos nos remetendo àquela antiga tartaruga das treze pintas. Minha mãe mais ainda. O sentimento era um misto de saudade e alegria pela nova companhia que chegava.

Foi assim que surgiu na família a Judith, a segunda geração de tartarugas. Sem as treze pintas, sem obrigação de cura e dessa vez, não através da mãe, mas pelas mãos da filha, Alyne. Como de costume, a gente foi, aos poucos, descobrindo o que ela comia, como dormia, o que gostava, se podia dar banho, se ficava na sombra ou no sol, qual a melhor casinha etc. A princípio a gente só percebeu que ela era muito mais serelepe que a antecessora, mais astuta, sei lá. E essa sempre foi a maior característica dela.

Depois de um tempo a gente passou a dizer, em tom de troça, que a Judith era um bicho arisco, o que contrariava a lógica de toda e qualquer tartaruga. Mas isso se dava pela facilidade com que ela se escondia de todo mundo, de um minuto pro outro. Muitas vezes a gente até achava que ela tinha fugido de casa, sei lá ganhado a rua e saído desembestada – desembestada já é demais – mas, enfim, que ao sair portão afora alguém a tinha visto e sequestrado pra todo o sempre. Só que dali a umas poucas horas, a gente bem distraído e, pronto, passava a Judith no meio do quintal, desfilando com sua vagarosa intrepidez, como se dissesse “olá, tô aqui, ninguém me pega, hahaha”.

Assim, o primeiro que a via, logo chamava a todos e nós ficávamos ali, como plateia, apreciando o desfile, tentando adivinhar onde raios ela tinha estado e, ao sair do seu esconderijo, se era por razão de fome, sede, calor ou lá o que fosse. Nessa hora, quase sempre um de nós saía pro quintal com uma banana, um tomate ou uma folha de alface nas mãos, pra tentar saber dela o seu real paradeiro de há pouco. Mas, pra nossa surpresa, Judith nada dizia!

Recentemente, há cerca de cinco ou seis anos, e isso é recente ao menos para uma tartaruga, a Judith foi morar em Saquarema, com uma prima nossa. E, por vários motivos, essa acabou sendo uma mudança colossal na vida dela, não só pela nova cidade em si, na belíssima Região dos Lagos.

É que, pela primeira vez, a Judith foi levada à presença de um veterinário. Não havia nenhum motivo sério, mas apenas uma visita. E logo que o médico examinou, perguntou:

– Como é mesmo o nome dela?

– Judith – respondeu a prima, acrescentando que foi a dona que batizou.

– Mas tem um problema.

– Ai meu Deus, qual o problema doutor?

– É que a Judith é um macho e não fêmea.

Pronto, estava criada a mais nova sequência de piadas na família. Tantos anos que chamamos a Judith por um nome feminino e ela agora devia querer se vingar de nós. Quanta maldade com ela, quer dizer, ele. Agora seria O Judith? Tadinho. Será que ele tentou avisar isso pra gente alguma vez? Deve ter chamado a gente de burro toda vez que pronunciávamos o seu nome. Quem sabe até cuspia pro lado, de nojo, de raiva. Por isso que sempre desaparecia das nossas vistas o coitado. Vai ver que agora, só pra provocar, ele passa no quintal desfilando vagarosamente, como modelo, galã de novela, desafiando a todos com o seu olhar de John Wayne? Inclusive, nos dias em que está de ovo virado deve chamar todo mundo pra briga.

Eu, pessoalmente, prefiro a versão da minha irmã. A partir de quando soube da notícia, a Alyne conta que, nos seus sonhos, o encontro da Judith com os outros animais lá em Saquarema se dá assim:

– Oi Judith. Soube que você agora é macho! É verdade mesmo?

– Judith é o cara...ho, meu nome agora é Zé Pequeno, porra!

E sai rindo, cinematograficamente...

 

 


4 comentários:

  1. Ficou fácil entender pq ele fugia, se escondia quando vocês começavam a chamar: Judith! Mas o Juju ainda mora em Saquarema? Meu vizinho? Tá bem de vida ele agora...

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  2. O tartarugue deve estar virade no surfe.

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