No dicionário
Houaiss, algumas acepções para a palavra mancebo são: 1) que ou aquele que está
na juventude; jovem, moço; e 2) pessoa que presta serviços domésticos sob
remuneração; criado, assalariado.
Já na rubrica de
mobiliário, o mesmo dicionário lista: cabide constituído por um tripé ao qual
se encaixa uma haste vertical provida de braços, usado para pendurar roupa,
chapéu etc.
Enfim, o
mancebo lá de casa, de pendurar roupas, um belo dia quebrou uma das partes, no
caso, o braço. Todo de madeira envernizada, o troço parece robusto mas, na
maioria das vezes, é algo por demais frágil. A depender de quem usa e também da
quantidade e peso das roupas ali deixadas, ele pode durar vários anos ou, quem
sabe, ir-se degradando pouco a pouco, empenando-se, vergando-se,
configurando-se em uma questão de desequilíbrio um tanto preocupante.
Se um lado
pesa mais do que outro, aí então é que a coisa tende a piorar, pois o rapaz vai
entortando, arqueando imperceptivelmente, rangendo em certas ocasiões, até que
um dia dá um crack surdo e pronto, lá se foi o braço do mancebo.
Devo dizer que,
por um bom tempo, o coitado ficou assim, ali esquecido, cabisbaixo, encolhido
no canto do quarto. Até que eu resolvi que aquilo já tinha ido longe demais.
Primeiro, com toda a minha certeza, eu colei o braço. Uma cola forte de
madeira, com cheiro idem, e que deu em nada. Poucos dias depois, lá estava o
troço capenga de novo.
Depois de uma
revelação científica em uma tarde chuvosa, a solução veio como um raio e eu fiz
uma trança com arames e barbantes, puxando o braço pra posição um pouco mais
acima do normal, de modo que com o peso das roupas ele ia ficar na posição
certinha. Errado de novo. Caiu tudo de uma só vez e nem as cordas de violão,
que eu usei em seguida, deram o menor resultado.
Foi então que naquela
noite, em sonho, eu estive participando de um areópago, que é uma espécie de
assembleia de sábios, cientistas e literatos, cuja origem remete a Grécia antiga.
Na reunião, um dos brilhantes e honoráveis teóricos, depois de ouvir o meu
relato, sentenciou de pronto, cofiando a barba:
– Só tem um
jeito de consertar o seu mancebo, meu rapaz. Bota uma braçadeira nele, firme e
bem apertada, exatamente onde está o quebrado.
– Braçadeira
não, mestre, abraçadeira, o senhor quer dizer.
– Saiba o rapaz
que sua petulância é incabível e muito me avilta – respondeu o sábio severo.
Confuso com a
bronca que tomei, percebi a aproximação de um outro senhor, todo de branco,
curvado no apoio do seu cajado, me dizendo baixinho:
– Meu filho,
braçadeira e abraçadeira são a mesma coisa, ambos estão certos. Fique quietinho
agora.
A sentença então
foi debatida e, depois de apontada como a solução, foi aprovada pela assembleia.
Enquanto os aplausos pelo encerramento da sessão solene ainda ressoavam nos
meus ouvidos, eu acordei.
Dali a uma
hora eu ganhava a rua, vivaz e determinado, em busca de uma abraçadeira para
consertar o mancebo lá de casa. E foi o tempo de entrar na primeira loja e logo
percebi que a coisa não ia ser tão fácil como eu imaginava.
– Eu queria
uma abraçadeira de uns 4 centímetros de diâmetro, por favor.
– É pra fogão
ou cano? E o cano onde está, na parede ou tá solto?
– É pra
prender o braço do mancebo?
A partir dessa
resposta, todo mundo na loja estancou pra ouvir o restante da conversa e eu
tive de explicar o que era o tal mancebo, o que estava quebrado nele e só aí o
balconista finalmente disse que tinha entendido, mas que não tinha a peça.
Na outra loja
eu fui logo explicando tudo. O troço de pendurar roupas, que tinha uma haste, o
braço, de madeira e mesmo assim, de novo, todo mundo veio pra perto, pra
entender o drama do rapaz com o braço quebrado, coitado.
O atendente falou
que tinha só abraçadeira tipo meia-lua, e perguntou se servia. Quando eu ia
responder um outro senhor, também cliente da loja, interrompeu dizendo que
tinha que ser uma braçadeira de emenda, como se fosse aquelas que se usa pra
juntar dois canos:
– Como as que
são usadas nos fogões a gás entende? Que a gente passa a mangueira pelo bocal,
encaixa um no outro e depois fixa com a braçadeira.
Eufórico eu
disse:
– É essa!!! É
essa mesma. Muito obrigado.
E o sujeito
arrematou:
– Mas só tem
uma coisa, meu querido: não se diz abraçadeira e sim braçadeira. Todo mundo
fala errado isso.
– Não senhor,
o certo é abraçadeira mesmo – retrucou alguém ali perto. Pode ver lá
naquele..., no Google. Pode ver. Eu tenho certeza que é abraçadeira.
Contente por
achar finalmente a tal peça, eu fui no fundo da loja pagar e pegar o meu
pacote. Na saída, um velhinho com o celular na mão e segurando os óculos na
ponta do nariz, lia a telinha, batendo no balcão:
– Aqui, olha
só, nenhum dos dois estava certo. Ou melhor, os dois estavam certos. Diz aqui
que os termos são iguais, ambos são aceitos no dicionário, pode ver aqui na
tela.
– Então eu
estava certo, sabia que era braçadeira – vibrou o primeiro.
– E eu também
acertei. Abraçadeira, pois não!
Confesso que a
minha cabeça já estava um tanto confusa com aquilo tudo e o melhor era
simplesmente ir embora.
Meio sem rumo,
sem saber direito o caminho, eu comecei a me lembrar do sonho da noite
anterior. E pensando bem, eu já não tinha assim tanta certeza em apontar as
diferenças entre aquele tribunal da loja e o areópago cheio de pompa com que eu
havia sonhado, mas que eu trazia bem vivo ainda na memória.
De repente a
similaridade das duas realidades se mostrou um tanto perturbadora pra mim. Acho
que por um triz eu não perdi de vez o rumo de casa. Deve ter gente que fica
louca na vida depois que vivencia experiências como essas. A pessoa tem de ter uma
cabeça muito boa. As coisas todas no lugar.
Eu fui andando
e avaliando o risco que eu corri. Às vezes me preocupava de verdade. Às vezes
eu ria sozinho e maneava a cabeça, duvidando da vida. Quem sabe alguém que me
viu nessa caminhada pensou que ali ia uma alma perturbada. E eu ria mais ainda
quando pensava nisso.
Mas felizmente
eu fui salvo pela distância. Pela pouca distância, pois logo cheguei em casa e me livrei a tempo daquele
devaneio labiríntico que já crescia mais do que devia.
Aliviado, eu
entrei no prédio e ainda tive o tino intuitivo de agradecer mentalmente ao
pessoal da loja e a todos os velhinhos, possíveis clientes e amigos do dono, sei lá, que,
de alguma forma, me ajudaram a manter os pés firmes neste planeta Terra.
Por mais algum
tempo, pelo menos.
Gostei muito! Uma abraçadeira forte para você, Anderson!
ResponderExcluirE o braço do mancebo, resiste bem ao uso - agora que está com (a)braçadeira?
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