Da minha avó
Julia, eu só lembro por causa de uma foto em que eu estou no seu colo. Ela
morreu quando eu tinha dois anos, mas quando eu vi a tal foto pela primeira vez
me lembrei da sensação daquele dia, do colo, a varanda, o fim de tarde, e a percepção
de alguém ter disparado a máquina.
A vida da
gente é uma caixa cheia de coisas, algumas sem explicações. Só dá pra sentir. A
pessoa vai juntando, juntando... fatos, relatos e memórias – ainda bem –, sendo
que algumas delas só vai compreender muito tempo depois. Ou mesmo além do
depois.
Na minha
infância tinha uns lugares bem curiosos: a Coreia, a Pedreira, o Cai Duro e o
Pontilhão. Pra soltar pipa o melhor era quando o vento estava pro mangue, que
eu nunca soube onde ficava exatamente. E tinha outros espaços agradáveis como o
quintal do meu avô e a rua de paralelepípedo onde a gente jogava bola
praticamente todos os dias. De manhã jogavam os meninos que iam pra escola de
tarde, e de tarde o inverso. Já de noite só jogava quem já tinha feito o dever
de casa. A não ser na noite em que inauguraram a nova iluminação. De mercúrio, disseram.
De repente ficou dia novamente, e logo alguém trouxe uma bola pra comemorar. Enquanto
isso, um outro já foi botando o chinelo no meio da rua pra fazer de gol.
Dessa época eu
guardo a Anaíse, o Edinelson, o Peri, o Marquinhos, o Carlinhos, o João Pimpão,
mestre no jogo de botão, o Renatinho e o Jorge. Tinha a Kátia, que sempre passava
pela rua voando de bicicleta, e a Glória, filha do dono do armarinho, que recente
ficara órfã de mãe e a gente tinha todo o cuidado do mundo com ela.
Das peladas
dos “mais velhos” lembro do Pascoal, o craque disparado da galera, do Tião
Azeitona e do Tião Tristeza, irmão do Ferreirinha. Eram dois Sebastiões, ímpares
e impagáveis, vivendo na mesma rua. Esses jogos de futebol eram um evento e eu
ficava na espreita pra ver se surgia uma vaga no time dos grandes. Como eu era
bem pequeno, só era chamado mesmo pra completar o time.
Com uns 3 anos
eu ganhei um Kart. Ah, aquele Kart. Tenho muitas saudades dele. Guardo nítida a
sensação de fazer as curvas no limite da calçada, para não deixar a roda descer
o meio-fio e travar a manobra. Os adultos admiravam a minha destreza e eu pedalava
frenético, virando o volante certinho, no momento preciso da curva. Era todo de
lata: o banco, o volante e até as rodas, revestidas de borracha. Eu nem tinha
dado muita bola quando ele chegou. Foi depois que meu pai o pintou de branco e
azul, retocou a pintura na verdade, e me mostrou como fazia pra andar – mostrando
os pedais, que eu alcançava com a ponta dos pés – que se deu a nossa parceria,
uma espécie de vida nova para nós dois.
Foram
inseparáveis três longos anos, ou quatro, eu acho, pois nessa época eu custei
um pouco a crescer como os outros meninos da rua e, enquanto eu cabia dentro do
Kart, estava pilotando. Lamento não ter uma única foto dele, no seu mágico tom azul
emoldurado de branco. Depois de adulto eu já o dirigi algumas vezes, mas o
passeio sempre me deixava triste no exato momento em que eu acordava. Fazia um
enorme esforço pra voltar pro sonho, mas nunca consegui perfeitamente.
O primeiro
encantamento foi a Rosana Pereira Guimarães. Ela morava na Rua Dona Isabel, no
bairro vizinho, perto da linha do trem. Arrumando os pares para o ensaio da
quadrilha da festa junina, foi a professora, a Tia Dulcinéa, que nos juntou já
no primeiro dia de ensaio, na quadra da escola. Ela ia escolhendo meninas e
meninos, tendo como base o porte físico de cada um. Aí, ia separando as
crianças e pedindo pra ficarmos de mãos dadas, como pares já definidos. Passou
um tempão até ela acabar de formar todas as duplas e, de repente, a turma
estava dando risada por sermos os únicos que não tínhamos largado as mãos. Eu
já era adepto do “ninguém larga a mão de ninguém” e nem sabia.
Por volta dos dez
anos entraram na minha história duas anjas da guarda. Uma foi minha prima
Teresa, que me salvou a vida num atropelamento que sofri na frente da escola,
na saída da aula. Por causa do esforço dela em me segurar a todo custo, eu só
quebrei a clavícula e fiquei cinco horas em estado de coma. Dei graças a Deus e
a ela por ter sido só isso!
A outra anja foi
a Maria Fernanda Ferreira. Ela foi uma companhia astral, digamos assim, porque
esteve perto de mim durante todos os anos do ginásio, depois do científico,
tudo no mesmo colégio. E quando eu fui tocar violão na Igreja descobri, com
enorme surpresa, que ela fazia parte do grupo jovem. Nossa convivência foi
ininterrupta, desde os meus dez anos até os trinta e poucos, quando ela deixou
esse plano, mas não deixou de ser minha anja. Meu filho Deco divide comigo algumas
boas e alegres lembranças da nossa querida Fernanda.
Nessa minha
mala eu carrego muitos filmes, muitas saudades, tudo muito misturado em
imagens, como devem ser as sensações, as emoções, de tantos matizes, tantos
encantos. Os bolos de aniversário feitos pela minha Tia Iara, que demais; o
caiaque que meu pai comprou quando a gente morava na Ilha do Governador, na rua
da praia; as primeiras idas ao Maracanã com meu pai e meus primos Norton e
Sérgio; as professoras Eloisa, de Português, e Vanda, de Matemática; as
primeiras bicicletas, minha e do meu irmão, e as tardes de pedaladas entre os
prédios, lá no Iapetec; o primeiro violão, presente do meu pai, aos 18 anos, que
ganhou o nome profético de Deco; o Manoel Caruncho, pescador que me ensinou os
primeiros acordes e sabia tudo de Roberto Carlos; a foto que tirei segurando
minha irmã Alyne no colo, ela recém nascida e eu com 9 aninhos; a casa da Ilha
do Governador e a praia do Barão; dona Vitalina, mãe do Baiano, amigo da
família, o cara de chute mais forte que já vi pessoalmente; o fabuloso Colégio
Lemos Cunha de tantas histórias; a tia Wanda, minha querida madrinha, sempre
cuidando da gente, ajudando meus pais, junto com minha avó Lina.
A partir dos
20 anos lembro precisamente dos sábados e domingos – sagrados – de futebol na
UFRJ, no Fundão, com o Batata, Ricardo da Vivi, Manoel, Bolinha e Ronaldo; mais
tarde os jogos de vôlei no clube do Botafogo, com o Carlão e uma turma boa; seu
Camilo, da barraca da praia da Barra do Jacuípe, na Bahia; o cinema Metro
Boavista, no Passeio; a Vila de Sintra e o Castelo da Pena, com os sobrinhos Bruno
e Caganito; a Serra da Arrábida e o Porto; o mestre Severiano Laguna, brilhante
professor de filosofia, já na faculdade; o eterno Saramago; a eterna Elis; os
aplausos a Olívia Byington em várias plateias; o Mudo, que já teve crônica por
aqui; o seu Fonseca, que ressuscitou a goiabeira lá de casa; a vila de Caixa
Prego, na Ilha de Itaparica; a Ribeira e o Buraquinho, em Salvador; e a
histórica Paraty, onde fiz o meu batismo de mergulho.
As paisagens
mais recentes que me vêm são Frauenfeld, a ítalo-suíça Breno e a inesquecível Stein am Rhein, a mais linda de todas as cidades. Depois Lucerna, Winterthur,
Montreux e, claro, Paris, o museu, a mágica e inesquecível feirinha de arte no
alto de Montmartre, a Notre-Dame dos sonhos e os caminhos aleatórios que sempre
nos levavam de volta ao Campo de Marte, guiados pela silhueta da majestosa Torre,
eternamente tocando o céu. Quando lembro daquelas ruas, as praças, os rios...
sinto nas minhas mãos as mãos da minha Rê a me guiar. A me ajudar a olhar. Como
Galeano.
Enfim, essa
coisa de arrumar mala em cima da hora, definitivamente não é comigo. Natural
que não tenho a menor intensão de viajar em breve. Mas como são muitos itens, prefiro
ir organizando aos poucos, com tempo suficiente pra não esquecer nada.
Muitas coisas,
porém, me escaparam a uma narrativa mais profunda. Meus irmãos, que estiveram
comigo pelo sempre da vida; o João, meu sobrinho querido, sujeito inteligente e
que vai longe; o Deco de tantas histórias, acordes e violas e, enfim, a saudade
diária da dona Jurema, do seu Careca e do meu eterno pequeno Daniel, até hoje a
me surpreender, estendendo o baralho nas mãos, com um sorriso maroto.
Pois estas são
as chaves que me abrem o espaço e o tempo.
No certo
momento, intuo, tudo será devidamente revelado.
Quem sabe, inclusive,
seja a hora de ser revelada a carta.
A carta que na
vida eu escolhi: o Valete de Paus.
E eu então
direi:
– Estou
pronto.
Quem teve infância feliz guarda as paisagens eternas desse tempo que nos inventa. O teu olhar amoroso para o mundo nasceu nas ruas da tua infância, aquelas ruas com chinelos de dedo servindo de marco para as goleiras. Essa crônica é uma declaração de amor à vida ímpar que você teve. Abraços,Silvana
ResponderExcluirMeu amigo Anderson, que lembranças maravilhosas, feliz de quem tem tanto pra recordar é pouco pra lamentar! Parabéns meu poeta!
ResponderExcluirQue lindo, querido amigo ler esta descrição tão carinhosamente recheada de detalhes. Que feliz é você meu amigo que tem tanto pra compartilhar.
ResponderExcluirQue graciosa essa tua crônica, caro Anderson, meu auspicioso diretor de comunicação, que nos leva ao teu sentimento de saudades dos doces tempos que se foram e faz lembrar muito dos nossos tempos de infância, adolescência e um pouco mais
ResponderExcluirAbraço do Dermio