Meu pai
gostava de apitar jogos de futebol. Toda a minha vida eu lembro que ele era
chamado para apitar jogos aqui e ali. Era soçaite, futebol de salão e até mesmo
em campo oficial, sempre tinha alguém o convidando pra ir participar dos
campeonatos que, claro, eram amadores, mas com boa organização, chaves, turno e
returno, premiação, e os times tinham uniformes, capitão e técnico, e treinavam
em seus bairros pra disputar os torneios.
Me lembro que
mesmo nas peladas, no clube em que a gente alugava quadra, muitas vezes ele
estava lá jogando com a gente ou mesmo nos assistindo jogar, eu e meu irmão, e
os times do próximo horário pediam pra ele ficar e apitar o jogo pra eles.
Meu pai
adorava isso. Ele tinha até uniforme de juiz, apito, cartões amarelo e
vermelho, dois relógios, um em cada braço, e um lápis pequeníssimo pra anotar
as infrações. A única coisa que faltava fazer era a súmula do jogo, mas isso já
era pra um outro nível de campeonato, da federação, eu acho.
Era usual
também ele corrigir os jogadores quando vinham reclamar, o chamando de juiz:
– Juiz não.
Árbitro! – e a gente saia de perto, rindo, pra ele não ver.
Uma certa vez,
o time em que eu jogava tinha uma partida importante. Normalmente a turma
jogava entre si, escolhia os dois times no par ou ímpar, tentando equilibrar as
forças e pronto. Mas nesse dia era um jogo contra, como a gente chamava, ou
seja, era só os melhores da nossa turma contra um time desafiante, por assim
dizer.
O problema é
que, nesse dia, o juiz convidado não apareceu. De cara meu pai disse que não
podia apitar, justamente porque eu e meu irmão estávamos jogando e não seria
ético. Mas, tudo pronto pro jogo começar e a gente ainda não tinha achado um
juiz. Tentamos chamar alguém mas, justamente esse até que se dispunha, tinha
que ir embora dali a minutos. Então, depois de muito argumento da nossa parte,
meu pai aceitou apitar o jogo. Vestiu sua camisa de juiz, pegou os demais
apetrechos e foi pra dentro da quadra.
O que sei é
que, num certo momento da peleja, eu recebi um lançamento pelo alto e, com o
defensor atrás de mim, num átimo, eu matei a bola no peito e peguei de voleio,
certeiro, um golaço indefensável. Goleiro no chão, a gente comemorando e meu
pai anulou o gol.
Não era
possível! Ninguém acreditou que ele tinha marcado que eu ajeitei a bola com o
braço, no momento da matada no peito. Quem tinha visto o lance de frente não
teve dúvida de que foi no peito. Já quem viu por trás – como o meu pai – teve a
sensação de que foi no braço. Todo o meu time argumentou, parte da torcida
confirmou que tinha sido no peito, mas nada, o gol foi anulado e o gesto do
juiz apontando a bola no braço foi definitivo.
Eu sabia que
ele não tinha visto a bola no braço, até porque não tinha batido de fato no meu
braço. Mas ele era a autoridade e pronto.
Foi no
intervalo do jogo, quando ele estava próximo, que eu lhe disse ao pé do ouvido:
– Pai, aquela
bola não bateu no meu braço, não. Se batesse eu ia falar.
– Eu só vi o
lance pelas suas costas e pra mim pareceu pegar no braço.
– Pode ter
parecido, mas não pegou.
– Sabe como é.
Eu prefiro errar um lance assim do que deixar em dúvida a minha lisura. Podem
achar que eu estou sendo tendencioso para o time que meu filho está jogando. Então,
melhor eu ter um erro de visão do que um erro de falta de ética ou de
imparcialidade. O juiz tem de procurar ser o mais justo possível e é melhor eu
errar contra você do que a seu favor, entende?
Enquanto eu
fiquei pensando naquelas palavras, ia avaliando o que eu teria feito no lugar
dele. E cheguei à conclusão de que ele estava certo. Como ele ia explicar que era justo, enquanto juiz, ao validar um gol irregular a meu favor? Ao contrário,
anulando o lance pela dúvida de que haveria uma infração, aquilo seria um
sinal de rigor e austeridade da parte dele, não importando se o jogador era
filho ou o parente que fosse.
O bom foi que,
na volta pra casa, quando a gente estava mais relaxado e os meus amigos ainda
pegavam no pé dele por ter anulado o gol do filho, ele sorriu e bateu no meu ombro:
– Mas foi
mesmo um golaço.
E todos nós
demos boas risadas.
O episódio
ficou por um bom tempo nas nossas conversas. Aquele lance era algo vivo na
memória do time e foi relembrado por todos nós, ainda por várias vezes.
Meu pai só
estudou até a quarta série do primário, o que hoje equivale ao ensino
fundamental. Mas, a contar pela pouca oportunidade que a vida lhe deu, consigo
imaginá-lo como exemplo de profissional em qualquer carreira superior que ele viesse
a abraçar. Aliás, de profissão mesmo, ele foi ótico a vida toda, seguindo um
impulso de um tio que tinha uma ótica e o chamou pra um período de aprendizado,
quando seu pai morreu.
A reflexão que
eu fiz e faço, muitas vezes, é que, afinal, meu pai teria sido um bom juiz de
futebol. Talvez com muito mais imparcialidade, caráter e honestidade do que
muito juiz de direito, desses que passam a vida inflados pela própria empáfia e
arrogância, frutos de uma má formação profissional, eivados dos piores vícios e
preconceitos e guiados pela ostentação de seus hereditários desvios morais e educativos.
Agir com respeito
ao próximo, ter equilíbrio para tratar com sensibilidade os dramas humanos,
decidir com independência, sem favorecimento, sem vaidade, são requisitos que
parecem estar cada vez mais fora de moda. Os juízes atualmente são personalidades,
são astros, estão nas mídias todos os dias, assim como os atores, os cantores e
os influenciadores, uma categoria com fulcro no virtual.
Muitos desses,
de que temos notícias, já não são afeitos à isenção. Possuem um lado, uma cor e
uma ideologia. São partidários. Se prestam a atuar em conluio com promotores
para fingir um julgamento e, normalmente, perseguem um ou outro réu, quando não
tratam de sentenciá-los já de antemão, logo no início do processo. São
colocados em suspeição. São parciais, enfim. E esse ser parcial tem, na sua
conduta, muitos nomes.
Um juiz é
parcial quando é homofóbico, ou racista, ou terrivelmente evangélico; quando é
misógino, machista, transfóbico ou aporofóbico; quando usa o cargo com
finalidade pessoal ou política; quando vende sentença ou se associa à
promotoria para conduzir o processo, para sugerir medidas ou mesmo produzir
provas, às vezes chamadas de convicção, pra condenar alguém ao seu bel
prazer. Para usurpar a Justiça, em verdade.
Neste país há
cerca de 20 mil juízes. Na história do Brasil quantos serão os réus pretos,
pobres, de periferia, nordestinos, sem acesso a um julgamento minimamente ético
e justo, encarcerados muitos deles sem o devido processo legal, que conseguiram
provar, na Justiça, que o juiz do seu caso foi parcial, desonesto ou suspeito? Será
que pra conseguir isso só virando presidente da República? Um em 220 milhões?
E tem ainda o fato de que na
segunda instância a condenação foi por unanimidade. Tudo combinado, marcado,
espúrio. Uma ação entre juízes, pois já se sabia que provas não haviam e
nunca houve indício delas aparecerem.
E essa é,
definitivamente, a questão.
Uma questão
humana.
Uma questão
nacional.
Quem devolve
os mais de 500 dias que um homem ficou preso injustamente?
Essa é a
moldura que precisa estar presente sempre que se mencionar o nome do ex-juiz
corrupto.
Aquele que
queria acabar com a corrupção, mas que se associou a outros corruptos para ganhar,
ali na frente, um ministério como pagamento.
É uma conduta
podre. Uma covardia imensurável. Um uso fora-da-lei da magistratura, para
promover a injustiça. Como barbárie, o nome certo é justiçamento. No crime
organizado também é assim que chamam.
É algo como o
holocausto, a ditadura ou a escravidão. Precisa ser lembrado todos os dias,
para que nunca mais aconteça.
Meu pai só
estudou até a quarta série do primário.
Ele nunca me ensinou
nada. Mas eu aprendi muito com ele.
a lembrança perigosa, pois coloca à luz os crimes que tentam ocultar
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ResponderExcluirMeu amigo Anderson, cada vez que leio um artigo seu, eu fico mais sábio e mais orgulhoso de ser seu amigo. Parabéns pelo artigo, histórico, mas também cheio de humanidade, algo que estamos em falta nestes dias ainda sombrios!
ResponderExcluirFaltou um pai como o seu na vida desse juizeco!
ResponderExcluirMaravilhosa sua crônica. Relatar a experiência familiar tendo como referência o pai e fazer um paralelo com as relações de poder é perfeito. Uma vez li um texto que abordava as questões da imoralidade brasileira e sua origem nas relações familiares. Felizmente você teve uma formação que lhe propiciou ser esta pessoa tão ética.
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