O meu amigo
José, que além de paisagista é cinéfilo, uma vez me disse que a sua lista dos
10 melhores filmes de todos os tempos tinha uns 80 títulos. Aquilo me abriu
portas e desde então eu não me preocupo em fazer caber em uma singela dezena os
meus 10 melhores, seja lá qual for a categoria.
Eu estava no
Aeroporto Santos Dumont quando avistei a minha cantora lírica favorita em uma
cafeteria, se preparando para o embarque. Olívia Byington figura até hoje, com
louvor, entre as minhas 10 melhores cantoras de todos os tempos. Na frente da
loja eu fiquei alguns minutos matutando como é que se pede autógrafo, pois
aquele seria o meu primeiro, o que, casualmente, acabou sendo o único em toda a
vida. Peguei uma caneta, a minha agenda, abri na data presente, suspirei e fui.
Ela foi muito
gentil ao perguntar o meu nome e depois dando o autógrafo, e ainda respondeu a
uma ou outra pergunta minha sobre a turnê que ela estava fazendo, que percorria
o país com grande sucesso, fruto do disco recentemente lançado e que
homenageava Cartola, Tom Jobim e George Gershwin, entre outros.
As cantoras
líricas não são muito tietadas nesse Brasil. Eu diria quase nada. E talvez por
isso tenha havido um pequeno incômodo durante o nosso célere diálogo, devido possivelmente
à relutância mútua em dar tratamento aos procedimentos que seriam normais aos,
digamos, “popstars”. Assim, não teve foto, tampouco chiliques ou desmaios, pois
que ao final eu apenas agradeci, desejei boa sorte para o restante da turnê e jurei
pra mim mesmo que nunca mais esqueceria aquele sorriso.
Vale dizer que
alguns acontecimentos vividos possuem uma característica peculiar de ir
ganhando corpo conforme o tempo passa. Eu rememorava aquele encontro, primeiro
com receio de esquecer os pormenores, os detalhes, mas também com o objetivo de
poder contar aos amigos, músicos e cinéfilos, o grande sortudo que eu fui por
ter tido aquela experiência como se fosse um prêmio, uma dádiva, do tipo que a
vida nos oferece somente de vez em quando.
Conforme eu
contava o episódio para alguém, ia acrescentando minúcias e também outras
informações que pudessem ilustrar aquele cenário do aeroporto. Então eu
descrevia o saguão, as lojas, as pinturas dos painéis e, de repente uma ficha
caiu. Caiu quando um amigo perguntou:
– Ela estava
sozinha? Tinha algum empresário acompanhando? Alguém da banda?
Eu fiquei uns
minutos calado, pensando, e logo senti o maior dos arrependimentos. Sim, ela
estava na companhia de alguém. E era simplesmente o pianista João Carlos Assis
Brasil, que a acompanhava no disco e também nos shows. João é para mim um dos
10 melhores pianistas clássicos e de jazz que o país já teve. No mesmo momento
eu me dei conta da desfeita que eu tinha cometido, do meu fora, uma gafe
temperada com pura falta de educação. E na presença da Olivia ainda por cima. Eu
me senti o pior dos fãs, o mais embusteiro dos admiradores. Um fiasco.
Duvidando da
própria sanidade, eu me perguntava como eu não percebi o homem ali ao lado da
cantora, ou como eu não o reconheci de pronto, uma vez que a figura dos dois
vinha amalgamada na capa do disco que eu tinha, um ao lado do outro. Não era
possível que um encontro daqueles ia se transformar num grande remorso, uma
coisa que eu não podia consertar, pois que eu não sabia o que fazer para corrigir
o estrago.
Eu passei
muito tempo com aquela sensação ruim, de ter feito mal a um cara a quem eu
admirava demais. Eu estava triste, me martirizando pelo meu comportamento.
Culpa mesmo. Depois pensei em como o pianista deve ter se sentido, ao me ver
pedir o autógrafo da cantora e nem o cumprimentar?
Bem, os anos
passaram. Ou como diz Chico Buarque: passaram muitos verões, outros virão. E no
dia de Natal de um ano qualquer eu entrei no metrô. Estava muito vazio, era de
manhã, a cidade mal tinha acordado naquele dia festivo. Dava pra ver vários
vagões à frente e não se via quase ninguém. Quase. Lá no segundo módulo,
sentado na janela com as mãos unidas entre os joelhos, uma pessoa olhava em
redor, ora fitando a janela quando passava na estação, ora se fixando no
corredor, talvez apreciando, como eu, toda aquela vastidão de espaço vazio.
Era ele. Simplesmente
o João Carlos. Um misto de medo e de agradecimento a Deus me veio na mesma
hora. Medo porque eu não sabia o que falar, nem como conduzir a conversa até o
meu pedido de desculpas, cujo motivo, certamente, ele nem lembraria, se é que soube
da minha intenção alguma vez. Mas eu agradecia a Deus por me dar aquela
oportunidade de reparação. Muitas pessoas passam a vida toda sem ter uma chance
de se redimir, de perdoar alguém ou se perdoar.
Mas cadê
coragem? Minha dúvida era atrapalhar o sossego do músico. E como puxar conversa
pra, no final, pedir perdão? Era muita coisa pra contar antes. Ia ser um saco
pra ele. E eu não tinha qualquer explicação para o fato de não ter falado com
ele no aeroporto. Aquilo foi uma burrada e a ficha só caiu muito depois, como
já sabemos.
As estações
iam passando e eu, com medo que ele descesse na próxima, resolvi agir. Me
aproximei, sentei no banco que fazia um L com o dele e iniciei:
– Bom dia. O
senhor é o pianista João Carlos – disse sem perguntar. Eu assisti o seu show
com a Olívia e tenho o CD também. Muito bom.
– Bom dia.
Exato. Ela é uma das grandes. Com G maiúsculo.
– Nesse
horário é ótimo o metrô.
– Sim, eu
pouco uso, mas hoje não tive carona e aqui estou.
– Pouca gente
tem compromisso na manhã de Natal. Por isso esse espaço todo.
– Verdade. Eu
estou indo almoçar com a minha mãe. Aí tem essa hora marcada e acordar cedo é
necessário.
– Eu também
estou indo pra casa da minha mãe. Vou almoçar lá também.
O meu
nervosismo chegou sem avisar, ao fim dessas palavras. De repente eu achei que
ele ia descer, que estava olhando o nome da Estação que passava e pensei em
pedir perdão direto. Pedir mesmo que ele não soubesse a razão ou quem era o tal
sujeito estranho a ser perdoado. Mas no instante seguinte eu desisti da ideia,
esperando que ele não tivesse percebido o meu impulso de falar.
Ainda
hesitante, finalmente as palavras foram saindo. E eu só me concentrei em dizer
o quanto eu o admirava como músico, pianista e arranjador, além de parceiro
honorário da minha querida Olívia. De vez em quando ele até soltava um risinho
de lado, enquanto eu ia falando tudo que sabia sobre a sua carreira e os
projetos que ele já tinha realizado.
Contei que
tinha lido uma reportagem sobre um programa de música que ele ia comandar na
tevê e depois falei do disco que ele tinha lançado fazia pouco tempo, com
músicas do irmão gêmeo que tinha falecido recentemente nos Estados Unidos. A
reportagem contava que a mãe, Elba, foi arrumar o apartamento e achou um baú
cheio de músicas. Aí ela chamou o filho pianista pra ver tudo e logo veio a
ideia de fazer o CD. “Muita qualidade naquelas partituras. Tinha até uma
dedicada à nossa mãe”, ele me confidenciou a certa altura.
Não sei bem
quanto tempo durou aquela conversa. Mas quero crer que, ao final, ele possa ter
me identificado como um fã seu ou talvez alguém que o reconhecia e admirava o
seu talento.
Talvez o
encontro tenha sido agradável pra ele, afinal, ali sozinho, não é comum ser surpreendido
por um admirador, numa manhã de Natal, em um metrô deserto no Rio de Janeiro, a
caminho da casa da mãe. E talvez isso possa ter feito algum bem pra ele, como
fez pra mim.
Ao mesmo tempo
em que aquela foi uma reparação que eu tinha como dívida, mesmo sem ele saber,
pra mim foi um alívio, uma retratação que se consumou mesmo sem um perdão explícito.
A única coisa
que eu me arrependo desse dia foi, definitivamente, não ter lhe pedido um
autógrafo.
Falha minha.
De novo.
Ia fechar o
ciclo: os dois únicos autógrafos. Da dupla!
Acho que eu
não sou bom com autógrafos.
Mas ninguém é
perfeito!
É o que dizem!
O pianista João Carlos
Assis Brasil morreu no dia 6 de setembro de
2021, aos 76 anos, no Rio de Janeiro.
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