Um jeito bem
prático de entregar a própria idade é dizer que as festas mais importantes da
adolescência foram os aniversários de 15 anos. Eu não vou fazer isso, embora
admita que durante o período que precedeu a festa da Maribel, no colégio não se
falava em outra coisa.
As amigas mais
chegadas guardavam os segredos do festejo como se fossem ouvidos no confessionário.
As damas iam com roupas combinadas? Ia ter missa? E valsa? Que banda que ia
tocar? E qual o tema escolhido para o bolo? Eram essas as conversas durante
aqueles dias de junho, mês que já era muito esperado normalmente, por anunciar
o fim do semestre escolar, mas agora, com o aniversário da Maribel, muito mais.
A Maribel era
uma menina rica, mimada e chata. Não entrava nas rodinhas do vôlei, na aula de
educação física, não ajudava nas pilhas que a gente criava com os professores e
tampouco ficava no colégio depois da aula, batendo papo com a turma do mal, como
eram chamados os fumantes precoces da sala. Pior, a gente desconfiava que ela
era, isso sim, uma X-9, num tempo em que essa denominação ainda nem existia.
Eu não era
fumante, mas gostava demais daquelas conversas, quase todas pautadas pelas
ótimas aulas de História do professor Wellington, um comunista convicto, muito
bem-humorado e satírico, que gostava de fazer suspense enquanto pedia licença
para fechar a porta da sala. Depois, em tom irônico, garantia que o assunto ia ficar
bem mais interessante com a participação dos alunos e, claro, com a porta
fechada para a ditadura. A gente ria e a partir dali a nossa atenção era 100%
na oratória dele, rebuscada e aprazível.
Junto com a
professora Wanda, uma polonesa austera como a Matemática que lecionava, o
mestre Wellington completa a dupla das pessoas mais inteligentes que conheci
durante todo o meu aprendizado escolar. E minha memória se esforça para que
certas imagens de ambos jamais sejam apagadas e permaneçam sempre acessíveis,
quando acionadas na ROM.
Eu estava a
caminho da cantina, no intervalo das aulas, quando uns colegas me viram e
chamaram.
– Nós estamos planejando
o aniversário da Maribel. Você vai com a gente, né? Vamos combinar de irmos juntos
pra facilitar a entrada.
– Acho que não
vou, não. Parece que tem convite. Eu não tenho. Então, sem chance de eu entrar
– disse, tentando me esquivar.
– Como assim?
Você vai com a gente sim.
– Mas eu não
tenho convite – reiterei.
– A gente
também não tem. Mas vamos entrar, tranquilo. A gente dá um jeito.
– Estamos
pensando numa alternativa que parece bem certeira. Ainda não tá decidido.
– É, a gente
vai pular o muro.
– Quê isso, pessoal.
Pular o muro? – falei, com certo descrédito.
– Ué, eu já
entrei em um monte de festa pulando o muro. Não tem nada demais, não.
Aquela
conversa torta parecia vir da mesma turma que matava aula ou se reunia depois
do horário atrás da quadra de esportes. Eu pensava comigo: que coisa mais sem
nexo. E eu é que não vou me aventurar numa empreitada de pular muro pra
entrar em festa. Já me imaginei todo arrumado, camisa esticadinha, passada pela
minha mãe, e eu todo amarrotado só pra invadir a tal festa. Jamais.
– Nós não
vamos invadir, não. Esse termo é muito pesado. É que nós também somos amigos da
Maribel e, por isso, vamos apenas festejar com ela os seus 15 aninhos... É
isso!
A resposta atravessou
os meus pensamentos e me surpreendeu a ponto de eu duvidar da própria realidade.
Eu não estava só pensando alto? Como alguém conseguiu ouvir? Olhei em volta e,
assustado, dei por encerrado aquele intervalo e voltei pra sala de aula.
Ainda na manhã
do dia da festa encontrei o Luquinha na rua, perto de casa. Na mesma hora ele
falou da noite e que me encontraria lá. Eu só fiz que sim com a cabeça, já não
querendo esticar o papo, decidido que estava a não participar daquela loucura.
Como eu disse, eu nem gostava muito da Maribel, aquela menina chata e mimada.
Enfim, como
todo evento suntuoso que se preza, nas semanas seguintes a festa da Maribel tomou
conta das conversas por toda a escola. Incontáveis detalhes mirabolantes, até
inacreditáveis, foram surgindo com o passar dos dias, cada qual com a sua
pormenoridade inerente. Teve segurança da festa pego no flagra, beijando a tia
da dona da casa, teve gente entrando com a roupa rasgada – dizem que foi
pulando o muro –, teve polícia dando dura na entrada da rua e revistando
maldosamente só as meninas, e teve relato de gente vomitando em quase todos os
cômodos do casarão da família.
Quando tudo
parecia estar voltando ao normal, tendo o tempo da festa ficado para trás, bem
distante do cotidiano da escola, eis que surge a insossa da Maribel com um
imenso álbum de fotos. Um não, dois. Pronto, as rodinhas em torno da menina voltaram
disputadíssimas e, de longe, só se via e ouvia as risadas das amiguinhas diante
de cada fato novo relembrado.
Nas nossas
rodas de conversas, entretanto, bem diferente da das meninas com o álbum, o
exercício de imaginação corria solto e farto. No meio do intrincado roteiro do
“quem ficou com quem” e “como fulano entrou”, um dos caras mais calados da
turma surgiu com uma novidade:
– Vocês
conhecem a mãe da Maribel, né?
– Sim,
conhecemos.
– Vocês sabem
que ela também passou mal na festa e, na manhã seguinte, foi até internada?
– Eu soube que
ela passou mal, mas da internação eu não sabia.
Daí em diante
o entrecho que o rapaz passou a narrar foi que, simplesmente, às 4 horas da
madrugada baixou o santo, não na porta-bandeira, como diria João Bosco, mas na
mãe da Maribel. Do nada, a mulher começou a se estremunhar e foi balangando de
um lado ao outro, pela sala. A prima e a sobrinha, já sabendo que ela é da
macumba, ficaram segurando a dona com força, pela cintura, pra ela não se
machucar. O marido, quando viu tudo de longe, foi acudir também. Só que ele mandou
parar a música. E foi aí que tudo piorou, pois todo mundo percebeu que o
problema era com a dona lá e ela passou a ser o centro da festa. Ninguém sabia
bem o que fazer com a tontura da pobre e a cena foi virando um furdunço geral.
Por outro lado, como cobra não voa, quem viu todo
o alvoroço jura, impiedosamente, que aquilo foi o melhor da festa. E foi já na manhã seguinte que o marido resolveu internar a mulher. Dizem que o propósito
dele era abafar o caso, ou seja, fazer parecer que o que a esposa teve foi um
mal súbito, médico, e não uma incorporação espírita, um transe mediúnico, enfim.
“Essa gente,
quase todos pretos, fazem isso só pra mostrar aos outros quase pretos, e são
quase todos pretos, como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos, quase
pretos de tão pobres, são tratados.”
Quando a gente
recorre a Caetano pra encerrar um conto, a sensação, quase sempre, é de estar
em uma magna aula de História. Com a porta da sala fechada.
E fim.
rindo aqui!
ResponderExcluirMuito divertido, querendo saber o final. Fiquei pensando quem seria a Marivel na minha escola. Sempre tem alguém.
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