Eram quase uma família. O segurança Donato trabalhava para o mafioso desde que este chegou da Itália, fazia mais de 30 anos. Seu nome era Alfredo, dom Fredo para todos aqueles que tiveram o desprazer de o conhecer.
Uma figura abjeta, peçonhenta e cruel, que carregava uma grande mágoa por não ter tido um filho, e sim uma filha. Por esta razão, e por tantas tentativas vãs de iniciar a menina nos negócios da família, já tinha dado o caso por perdido. Agora a ideia era encontrar um genro à altura da sua, digamos, veia comercial, ou seja, um bandido inteligente o bastante para casar com sua filha e, ao menos, protegê-la nessa vida.
Dom Fredo estava sempre viajando. Não tinha uma cidade com tamanho bastante para os seus negócios que ele não conhecesse. Desde que chegou aos Estados Unidos, sua vida era detectar novos clientes, parceiros ou nichos para onde pudesse expandir as suas negociatas. Não se sabia bem qual era a sua atuação, com quais elementos ilegais ele tratava, mas drogas, bebidas e posse de terras alheias eram os seus principais interesses financeiros país afora.
A filha do mafioso tinha pouco mais de 20 anos quando, uma tarde, na hidromassagem que ficava ao lado do jardim, perto da quadra de tênis, quase se afogou. De repente, se descuidou ao encostar na parte de trás da banheira, escorregou e o ralo de filtragem de água agarrou os seus cabelos. Ficou se debatendo por alguns minutos com os pés fora d’água até que um segurança, um dos mais novos da equipe, a resgatou, não sem antes ter de fazer uma força descomunal contra a máquina.
Quando conseguiu tirar a moça da água, veio junto, embolado ao seu cabelo, todo o ralo, as mangueiras e também o motor de sucção que compunha o sistema de filtragem. A hidro ficou totalmente danificada e o susto dos empregados que acorreram ao jardim foi enorme, seguido por um também enorme alívio, de ver a menina voltando a si, depois de um pequeno esmaiamento, ou piloura, como queiram.
Pouco tempo depois, sem qualquer esforço, dom Fredo descobriu que a menina estava de caso com o segurança, este mesmo que lhe salvou a vida. Bastava que ele viajasse e a menina dava um jeito de estar com o rapaz. Jantavam juntos, assistiam a filmes até altas horas da madrugada, ouviam música e dividiam uma vida paralela. Contavam, é claro, com a boa vontade dos demais empregados, que notaram que a moça mudou o seu comportamento desde que conheceu o segurança.
Antes calada e sombria, sem interagir com quase ninguém naquela casa, a moça passou a ser amável, conversava com as camareiras, as arrumadeiras. Até a governanta ajudava a encobrir o relacionamento da menina diante do brilho que a pobre trazia nos olhos, coisa que desde a morte da mãe ninguém jamais tinha visto.
Por sua vez, querido por todos os empregados, não só pelos colegas seguranças, o rapaz de repente passou a trazer no semblante a preocupação de que logo o pai da moça ia descobrir tudo. Donato, o braço direito do chefe maior, se esforçava pra ajudar, mas o velho tinha outros meios de saber o que estava acontecendo “na sua própria casa”, conforme sublinhara ao pé do ouvido do segurança-amante.
A questão era como andar no fio da navalha. E todos passaram a se preocupar. O jovem casal aventou a possibilidade de falarem juntos com dom Fredo. A menina principalmente exporia a situação, um acaso do destino, uma paixão súbita e uma convivência até então de muito entendimento e companheirismo. Os dois se gostavam e se davam muito bem, se divertiam juntos e um ansiava pela companhia do outro. Era um encontro perfeito de almas. Algo sublime.
– Passo a navalha na garganta desse moleque e em dois minutos liquido o assunto. Que atrevido, que acinte, onde já se viu um merdinha de um segurança... E essa minha filha desmiolada também vai ter a sua lição. Donato, amanhã cedo avise aos dois que na volta de Chicago quero ter uma conversa com a dupla. Chego na quarta-feira de madrugada e já bem cedo, ao amanhecer do dia, quero dar cabo desse assunto. O mal, já dizia meu tio Arturo, O Caolho, corta-se pela raiz.
O coitado do Donato nem falou nada com a menina. Assim que comunicou ao jovem segurança já foi aconselhando que a fuga seria a melhor escolha e que talvez sair do país fosse o mais prudente nesse caso. Que a vida dele era muito mais importante do que o romance com a filha do dom Fredo e que ele pusesse a cabeça no lugar.
– O senhor acha mesmo que não vale a pena nem conversar com ele? Mesmo a filha dele também pedindo, argumentando?
– Você não conhece o chefe. Em dois minutos ele mete uma bala na sua cabeça e chama alguém pra limpar o sangue do tapete. Quanto a filha ele até que teria alguma questão a relevar, mas vive dizendo que ela só dá problema e eu nem duvidaria se ele se livrasse dela também de algum jeito.
– E se então fugíssemos nós dois?
– Ah, meu caro, como vou te dizer isso? Na primeira esquina da dificuldade ela voltaria rastejando pra casa do pai. Não se iluda. A menina nunca precisou fazer algo mais do que estalar os dedos pra alguém trazer o mundo numa bandeja de prata. São mundo distintos. Por isso, trate de cuidar da sua vida daqui pra frente e dê graças a Deus pela oportunidade de sair vivo dessa situação. Se somar a idade de todos os seguranças dessa casa não daria nem a metade do número de assassinatos que esse Capo já ordenou.
A conversa foi cada vez mais se encaminhando para um cenário que evidenciava o esgoto humano. O rapaz se encolhendo em sua resignação, era de dar pena. Pensou em contar tudo pra sua amada, mas achou que poria em risco a sua vida também, e já bastava a dele nesse fio de navalha.
No domingo, debaixo de chuva, vagueou pelo parque. E todas as mulheres que cruzavam o seu caminho tinham o rosto dela.
Na segunda-feira ele decidiu fugir. Simplesmente ganhar mundo. Ia conversar com ela antes e daria o fora enquanto é tempo, sumariamente.
Na terça não dormiu. Repensou e achou que como homem deveria ficar e ouvir o pai patrão. Que homem seria ele se fugisse de uma simples conversa? Se fosse pra morrer, morreria por amor. Morreria como um homem e não fugindo como um rato.
Na quarta-feira o rapaz amanheceu sentado na escada, na entrada da mansão. O sol ainda vinha no horizonte quando Donato saiu lívido pela porta principal. Se aproximou dele e o mirou fixamente, segurando os seus dois braços.
– O avião caiu logo depois da decolagem, em Chicago. Morreram os dois ocupantes: dom Fredo e o piloto.
O rapaz desmaiou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário