sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O Piloto


De repente algumas buzinas surgiram no meio do trânsito. Olhei pelo espelho e notei que as ultrapassagens se davam de forma um tanto perigosa, quando o carro que corta a frente do outro só não causa um acidente porque o de trás freia bruscamente.
Era uma via secundária que dava acesso a uma principal, através de uma grande curva que juntava as várias pistas de maneira bem suave. Talvez por isso mesmo, pela facilidade de ter lugar pra todos mais à frente, foi que as buzinas soaram em protesto.
Pouco tempo depois, olhando com mais atenção, notei o culpado se aproximando. Ele vinha costurando aqui e ali, chuleando, fazendo bainha, dando ponto, bordando e até fazendo pence, fosse um alfaiate talentoso e não um motorista supostamente em ação.
Quando estava chegando mais perto o meu diagnóstico surgiu prontinho, como se fosse uma folha saindo da impressora. Embora não desse pra ver a fisionomia do motorista, por causa do reflexo dos vidros, o carro não deixava dúvida: era um cara babaca, um garotão, um filhinho de papai rastaquera que provavelmente ganhou aquele Mercedes azul reluzente de Natal e estava ali só pra infernizar os outros motoristas. Eu podia até dizer que era apenas um Mercedinho, já que era um carro pequeno e tal. Mas um Mercedes jamais pode ser citado no diminutivo, todos sabemos disso, nem mesmo quando se trata de um carro de tamanho normal, de cinco lugares, e de um azul metálico irreverente e estonteante.
Claro que ele me passou, continuando a cruzar as pistas arriscadamente, e foi fazendo isso através dos carros que iam à sua frente. Alguns buzinavam, outros tentavam ir atrás, mas ele seguia em sua sanha inabalável. Conforme os sinais iam fechando, eu notei que ele arriscava mudar de pista, pra tentar fugir do engarrafamento. Mas aí eu percebi que as pessoas não deixavam, não davam espaço pra ele entrar e ele era obrigado a parar. Isso devia estar deixando ele bem inconformado.
Quando o trânsito andava, pelo escoamento dos sinais que abriam, ele ia de novo exercendo a sua alfaiataria, sempre sendo babaca e levando buzinadas pelas ventas. Quando parava tudo de novo ele ficava ali, enjaulado, sem conseguir se desvencilhar. Na verdade, ninguém sabia pra onde ele ia, pois ora ele saía pela direita como se fosse fazer a conversão pra pista lateral e ora ele fazia o movimento oposto.
Foi assim até perto do Shopping, que é onde fica a minha saída. Ali, uma pequena alça, à esquerda das pistas, é a opção pra quem não vai pegar as pontes de saída da ilha. Naquele horário é meio um caos, porque todo o trânsito pesado vai justamente para as famosas pontes. Ou seja, “já vão tarde”, pensei eu com os meus espelhos retrovisores.
Aguardando na fila pra sair da grande avenida, quem eu vejo? O babaquinha, filhinho de papai. Isso mesmo. Bem pertinho de mim, cruzando fora do local permitido, claro, e forçando a barra pra entrar. Só que onde eu estava ele só ia conseguir passar quando eu andasse. E então eu fui bem tranquilo, calmamente, quando abriu o sinal, pra que ele entendesse que eu não estava ali pra dar passagem pra ele, nem eu e nem ninguém, pois cada um tem a sua vez, e todos devem respeitar a fila, oras!
Eu andei, ele andou, eu forcei o espaço pra ele não ter como furar a fila e ele ficou esperando que eu passasse. Aí, sim, ele entrou na rua do lado, a mesma que a minha, e fomos juntos até o outro sinal, ele atrás de mim.
Eu só queria ver a cara daquele bostinha. A cara de pamonha metido a esperto dele. Mas não dava, por mais que eu olhasse. Então, um carro do meu lado entrou numa garagem e ele veio pro lugar dele, até parar. Janela com janela, eu estava pronto pra tudo. Ou quase tudo.
Quando eu senti que ele estava abrindo os vidros, não tive dúvida, fiz o mesmo e fiquei pronto pra encarar o merdinha. Não era merdinha! Era um senhor, muito, muito idoso. Com óculos de grau forte, cara de professor de filosofia, cabelos poucos e branquinhos, sozinho e com um sorriso largo e simpático no rosto.
– E aí, piloto? – disse ele – Bora pisar até o túnel? Pode ir na frente que eu te alcanço logo logo!
Estupefato eu estava, estupefato eu continuei. Sem conseguir responder nada, só olhando pro velhinho.
Ele abriu mais ainda o sorriso, mostrou a tatuagem no braço e fez com as mãos um hang loose básico, ao mesmo tempo em que dizia “Fui!” e me cortava pela última vez, em direção ao túnel da baía sul.
Intuí, algum tempo depois, que as buzinadas agora deviam ser pra mim, ali parado. Engatei a primeira marcha e saí dali bem rapidinho, pisando forte até em casa.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Proparoxítonas


O esforço é hercúleo, na memória, quando o assunto é encadear palavras proparoxítonas. De empenho homérico, a tarefa nos leva a famosa ária La Donna è Mobile, que propicia bom ritmo ao texto. Mas as conjugações satíricas, sempre enfáticas, nos levam por caminhos côncavos, quiçá oníricos, próprios das fábulas que algum arquétipo supõe.
Por mim, pessoalmente, se la donna è mobile, o México é árido e a rúcula é ácida, assim como a bulha é azáfama. No caso do cântico, o palco, o úmido seria o antídoto, de modo efêmero, diante do míope e estético piso íngreme, mantido aí o sólido, pelo tático do ritmo que tem em toda sílaba.
O bárbaro é perceber, na tal música, o espaço cênico, em amálgama ao veio dramático, através da têmpera firme da câmara, que evidencia o trágico e eleva aos píncaros o epílogo, dentro do êxtase sinfônico resgatado do cálido. Na prática, é o passo lânguido do tempo, sempre inédito, que faz vítima o método, no compasso do som andrógino, histriônico, de cunho estético, no pulsar orfeônico do cantar intrínseco.
Pois vem do torácico, do âmago, o halo anímico da Dona volúvel. De tantas notas célebres e límpidas, que nem as fariam as máquinas. Lírica, a trama profética é ótima para as sátiras, com bônus linguísticos gramáticos, seja pros casos ilícitos ou ilógicos, no trânsito holístico das versões.
Inicia-se assim, pela melodia da famosa ária: A dona é excêntrica, dizem que é bígama, sempre etílica, quase se finda. A dona é esdrúxula, vive sabática, chora incólume sua tristeza. E por aí vai: A dona é esquálida, mora na cátedra, surta no rícino, pele de anjo. Moça do pântano, moça da ópera, moça do álibi, canto fleumático. Depois perdendo o controle: A dona é estática, figura gélida, lívida imagem, prosopopeia. Vem da sua gênese a crise asmática, levou do médico fálicas saudades. Do padre lúgubre, fala eucarística, postura flâmine, nada se espera. A seguir, recusando a compostura: Minha hermenêutica, veia semântica, é minha pródiga vicissitude. Ex-juiz déspota, órfão da ética, cômico servo, desmoronastes. De gola ávida, segue o seu féretro, pobre do vívido, Pégaso errante. E por fim, na panaceia mesmo: O tempo é cíclico, pega-nos ríspido, vento solário, cântaro a pleno. Piscina fétida, turva em seu líquido, letra simbólica homenageio. Mágico encéfalo, fruto de anáfase, parte-se em fíbulas, ossos do ofício. Abre essa abóbada, sinistro rábula, pensa analítico o mal do mundo. Efigie cínica, baiana quântica, baby telúrica, salto romântico.

Enfrentando ultimamente considerável batalha mental, daquelas que permanecem insistentes após ouvir um singelo trecho de música, não vi saída mínima, a não ser publicar. O caso é que eu fui abduzido pelos versos do Rigoletto, nem lembro bem onde tocou, e dali em diante me vi cantarolando por alguns longos dias o início dos seus versos, até porque só lembrava mesmo desses poucos.
La donna è mobile.
Assim, de tanto repetir, comecei a trocar as palavras, dando novos sentidos às surpreendentes frases que iam sendo criadas, rindo de mim mesmo e daquilo que eu cantava sozinho. Como as frases sem sentido foram ficando cada vez mais divertidas e mais desconexas, eu passei a explorar ainda mais o fator, digamos, proparoxítono delas, garimpando tudo que de mais estranho surgisse. Em certo momento, anotava as palavras que afloravam na minha indefesa e sofrida mente, e fazia isso até nos momentos mais soturnos e noturnos, fosse no papel, ou no celular mesmo, em suprema compulsividade.
Bem, só me cabe então agradecer aos valentes amigos que chegaram até aqui. Sem se cansar, sem me xingar, sem desistir... Talvez eu devesse acrescentar que o meu amor pela língua portuguesa, pela musicalidade contida nas palavras proparoxítonas e pelo ritmo de leitura que elas propiciam, foram os verdadeiros motivos da presente postagem. É isso ou pôr toda a culpa no Rigoletto!
E se alguém, aí do outro lado da tela, sentir suscitar algum amor similar, uma rima, uma frase melódica que seja, por favor, compartilhe comigo as suas proparoxítonas preferidas.
Primeiro: nunca te pedi nada!
Segundo: nunca, jamais te pediram isso!
Então, abraços.
Ou melhor, Alvíssaras!


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O Mocassim


Comprar pela internet sempre foi algo que eu resistia em fazer. Torcia o nariz para o fato de não poder experimentar, pegar nas mãos, medir e até sentir o produto, e isso sempre foi um entrave pra mim.
Naquele dia, entretanto, eu resolvi, não sei bem porquê, testar o site de ofertas de sapato. A enorme variedade de modelos e cores, combinações, era algo que não se vê nas lojas, principalmente em Floripa, onde as cores são todas propriedades do público feminino. Para homem as opções são o preto e o marrom, e todos se contentam com isso. Simples e resignadamente assim.
Mas naquele site, a festa das opções masculinas era uma verdadeira maravilha, não só de modelos, mas de cores também. Os mocassins, às centenas, eram o forte deles, junto com os sapatênis, também muito procurados.
Escolhido à dedo, ou melhor, com o cursor do mouse, o mocassim chegou em casa uns dias depois, na data marcada certinha e tudo o mais. Só que ao abrir o pacote, uma surpresa: não era o modelo que eu havia comprado. Verifiquei o código do produto e era o mesmo que eu tinha escolhido, só que o sapato era outro.
Mandei e-mail, contando o ocorrido. No dia seguinte, nada de resposta. A minha desconfiança com compras pela internet já estava fazendo piscar o meu detector de furada, que é o meu dispositivo pessoal que sinaliza quando eu faço algo que sei que vou me arrepender depois. Apitando o detector, eu tomei a decisão de ligar pro site vendedor. Claro que essas coisas não são fáceis, pois eles criam os dispositivos para que tudo seja resolvido pela internet, e quando a gente usa o telefone a coisa nem sempre é tão fácil como parece.
O atendente do outro lado ouviu o meu relato até o ponto em que eu disse que o sapato que eu comprei, e o que eu recebi, eram diferentes. A partir daí ele precisou da minha confirmação dos tais códigos do produto, que eu passei a seguir, lendo o e-mail de confirmação da compra que eles mesmos me enviaram.
– Senhor, já entendi. Pelo código que o senhor me passou, existem dois produtos com a mesma denominação. O que o senhor comprou foi Mocassim Azul CS – código tal, não foi isso?
– Sim, parece que foi esse mesmo – respondi, olhando a nota do sapato na minha frente.
E logo acrescentei:
– O código está certinho, mas não era a imagem do sapato que eu comprei no site. Aliás é bem diferente.
– Só mais um minutinho, por favor.
Enquanto eu esperava, fui olhar de novo no site e percebi que haviam dois sapatos com os mesmos e exatos códigos e nomes. Ambos eram Mocassim Azul CS, código tal. Naquele momento eu duvidei de algum resultado positivo na tal troca.
Passou mais um tempo e voltou o atendente.
– Acabei de entender todo o problema, senhor. No nosso catálogo, no site, tem dois produtos com o mesmo nome e código.
– Ah, que bom que você viu isso. Eu acabei de olhar no site e é exatamente assim.
– Sim, exatamente. São dois produtos com o mesmo nome: Mocassim Azul. Na verdade eles são iguaizinhos, só que um tem a sola preta e o outro a sola é toda laranja. Um laranja bem tosco, aliás, bem reluzente mesmo, tipo cabelo de palhaço. Sendo assim, eu vou mandar o modelo com a sola preta pro senhor e vamos providenciar a devolução deste que foi enviado errado.
– Amigo, só um instante. O que eu recebi foi o de sola preta. O que eu comprei foi com a sola laranja. Eu quero justamente esse, o de solado laranja. O preto eu quero devolver.
– Ah, bem, sabe como é, gosto é uma coisa, de cada pessoa. Cada um tem o seu e todos devem ser respeitados igualmente. É... vamos... enfim... trocar... Olha, o senhor me desculpe por ter dito que o sapato era reluzente, viu?
– Não tem problema. Tranquilo. Vamos fazer a troca certinha, eu vou ficar com o meu sapato de sola laranja, tipo cabelo de palhaço, e tudo vai ficar bem.
– Sim, claro, vamos fazer todo o procedimento para a troca. Me desculpe mais uma vez.
Depois de me passar o código para a postagem nos Correios e assumir o erro da loja pela duplicidade dos códigos dos sapatos, ele se despediu.
– Nós agradecemos o seu contato, o parabenizamos pela sua compra, por escolher a nossa loja e tenha uma boa tarde.
– Boa tarde.
De verdade mesmo, eu só queria ver o atendente contando esse telefonema para algum colega de trabalho. Como ele ia dizer que o cliente queria justamente o sapato que ele tinha apontado como horrível, com a sola laranja reluzente? Ah, como eu queria ver isso!


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Quadro


No meio da madrugada, voltando pro meu quarto, eu dei de cara com a minha mãe na porta do quarto dela, me perguntando o porquê de eu acender todas as luzes, da sala e do corredor, só pra ir ao banheiro. Sem saber direito o que dizer, eu olhei para as lâmpadas atrás de mim e fingi que nem tinha percebido que as tinha acendido.
No dia seguinte, para a minha sorte, quando ela voltou ao assunto, meus irmãos estavam por perto e me ajudaram a responder. Na verdade, eles tinham o mesmo sentimento que eu em relação às luzes, e todos nós escondíamos a razão da nossa mãe, cada um por um motivo.
Tudo começou quando o filho da dona Iva, grande amiga da minha mãe, nos deu de presente um quadro de Jesus. Uma noite ele chegou lá em casa e, do nada, o deu pra minha mãe. Trouxe todo cheio de pompa, numa caixa com um papel fino branco e o tirou de dentro de outra caixa menor, com todo o cuidado. Depois mostrou a tela e disse que poderia providenciar uma moldura mais pra frente, enquanto discorria sobre a técnica, as tintas usadas, os efeitos de sombras, e minha mãe ouvindo tudo aquilo e achando bem mais legal a explicação do que o próprio quadro em si.
Quando finalmente teve o quadro em suas mãos, depois que o pintor foi embora, ela nos mostrou a tela e foi aí que a gente foi ver o que ela tinha de tão especial. Quer dizer, pra gente, especial mesmo só as observações do artista. A imagem era a de Jesus, comum, um tanto escura no fundo, é verdade, mas com um bom trabalho no rosto, bem delineado e com um baita olho azul, em contraste com o fundo branco do próprio branco dos olhos.
A gente ainda ouviu do pintor que ele não quis botar no quadro aquelas auréolas, típicas das divindades, pra que ficasse clara a sua intenção de pintar o Jesus como homem, já que ele estava sendo retratado na sua condição humana, vivendo na Terra.
Bem, o fato é que a minha mãe quis dar um destaque para o quadro, até em consideração ao filho da sua amiga, e o colocou no final do corredor, acima da entrada para a sala de tevê. No segundo andar da casa ficavam três quartos, todos de frente pra rua. Na parte dos fundos tinha outro quarto, uma sala pequena, um banheiro e ainda um saguão, onde ficava uma mesa, que unia todo o andar. Tudo era muito amplo naquela casa alugada de três andares, onde os nossos próprios móveis, pequenos por natureza, dançavam livres e tranquilos em todos os cômodos.
Quando então eu comecei a dizer a razão pela qual eu tinha ligado todas as luzes pra ir ao banheiro, e quando meus irmãos disseram que faziam a mesma coisa e, a seguir, quando todos dissemos pra nossa mãe que a gente tinha medo daquele quadro, ela deu uma enorme palma na mão e disse “Não!”.
– Peraí, deixa eu ver se entendi. Vocês estão com medo do quadro do Jesus?
– Mas mãe, ele fica muito sinistro de noite, tudo escuro, de madrugada, fica olhando pra gente, mexendo os olhos, nos acompanhando, parece que vai falar – dissemos todos juntos, umas frases por cima das outras.
Eu tinha uns 13 pra 14 anos, meu irmão uns 11 e minha irmã talvez sete. A gente já tinha comentado entre nós que o quadro nos dava medo. Muitas vezes um levantava pra ir ao banheiro e pedia ao outro pra ficar de olho, acompanhando, até chegar na porta. Depois, na volta, era certa a chegada assustada pelo quadro ter mexido os olhos de novo.
Enquanto a gente contava tudo isso pra nossa mãe, os medos, as vigias pra ir no banheiro, ela só repetia a frase “Gente, mas é Jesus!” e ficava indignada com tudo aquilo.
No final de semana seguinte, para nossa surpresa, meu pai mudou o quadro de lugar. Tirou do corredor e trouxe pra saleta onde tinha a mesa, no hall entre os quartos. Pensamos que, pelo menos, não era no nosso campo de visão a caminho do banheiro, e isso já fazia toda a diferença.
Aquela semana passou tranquila e, quando a gente achava que o problema do quadro estava resolvido, lá estava meu pai mudando de novo o quadro de lugar, desta vez pra perto da janela, na parede lateral da sala. A gente não entendeu nada.
Diante da nossa curiosidade desmedida, minha mãe não teve outro jeito senão nos contar das suas decisões de, outra vez, mudar o quadro de lugar.
– Olha só, primeiro quero dizer que vocês tinham toda a razão. Este quadro parece mesmo que acompanha a gente com os olhos. Eu não notei quando ele estava lá no final do corredor, mas, aqui nessa parede, não deu certo. Ele fica de frente pro nosso quarto, meu e do seu pai, então, toda vez que eu abro a porta, dou logo de cara com ele e a coisa foi ficando assim, como dizer, assustadora.
Enquanto minha mãe falava a gente só ficava remoendo as palavras dela, ditas pouco tempo antes: “Mas é Jesus, gente!”. Dava até vontade de rir dessa lembrança, mas, naquela hora, a gente estava tão aliviado por ela ter sentido o mesmo que nós, que ninguém riu.
Então ela explicou que, quando resolveu mudar tudo pela terceira vez, o azar foi que o quadro ficou bem na linha da janela e a luz do poste da rua pegava bem de frente.
– Aí mesmo que parecia que o Jesus ia sair voando pela sala ou ia abrir o manto e aquele olhão pra correr atrás da gente – disse já rindo e nos levando a rir também, só que dessa vez, junto com ela, o que foi muito melhor.
Em sua saga errante, a tela, depois que foi parar na frente da luz do poste, ficou naquela parede também por pouquíssimo tempo, até que, finalmente, saiu dali e a gente nunca mais ouviu falar do tal quadro de Jesus.
Muitos anos se passaram até que, num certo dia, na casa da minha mãe, alguém estava remexendo numa caixa de louças e copos e, de repente, tirou de dentro o tal quadro. A surpresa foi geral. Enquanto a gente lembrava de toda a epopeia vivida, cada um oferecia pro outro levar a tela pra sua própria casa, perguntando se tinha coragem. Claro que ninguém aceitou e minha mãe pôs o coitado do Jesus de volta na sua caixa, enrolado nos seus panos protetores.
– Pronto, deixa ele aqui quietinho. Com o seu sudário.
– Sudário?
– Gente, é o Jesus!
E caímos todos na risada.


segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O Jogo


Logo cedinho, pouco depois do despertar, o burburinho já dava conta de que aquele não seria um dia comum. O encarregado tinha uma missão delicada que era levar o pedido do pessoal até o diretor.
– Bom dia doutor, a turma tá pedindo autorização pra ver o jogo de hoje à noite. Eles estão falando nisso a semana toda.
– Mas eles não conseguem ver lá no local deles?
– Pois é, a tevê do Evanir pifou de vez. Eles agora só têm um radinho, e ele é bem ruinzinho, sabe?
– Então. Eu vou ter que ver com os meus superiores. Por mim tudo bem, mas vamos aguardar.
O encarregado foi logo informar a resposta que o chefe deu. Disse aos outros que qualquer decisão ele avisava de imediato e que todos podiam ficar tranquilos.
A cidade era uma cidade pequena, do interior do país, quase um povoado. Mas diante da falta de grandes campeonatos locais, quase todo mundo torcia para os times do Rio de Janeiro. O maior deles era o Flamengo, mas a população só podia ver os jogos pela televisão e, mesmo assim, quando passava na tevê, o que não era sempre.
Na hortinha, o pessoal se perguntava a todo momento se tinha uma resposta do diretor. O jogo estava mobilizando o país todo e os jornais e noticiários da tevê estavam em contagem regressiva para o início do embate, o que só aumentava a expectativa de todos.
Na ida pro almoço o inspetor perguntou na fila:
– E aí, afinal vocês vão ver o jogo aqui ou não?
– Não sabemos ainda. O diretor ficou de ver se autorizam.
No refeitório, o cozinheiro passou e perguntou a mesma coisa. Depois apareceu o chefe da lavanderia, abrindo o jaleco e mostrando a camisa do Flamengo por baixo do uniforme. Quando a turma viu aquilo fez um enorme alvoroço. Palmas, assobios, gritos de “é hoje” e “é campeão”, e logo alguém lembrou que a tal autorização do chefão dependia do comportamento de todos e que aquela algazarra podia atrapalhar. Foi o bastante pra que o silêncio voltasse a reinar absoluto na unidade, embora as fisionomias e os gestos mudos mantivessem a turma pilhada, em alto grau, para a grande partida que haveria de noite.
De tarde, o motorista entrou na sala do adjunto com um palito de dente no canto da boca:
– Parece que o pessoal vai assistir ao jogo sim. Eu ouvi o chefe falando com o mandachuva e acho que ele autorizou. Quando eu fui levá-lo no Centro da cidade, ele estava ao celular e eu ouvi. Mas não fala nada que eu disse não.
– Ih, a galera vai ficar doida.
– Vai mesmo!
Um sonoro e uníssono aplauso se ouviu naquele início de noite, quando o diretor comunicou a decisão de autorizar que todos podiam ver o jogo na sala da recepção, que era grande e tinha uma tevê idem.
– Mas só vai assistir quem torce pelo Flamengo – disse, brincando com a galera eufórica.
Nunca se viu tamanha organização numa sala pra se ver um jogo de futebol. Coletivamente, todos se acomodaram, ocuparam seus lugares e a maioria preferiu se sentar no chão. Os mais altos sentaram atrás e assim ninguém ficou na frente de ninguém, tudo perfeito.
– Ah, e você pode ir pra casa, que eu não vou mais precisar do carro hoje – disse o diretor ao motorista. E completou: – A condição pra eles autorizarem foi que eu ficasse e visse o jogo aqui na unidade, pra evitar qualquer problema.
– Bacana. E o senhor acha que eu posso ficar também? – perguntou o motorista.
– Claro, se você quiser.
– É que esse Flamengo tá jogando muita bola, doutor. E eu não queria perder essa festa, de jeito nenhum!
Há coisas nessa vida que, para serem descritas, precisariam de palavras especiais, virgens, palavras jamais usadas, ainda não inventadas, de modo a substituir as que já existem, mas que, diante da magnitude das ocasiões extraordinárias, perdem completamente o sentido.
O estádio, os times, a torcida, os cantos, as faixas, a tela enorme, as cores, a atmosfera, os gols, a partida em si e, claro, a vitória, tudo ali de repente se tornou mágico, uma magia que refletia a grandiosidade da condição humana e a pequenez de toda existência ainda submissa ao preconceito e à ignorância.
Aquela noite foi uma emoção só. Todos os demais, que fizeram como o motorista e ficaram pra assistir ao jogo juntos, e foram muitos, saíram dali com o coração sereno por compartilhar com aquelas pessoas simples os mesmos sentimentos.
Depois de acabado o jogo, depois de finda a festa que continuou ainda por muito tempo, na telinha e naquela sala de recepção, o Evanir se levantou e agradeceu ao delegado pela sensibilidade em permitir que os internos vissem o jogo e pudessem torcer pelo Flamengo. Solene em seu agradecimento, ao final todos aplaudiram e também fizeram uma saudação, repetindo cada um o obrigado, enquanto o porta voz dos detentos abraçava o chefe, que é como ele era chamado.
– Muito bem. Espero que vocês tenham gostado do jogo e da festa. Por um momento esta sala não tinha grades, isso aqui não era uma cadeia e por um momento todos nós estávamos no Rio de Janeiro, no Maracanã. Eu fiquei olhando pra fisionomia de vocês e digo que a história de vocês não pode acabar aqui. A liberdade é uma bênção de Deus e eu espero que, de hoje em diante, cada um faça de tudo, o possível e o impossível, pra cuidar e manter a sua liberdade como meta. O homem nasceu pra ser livre.
Aplaudido novamente, o delegado finalizou:
– E espero que vocês tenham sido pés-quentes porque, na final, eu quero todo mundo aqui de novo. Cada um no seu exato lugar, pra dar sorte e pra não quebrar a corrente. Parabéns pra todos nós, flamenguistas. E agora todo mundo de volta para as suas celas. Até amanhã e durmam bem.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O Alemão


Na frente da loja de brinquedos eu procurava desesperadamente uma vaga de estacionamento. Eu sabia que a hora era imprópria, mas, mais do que a hora, o bairro também não ajudava muito, sendo aquele um emaranhado de ruas pequenas, com muito trânsito e, claro, poucas vagas.
Eu estava parado e, de dentro do carro, tentava avistar uma terra firme no meio daquele mar de carros. Eu percebia o movimento lá dentro da loja e via que estava bem cheia. Na calçada, em frente da porta, um menino negro, de uns 4 ou 5 anos, trocava gestos com um senhor. Digo gestos, porque eu não podia ouvir o que eles falavam um pro outro.
Aquilo definitivamente não me parecia com um bom diálogo, pelo menos não um diálogo normal. O menino estava bastante inquieto. Andava entre os quadrados de terra, alguns com plantas, pulando no tubo de ferro que fazia a margem do canteiro. Depois, parava, falava algo com o senhor e voltava a andar na calçada, entretido com tudo, menos com o movimento daquela loja de brinquedos tão almejada por mim, que queria comprar um simples caleidoscópio, mas que estava difícil de conseguir.
Já o homem era grande, branco, aquele branco avermelhado, típico das pessoas que estão sofrendo com o calor dos trópicos, de pouca familiaridade. Eu diria um típico alemão, muito comum nessas terras catarinenses, que trazem uma fisionomia austera, quase antipática, asseverando, sempre que possível, um ar de que eles estão sempre com a razão, que sabem de tudo, conhecem tudo e que são, enfim, melhores do que todo mundo.
Algumas vezes eu notava que o homem punha o dedo em riste enquanto falava com o menino, e aquilo só confirmava as minhas impressões de que aquela treta não estava nada legal. Mas mesmo assim, o curioso é que, embora pra mim ele fosse firme nas palavras, de onde eu observava parecia que o menino não dava muita bola pra ele e nem parecia se importar com o que estivesse rolando naquela calçada.
A minha vontade era sair do carro e já ir pra perto, pra defender o menino, nem sei lá de quê, mas era isso o que eu sentia. Então, como se fosse um sinal de Deus, surgiu uma vaga bem na esquina, pertinho de onde eu estava. Eu dei só uma ré e logo consegui estacionar.
Fui saindo do carro rápido e só me intrigava o que raios estaria acontecendo ali entre o alemão e o menino. Eu já estava pensando que, a depender do caso, eu ia chamar a polícia, o conselho tutelar ou mesmo alertar os pais do menino, pra denunciar as coisas horríveis que o homem devia estar dizendo pra criança.
Por outro lado, claro que eu não ia chegar logo com os pés no peito do senhor idoso, só porque ele falava daquele jeito com o menino. Então me contive pensando que, como eu não estava conseguindo ouvir o diálogo entre eles, devia chegar perto primeiro, pra depois averiguar a situação.
Então eu fiquei junto da vitrine da loja e, dali, fingia que estava olhando os brinquedos, vendo os preços e assim ia chegando mais próximo dos dois. Primeiro o timbre da voz do homem me surpreendeu. Ele falava mansinho, de uma forma doce com o menino, o que não combinava nem um pouco com o diálogo que eu havia imaginado. Aquilo já me deu uma desconcertada. Em seguida, percebi que o menino, quando falava, até ria pro homem, mostrando que, de um jeito ou de outro, ele estava bem à vontade com tudo aquilo. Eu disse baixinho um “ufa... menos mal”.
Mas as surpresas só estavam começando. O que veio a seguir foi surreal.
– Dudu, cuidado quando pisar nesse cano aí. Você pode cair nas plantas e se machucar. E pode machucar as plantinhas também – disse o alemão.
– Ô vô, eu não caio nada. Quem cai é você. Lá em casa você cai.
Como é? Vô? Eu virei estátua, como se estivesse numa brincadeira, e fiquei um tempo ali investigando um, depois o outro, até que o senhor me viu e falou um “boa tarde” automático. Não sei explicar, mas a sua voz tinha um quê de envergonhado com a situação, situação que eu ainda não tinha entendido totalmente.
– Não fala assim com o vovô, Dudu! – continuou o homem, todo carinhoso.
E o menino:
– Não vou cair não, vô. Eu pulo muito bem. Eu sou o Batman. E você é o Coringa da meleca. Você come meleca.
Tadinho do avô, gente. Que menino mal-educado, falando daquele jeito com o próprio avô!
– Assim o vô não vai te levar pra tomar sorvete. Lembra que a gente vai tomar sorvete daqui a pouco?
Eu nem quis ficar mais, ouvindo aquilo, porque já estava me dando vontade de dar uma bronca no guri. Então eu resolvi entrar na loja e embora não fosse o menino, e sim o velhinho que estava em apuros, eu acho que ele não estava correndo risco de vida e nem era preciso chamar a polícia ou o conselho tutelar. Pelo menos por enquanto.
No momento em que eu estava entrando na loja, uma família estava saindo. Duas mulheres vinham sorrindo, com uma senhora e uma adolescente ao lado delas, cheias de sacolas de brinquedos. Pela semelhança, dava pra notar que estavam todos juntos, incluindo o neto demônio e o avô, aquele anjo bacana e carinhoso.
Foi só o tempo de se encontrarem na calçada e a mãe disse pro menino:
– E aí Dudu, tudo bem? Ficou brincando com o vovô aqui fora? Não desobedeceu ao vô não né? Ficou bonzinho com ele? Hein, ficou, filhinho?
Aquelas palavras eram a prova de que o menino era uma peste e que não era nada bonzinho com o avô, pois até a mãe tinha ficado preocupada ao deixar os dois lá fora. Pelo jeito, ela já imaginava as respostas que ele costumava dar pro avô e isso era, obviamente, muito comum.
Eu me apressei em fechar a porta da loja atrás de mim pra não correr o risco de alguma palavra menos educada, ou menos contida, sair da minha boca. Mas a minha vontade era denunciar o menino, contar tudo pra mãe e salvar aquele pobre avôzinho alemão, tão amável com o neto.
No espaço de dez minutos, sei lá, até menos, eu estava saindo de um impulso de defesa de um menino negro, sendo mal tratado por um adulto branco, em plena calçada, em plena luz do dia, pra chegar numa realidade bem diferente, de um pobre avô passando maus bocados com um neto mal educado, cruel e sem coração.
É como dizem por aí, a realidade deu uma “virada de 360 graus”. Em 10 minutos.


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O Ciúme


Contam que o seu Antenor e o melhor amigo se conheciam desde criança. Estudaram na mesma escola, jogaram no mesmo time de futebol e estavam sempre juntos. As famílias eram amigas, da mesma forma, e tudo corria muito bem até que, no início daquele ano, entraram na turma os novos alunos da escola do povoado vizinho, que tinha entrado em obras. E entre os novos alunos, a Olguinha.
Toda manhã um barco saía de Juazeiro e trazia os alunos até Petrolina, que ficava pertinho, a 10 minutos, mas do outro lado do Velho Chico. O rio dividia as duas cidades, digamos, poeticamente.
Poeticamente foi também como os dois amigos se apaixonaram pela mesma menina Olguinha. Quando um soube do interesse do outro, tentaram ambos negar qualquer coisa, fazendo questão de deixar o caminho livre para o outro. No fim das contas foi o seu Antenor o sortudo e eles se casaram quase na mesma época em que o amigo inseparável foi trabalhar em Salvador, ficando muitos anos sem pisar na sua terra natal.
O casal sempre sentiu saudades do amigo. Um lado lamentava a amizade interrompida e o outro por ter sido, potencialmente, o motivo daquela separação. Por um bom tempo a dúvida trazia aquela sensação inconfessável de ter impedido o enlace do seu melhor amigo com o amor da sua vida, que também era seu, e esse sentimento os acompanhava por longos dias. Mas logo vinha a sensação de que, inevitavelmente, era uma história cujo andamento acabaria por magoar um ou outro, em certo momento da vida.
Como presente de 80 anos, seu Antenor teve a ideia de fazer uma serenata pra esposa. Em segredo, combinou com alguns amigos e também com um dos netos, o que tocava violão, e marcaram de ensaiar durante as tardes. Num desses ensaios, que era feito longe de casa pra manter a surpresa, o neto disse pro avô que tinha visto o seu grande amigo e que ele tinha voltado a morar na cidade.
– Poxa, e ele nem veio falar comigo – disse o avô.
– Mas ele voltou faz pouco tempo. Na certa ainda vai vir aqui falar com o vô. Ele disse que só voltou porque queria morrer nessa cidade e em nenhuma outra. Voltou pra morrer, como ele disse. Mas eu achei ele muito bem, bem disposto, fortão. De vez em quando eu o vejo passar de bicicleta por aí.
Incrível como certas histórias podem renascer na cabeça das pessoas. Mais de 50 anos de casado e uma notícia da volta do amigo o levou diretamente para o dia em que soube da decisão dele, de ir morar em Salvador. Parece que foi ontem, pensou consigo mesmo.
Nos seus melhores devaneios, quando pensava no dia da serenata que se aproximava, seu Antenor imaginava que o seu amigo da vida toda bem que podia vir cantar com ele pra esposa. Afinal, ela era amiga dele também, grande amiga de muitos anos e estava aniversariando. E ficou imaginando uma maneira de convidá-lo, de revelar os seus planos, esquecendo que primeiro o amigo precisava aparecer, dizer que voltou e tudo o mais, pra reatar a amizade que jamais tinha deixado de existir.
A primeira data da serenata teve de ser adiada por causa da saúde da dona Olguinha. O médico ficou sabendo do evento mas pediu mais uns dias, por segurança, pra que a indisposição pudesse passar de vez. E assim foi.
Naquela noite de lua cheia todos da família estavam envolvidos, de alguma maneira, com a execução da surpresa. Às oito em ponto, o violão começou lá em baixo, dando início à serenata, fazendo uma longa introdução, até que as luzes se acendessem, as portas da sacada fossem abertas e surgisse a dona Olguinha com o seu xale roxo e azul, agora ainda mais azul e roxo com a luz da lua.
O cantor começou a sua parte e sua voz firme do início foi ficando imprecisa, o compasso parecendo que ia atrasar, a letra quase sendo esquecida e todos ficaram apreensivos. Do outro lado da rua, um senhor parou pra ver a cena. Sem se dar conta de que conhecia bem aquela música, largou a bicicleta no chão e se aproximou do cantor, soprando a letra pra que ele cantasse sem errar.
Assim que reconheceu o amigo, seu Antenor o abraçou e fez sinal para que ele cantasse também, abrindo os braços pra mostrar a esposa quem estava ali com ele. Ela acenou e juntou as duas mãos em cima do coração, sorrindo como se fosse a menina dos tempos da escola.
Antes de dormir Dona Olguinha disse ao marido que aquela foi a melhor noite da vida dela, em muitos anos, e que estava feliz por ver os dois amigos juntos novamente, sinal de que fizeram as pazes. O marido até tentou dizer que eles jamais haviam brigado, mas ela seguiu o seu roteiro asseverando que aquela amizade era muito forte, coisa de outra vida.
Quando amanheceu o dia dona Olguinha estava morta. Se foi sem saber que naquela mesma noite um infarto havia levado o melhor amigo do casal, que não resistiu à dor no peito ao descer da bicicleta e só teve tempo de se sentar na grande cadeira de vime, na varanda da casa.
No enterro do amigo, poucas horas depois do sepultamento da esposa, seu Antenor cantou sozinho, e sem errar a letra, a música preferida do amigo:
“Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê”.


O Ciúme - de Caetano Veloso.


terça-feira, 10 de setembro de 2019

O Pastor



Assim que o caminhão de mudanças encostou na calçada, meu pai foi lá fora ver o que era. O motorista e os dois ajudantes desceram e informaram que estavam esperando pelo dono da casa ao lado, que estava se mudando naquela manhã.
Não deu dois minutos e chegou o novo morador. Foi logo se apresentando como pastor evangélico e, claro, já tirou o cartão do bolso com o endereço da igreja e os horários das assembleias, tudo isso em sequência ao convite pra que meu pai fosse conhecer o templo e o procurasse, já naquele próximo final de semana.
Minha mãe torceu o nariz de pronto para o convite e todos nós ficamos duvidando se aquela visita ia mesmo acontecer. De família umbandista, meus pais nunca impuseram nada aos filhos. Nem quando eu entrei para o grupo de jovens da igreja católica, convidado pra tocar violão em uma peça de teatro, minha mãe fez qualquer menção negativa ou algo nesse sentido. Mas ela mesma ir ao culto era um pouco demais.
Meu pai, entretanto, talvez até em nome de uma amizade promissora com o vizinho de muro, acabou indo na tal igreja no sábado de noite. Nos disse que sua intenção era apenas ser gentil com o pastor e que aquilo, afinal, não ia fazer mal algum. “O cara parece ser gente boa”, dizia quando o assunto vinha à tona.
Naquele sábado, quando voltou pra casa, meu pai estava um tanto receoso sobre o que tinha acontecido na igreja evangélica. Contou que chegou cedo pra poder cumprimentar o pastor, antes do culto, e que depois sentou lá atrás na plateia, apenas pra observar melhor todo o movimento, a oração e os cantos.
Quando estava começando a cerimônia um menino, de uns 10 anos, sentou do lado dele. Ficou um tempo ali olhando pra ele e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
Meu pai nem tinha reparado a tal cantina, uma lojinha que ficava na lateral da entrada. Se virou pra olhar se ela estava mesmo aberta e deu cinco reais ao garoto. Este saiu correndo direto pra cantina e sumiu porta afora.
Conversando com a gente, mais tarde, meu pai disse que achou muito estranho aquele pedido do menino. Reparou que antes de sentar do seu lado ele passou algumas vezes entre as cadeiras, as fileiras, olhando as pessoas, como se estivesse tentando identificar alguém.
– A pessoa vai na igreja, pela primeira vez, e já vem um menino pedir dinheiro? Isso fica ruim pra própria igreja. Será que o pastor sabe disso? Acho que seria bom eu falar com ele.
Foi aí que a gente explicou que aquilo podia causar certo mal-entendido com vizinho. Falar sobre o ocorrido seria algo como uma queixa e, afinal, ele tinha ido pela primeira vez na igreja e já ia fazer queixa de algo que aconteceu? Sem dúvida, não ia ficar nada bem.
Meu pai até aceitou as nossas ponderações, mas ficou mesmo desconfiado, incomodado com aquela primeira impressão.
No sábado seguinte ele já saiu de casa contrariado pela negativa da minha mãe em ir com ele. Primeiro ela disse apenas que não tinha vontade. Depois, que não iria fazer aquilo só porque o vizinho é gente boa, pois se o caso era amizade, que as visitas fossem feitas nas devidas residências, que ficam uma ao lado da outra. A conversa ia se encerrar ali. Mas, diante de nova insistência do meu pai, ela foi um tanto, digamos, firme, em sua posição:
– Não vou porque eu não tenho nada que fazer em uma igreja protestante. Eu tenho a minha religião e não quero convencer ninguém de que ela é a melhor. É melhor pra mim e isso basta, assim como a outra é melhor pro outro. Então, cada um com a sua e todos com respeito por todos.
E lá foi ele, sozinho pro culto, preparado pra enxotar qualquer menino pidão.
Se sentou na mesma cadeira, na mesma fileira quase vazia e, para sua surpresa, logo surgiu o menino. O mesmo menino. No instante em que o garoto sentou ao seu lado, uma senhora sentou ao lado do menino e cumprimentou meu pai, dizendo que sabia quem ele era, ou seja, um novo irmão na comunidade. Disse que a igreja o recebia com alegria e que ele era muito bem-vindo ali, com as bênçãos de Jesus etc, etc, etc.
Depois de um considerável silêncio o menino olhou pra mulher, depois pro meu pai, e disse:
– Tio, você compra um salgado pra mim? Eu estou com a maior fome. Vende ali, bem na cantina.
O que meu pai quis realmente responder, logo de cara, não pôde. Olhou pra mulher tentando passar alguma indignação e ela, com um sorriso santificado, à la Madre Teresa, juntou as duas mãos e as levantou até o próprio rosto em direção ao meu pai, como se quisesse abençoar toda a humanidade.
Contrariado, porém acanhado, quem sabe até vencido, meu pai tirou cinco reais e deu ao menino. Dessa vez o menino saiu devagarzinho, ganhou o corredor entre os bancos, e quando chegou na porta, antes de sair, se voltou e deu uma nova olhadinha pro meu pai. Ali, imitando o mesmo gesto que a senhora fez, com as palmas das mãos unidas, deu um risinho e sumiu de novo.
Foi o tempo de a mulher se levantar e ir sentar nos bancos da frente da assistência e meu pai saiu da igreja o mais rápido que pôde. Sem falar com ninguém, sem cumprimentar irmão nenhum.
Mesmo com a insistência da minha mãe ele ficou quieto alguns dias, calado, até poder contar pra gente o que tinha acontecido. O sentimento dele era o de ter caído em um golpe, ter sido passado pra trás, levado uma rasteira. “Naquele lugar eu não piso mais”, dizia quando alguém puxava o assunto. E completava:
– Pastor do diabo. Pastor do dinheiro.
Daquele dia em diante, ninguém o viu mais conversando com o vizinho pastor, nem indo lá fora quando via o movimento da casa ao lado. Os cumprimentos por cima do muro também jamais se repetiram, sendo evitados estrategicamente sempre que possível.
Quando a gente queria fazer troça com meu pai, chamava ele de tio e pedia um dinheiro, dizendo que era pra comprar um salgado na esquina. Às vezes, ele ria de lado e balançava a cabeça. Outras, ele respondia com um “Sai pra lá. Eu sou da macumba”, ao que era repreendido pela minha mãe, de onde estivesse:
– Macumba não, Umbanda!
E todos nós caíamos na risada.


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

O Marido da Marlene


Historicamente o setor administrativo sempre foi meio afastado do técnico. No refeitório sentavam separados, nas reuniões idem e nas confraternizações de aniversário, toda última quinta-feira do mês, mesmo com as brincadeiras de todos os lados, as pessoas não ficavam à vontade.
Acho que foi por isso que a gente não teve muito espaço pra tirar as informações que queríamos da Marlene. Ela era secretária do setor de compras e serviços e a gente começou a notar, no meio do ano, que o marido dela passou a vir buscá-la na saída do trabalho.
No grupo do qual eu fazia parte todo mundo notou e o assunto ficou rolando por um bom tempo entre nós. Nada demais o marido vir buscar a esposa, claro. Mas ele tinha um comportamento, digamos, reservado demais para os nossos padrões naquele órgão federal, onde todo mundo se conhecia.
O sujeito não ia até a portaria e ficava dentro do carro esperando ela sair. Às vezes ficava de pé, ao lado do veículo, fumando e limpando os óculos na barra da camisa. Mas sempre estacionava do outro lado da calçada e lá ficava um tempão, encarando as pessoas, de tocaia mesmo, observando tudo e todos. A Marlene, por sua vez, era uma pessoa bem amável com a gente, alegre e comunicativa. Ela só ficava diferente quando o assunto era o seu marido. Aí ela se fechava e, com cara sisuda, respondia sempre curto e de forma genérica, se apressando em mudar de prosa.
Eu tinha uma desconfiança enviesada sobre o tal sujeito, mas era tão absurda que eu nem me atrevia a dizer pra alguém. Uma tarde o coordenador de área me chamou na sala dele, que ficava no final do corredor. Quando eu saí pro saguão encontrei o Humberto, chefe da engenharia, que ia na mesma direção. Estranhamos o chamado do chefe àquela hora, mas quando entramos na sala dele já estavam lá outros técnicos e então eu notei que a urgência não era de trabalho.
– Que bom que você chegou – disse o chefe. Nós estamos aqui falando do marido da Marlene. Ele é muito esquisito. A gente não quer pensar nada de ruim sobre ele, mas acaba sendo inevitável. Aí, você, como é uma pessoa equilibrada, sensata, a gente queria saber a sua opinião. O que você acha dele?
Justamente eu, que tinha as piores impressões sobre o sujeito, estava agora diante dos colegas pra dar o meu parecer sobre o comportamento dele.
– Mas o que vocês estão achando? Qual o problema? – perguntei pra ter tempo de pensar.
– Não, primeiro fala você o que acha.
– Olha só, eu tenho até me censurado por pensar isso. Mas ele, pra mim, tem uma baita cara de mau, de gente ruim, tipo ex-policial ou coisa assim. Pelo fato de ele ficar lá no carro, daquele jeito, quase escondido, à espreita, esperando a Marlene sair, sem querer se aproximar de ninguém, sei lá, ele tem a maior cara de torturador. Me desculpe se alguém conhece ele e tal, mas é isso.
Enquanto eu falava notei que alguns colegas se entreolhavam, riam com a mão na frente da boca, batiam as mãos e até davam tapinhas no ombro do colega ao lado. O coordenador então me disse:
– Fica frio. É incrível, mas todos nós pensamos a mesma coisa. Só faltava a sua opinião e a do Humberto, mas todos aqui nessa sala falaram exatamente isso: que ele tem cara de torturador. Até pela questão dos óculos escuros e das roupas dele, que parecem fardas, com aquela camisa cáqui e as calças pretas. Só falta a arma na cintura.
O Humberto então acrescentou que a única coisa que ele tinha a dizer, diferente dos outros, é que pra ele o cara tinha cara de cachorro. Nos contou que dava medo só de olhar pra aquela aparência de cachorro, pronto pra morder o primeiro que aparecesse.
A risada foi geral e, ao mesmo tempo, todos ficamos aliviados porque afinal o cara de cachorro era uma unanimidade, assim como a sua suposta participação na tortura. Pra nós era isso e ponto final. Até porque aquilo já estava virando uma feira, com todo mundo rindo, dizendo que ia trazer um osso pra ele, e as asneiras iam se multiplicando.
O ano era 1988 e o Brasil tinha recém saído da ditadura. Os torturadores, quase todos militares, viviam um período de sombra e reclusão, pois tinham medo de ser reconhecidos, julgados ou coisa que o valha. Muitos foram para a reserva, com o intuito de sair de cena, e até mudaram de cidade, de estado. Mas no Rio de Janeiro a população sempre soube que, ainda assim, esses caras eram uma espécie não-humana que naquele período espreitavam uma chance de exercer, prontamente, em nome do estado, uma nova e covarde ameaça à democracia.
No meio daquela balbúrdia toda, na sala do chefe, alguém alardeou “coitada da Marlene”. E logo vieram também o “como ela consegue viver assim?”, “será que ela sabe a verdade?”, “será que ele bate nela?”, “a gente devia fazer alguma coisa”, “a Marlene pode estar em perigo, gente”.
As semanas se passaram e, de tempos em tempos, alguém chegava com alguma nova ideia de como tirar aquilo tudo a limpo, de como agir pra poder salvar a vida da coitada da Marlene, tão boazinha, casada com um torturador. Um dizia que tinha que atrair o marido pra dentro da repartição e puxar o assunto, outro que tinha que pegar os dois desprevenidos e perguntar na lata, quem sabe ligar pra ele anonimamente e ameaçar, e outro ainda dizia que era a Marlene que tinha que ser interrogada sobre o marido, pois ela o acobertava.
Até que um dia a nossa reunião semanal se estendeu demais. Ficamos quase duas horas além do horário normal e quando saímos no corredor o pessoal da limpeza já estava em ação nas outras salas, fechando os corredores e apagando as luzes.
Quando chegaram os dois elevadores a turma se dividiu pra descer, marcando de se encontrar na portaria. O nosso elevador, estranhamente, desceu um pouco e parou no sexto andar. No meio da escuridão, surge do breu, entrando porta a dentro, o marido da Marlene com sua cara de bandido de filme de bangue-bangue.
Deu um nó em todo mundo. O silêncio era assustador. Estava matando a gente. Nenhum pio se ouvia. No elevador a gente nem se olhava com medo de o homem perceber alguma coisa. Até que alguém, timidamente, falou:
– Desculpe, o senhor não é o marido da Marlene?
– Eu mesmo. Por quê?
– É que a Marlene sempre fala muito bem do senhor. Boa noite, viu?
E descemos todos no térreo, voltando a respirar.