Quando chegou ao trabalho, naquela manhã, a
enfermeira notou que a barraca de lanche tinha se mudado para o outro lado da
rua. Ainda estava em frente ao posto de saúde, mas na calçada oposta. Ela
estranhou, mas, na correria pelo início do dia de trabalho – e dos atendimentos
– deixou pra mais tarde a ideia de ir saber o motivo da troca.
Num bairro de subúrbio como este, um posto de saúde
é fundamental, pois as pessoas que ali vivem não possuem renda suficiente para
pagar um plano de assistência médica. O que, nesse país, pareceria óbvio em
outros tempos, atualmente é quase uma questão de defender a própria vida. Os
pobres, nos dias atuais, não são mais os beneficiários e nem fazem parte das
políticas públicas, sendo a estes negados muitos direitos, como à cidadania, à
educação e ao amparo social.
E nesse contexto o próprio comércio local, aí
incluída a barraquinha de lanche, é de suma importância para os usuários do
posto de saúde. No frio eles tomam um cafezinho pra esquentar e no verão um
refresco pra aliviar os 40 graus diários. Tudo baratinho, a um preço que eles
podem pagar, enquanto passam quase o dia todo ali, aguardando um simples
atendimento.
Foi então que no começo da tarde a enfermeira teve
um tempinho e foi falar com a dona da barraca.
– Boa tarde, dona Ana. Como vai a senhora?
– Oi Alyne. A gente vai como Deus quer, não é
mesmo?
A enfermeira então percebeu que a dona Ana tinha um
pano de copa perto do balcão, que ela usava pra enxugar as mãos e os utensílios
de uso, mas também levava no ombro uma pequena toalha de mão, que passava pelo
rosto muito frequentemente. Vendo que a amiga notou o pano, ela foi logo
explicando.
– Muito calor, colega. Tá demais isso aqui. Não sei
onde eles vão parar acabando com as florestas.
– Mas, me diz uma coisa, porque a senhora mudou de
lugar e trouxe a barraca aqui, pro sol? Ali do outro lado era uma sombrinha tão
boa!
– Sim, mas eu também preferia ficar lá. Aqui desse
lado derrete todo o meu gelo, as balas e doces ficam ruins e estraga muito mais
coisa por causa do sol e do calor. Os salgados, então, azedam direto, aos
montes.
– E porque você mudou pra cá então, oras?
– Ah, eu não sei de nada. Só sei que um dia o
guarda aí do posto veio falar que era pra eu vir pro lado de cá. Disse que eu
estava atrapalhando a entrada do posto e que a ordem era pra eu vir pro outro
lado da rua.
– Mas quem mandou o guarda vir falar com você? Foi
ordem de quem?
– Ah, dona Alyne, isso eu não sei não.
Realmente, olhando em volta, até para o pessoal que
vinha buscar um refresco de laranja, era melhor ir tomar do outro lado da rua,
na sombra, claro. E dava pra notar os recipientes, todos suando pelo lado de
fora, já que o gelo não dava conta de manter qualquer coisa minimamente fresca.
A enfermeira passou pelo guarda da portaria, já
olhando feio pra ele. E parece que ele notou. Dali, ela foi até a sala da
chefia, que não estava no posto, e então decidiu tirar aquilo a limpo.
– Atenção, aqui, pessoal. Quem foi que mandou tirar
a barraca da dona Ana aqui da frente do posto? Quem falou pra ela ir pro outro
lado da rua? Gente, ela não pode ficar naquele sol. Ela vai ter um troço. Tá
estragando tudo dela. Os refrescos, tudo quente. Os salgados azedando.
– Não sei quem falou pra ela mudar não – disse uma
voz, lá no final do corredor.
– Ok, a questão é que alguém falou ou mandou falar!
Alguém deu essa ordem.
– Eu até vi que ela tá com uma toalhinha, se
secando o tempo todo. Coitada da pessoa – falou a médica.
– Coitada mesmo. Isso é pura maldade. Ela presta um
serviço pra gente e pros nossos usuários também. Da mesma forma que a gente
toma um refresco, um café, as pessoas que estão esperando atendimento também
vão lá comer alguma coisa ou beber uma água. Agora, com a barraca no sol, todos
nós perdemos. Não sacrificamos só ela, não. Ela é a pior vítima, ok. Mas a
gente também perde com isso, gente.
– Pergunta pra ela quem foi que mandou – sugeriu
uma auxiliar do Eletrocardiograma.
– Eu já perguntei. Foi o guarda que levou a ordem
pra ela, sem dizer de quem partiu. Mas, boa ideia, eu vou lá perguntar direto
ao guarda.
O serviço de vigilância é uma função terceirizada.
É prestado através de contrato com uma empresa e é bem rotativo, sempre com
gente nova na portaria. Talvez por isso o guarda, por medo ou covardia, não
quis dizer quem lhe deu a tal incumbência, se reservando a declarar que não
estava autorizado a revelar a autoria do mando, ou do desmando.
Na mesma hora, quase todos os servidores da saúde
daquele posto saíram juntos em direção a barraca da dona Ana. Ali, enquanto uns
explicavam o que estava acontecendo, outros já tiravam as travas das rodas e
puxavam a barraca pra sombra, fresquinha, da frente do posto. Ela veio atrás,
trazendo o seu banquinho, algumas sacolas e o guarda-sol, que ela nunca mais
usou.
Jamais se soube quem mandou trocar a barraca de
lugar. Nas conversas entre os servidores eles riem tentando adivinhar quem terá
sido o autor e sempre tem alguém que comenta que é da natureza humana a
necessidade de exercer o poder, assim que surge a oportunidade. Mesmo
mesquinho, o poder é inebriante. E como diz o compositor Billy Blanco, mais
alto o coqueiro, maior é o tombo.
Quando a enfermeira Alyne foi embora aquele dia,
como sempre fazia, passou pela dona Ana pra dar um até amanhã.
– Poxa, eu tomei um susto naquela hora, minha
filha.
– Que hora? Susto por quê?
– Eu vi todo mundo de branco, saindo junto do posto
e vindo na minha direção. Eu paralisei.
– Ah, sim, naquela hora. Você achou que era o quê?
– Achei que vocês iam me expulsar de vez daqui. Eu
já estava até passando mal.
As duas continuaram rindo, enquanto a enfermeira
ganhava o final da rua, sempre olhando pra trás, pra enxergar a dona da
barraca, que acenava com a sua toalhinha vermelha, até que ela sumisse na
esquina.
Essa
história aconteceu no verão de 2019.
Dona Ana
morreu em outubro deste ano de 2021.
De Covid.