sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A Barraca da Dona Ana

 

Quando chegou ao trabalho, naquela manhã, a enfermeira notou que a barraca de lanche tinha se mudado para o outro lado da rua. Ainda estava em frente ao posto de saúde, mas na calçada oposta. Ela estranhou, mas, na correria pelo início do dia de trabalho – e dos atendimentos – deixou pra mais tarde a ideia de ir saber o motivo da troca.

Num bairro de subúrbio como este, um posto de saúde é fundamental, pois as pessoas que ali vivem não possuem renda suficiente para pagar um plano de assistência médica. O que, nesse país, pareceria óbvio em outros tempos, atualmente é quase uma questão de defender a própria vida. Os pobres, nos dias atuais, não são mais os beneficiários e nem fazem parte das políticas públicas, sendo a estes negados muitos direitos, como à cidadania, à educação e ao amparo social.

E nesse contexto o próprio comércio local, aí incluída a barraquinha de lanche, é de suma importância para os usuários do posto de saúde. No frio eles tomam um cafezinho pra esquentar e no verão um refresco pra aliviar os 40 graus diários. Tudo baratinho, a um preço que eles podem pagar, enquanto passam quase o dia todo ali, aguardando um simples atendimento.

Foi então que no começo da tarde a enfermeira teve um tempinho e foi falar com a dona da barraca.

– Boa tarde, dona Ana. Como vai a senhora?

– Oi Alyne. A gente vai como Deus quer, não é mesmo?

A enfermeira então percebeu que a dona Ana tinha um pano de copa perto do balcão, que ela usava pra enxugar as mãos e os utensílios de uso, mas também levava no ombro uma pequena toalha de mão, que passava pelo rosto muito frequentemente. Vendo que a amiga notou o pano, ela foi logo explicando.

– Muito calor, colega. Tá demais isso aqui. Não sei onde eles vão parar acabando com as florestas.

– Mas, me diz uma coisa, porque a senhora mudou de lugar e trouxe a barraca aqui, pro sol? Ali do outro lado era uma sombrinha tão boa!

– Sim, mas eu também preferia ficar lá. Aqui desse lado derrete todo o meu gelo, as balas e doces ficam ruins e estraga muito mais coisa por causa do sol e do calor. Os salgados, então, azedam direto, aos montes.

– E porque você mudou pra cá então, oras?

– Ah, eu não sei de nada. Só sei que um dia o guarda aí do posto veio falar que era pra eu vir pro lado de cá. Disse que eu estava atrapalhando a entrada do posto e que a ordem era pra eu vir pro outro lado da rua.

– Mas quem mandou o guarda vir falar com você? Foi ordem de quem?

– Ah, dona Alyne, isso eu não sei não.

Realmente, olhando em volta, até para o pessoal que vinha buscar um refresco de laranja, era melhor ir tomar do outro lado da rua, na sombra, claro. E dava pra notar os recipientes, todos suando pelo lado de fora, já que o gelo não dava conta de manter qualquer coisa minimamente fresca.

A enfermeira passou pelo guarda da portaria, já olhando feio pra ele. E parece que ele notou. Dali, ela foi até a sala da chefia, que não estava no posto, e então decidiu tirar aquilo a limpo.

– Atenção, aqui, pessoal. Quem foi que mandou tirar a barraca da dona Ana aqui da frente do posto? Quem falou pra ela ir pro outro lado da rua? Gente, ela não pode ficar naquele sol. Ela vai ter um troço. Tá estragando tudo dela. Os refrescos, tudo quente. Os salgados azedando.

– Não sei quem falou pra ela mudar não – disse uma voz, lá no final do corredor.

– Ok, a questão é que alguém falou ou mandou falar! Alguém deu essa ordem.

– Eu até vi que ela tá com uma toalhinha, se secando o tempo todo. Coitada da pessoa – falou a médica.

– Coitada mesmo. Isso é pura maldade. Ela presta um serviço pra gente e pros nossos usuários também. Da mesma forma que a gente toma um refresco, um café, as pessoas que estão esperando atendimento também vão lá comer alguma coisa ou beber uma água. Agora, com a barraca no sol, todos nós perdemos. Não sacrificamos só ela, não. Ela é a pior vítima, ok. Mas a gente também perde com isso, gente.

– Pergunta pra ela quem foi que mandou – sugeriu uma auxiliar do Eletrocardiograma.

– Eu já perguntei. Foi o guarda que levou a ordem pra ela, sem dizer de quem partiu. Mas, boa ideia, eu vou lá perguntar direto ao guarda.

O serviço de vigilância é uma função terceirizada. É prestado através de contrato com uma empresa e é bem rotativo, sempre com gente nova na portaria. Talvez por isso o guarda, por medo ou covardia, não quis dizer quem lhe deu a tal incumbência, se reservando a declarar que não estava autorizado a revelar a autoria do mando, ou do desmando.

Na mesma hora, quase todos os servidores da saúde daquele posto saíram juntos em direção a barraca da dona Ana. Ali, enquanto uns explicavam o que estava acontecendo, outros já tiravam as travas das rodas e puxavam a barraca pra sombra, fresquinha, da frente do posto. Ela veio atrás, trazendo o seu banquinho, algumas sacolas e o guarda-sol, que ela nunca mais usou.

Jamais se soube quem mandou trocar a barraca de lugar. Nas conversas entre os servidores eles riem tentando adivinhar quem terá sido o autor e sempre tem alguém que comenta que é da natureza humana a necessidade de exercer o poder, assim que surge a oportunidade. Mesmo mesquinho, o poder é inebriante. E como diz o compositor Billy Blanco, mais alto o coqueiro, maior é o tombo.

Quando a enfermeira Alyne foi embora aquele dia, como sempre fazia, passou pela dona Ana pra dar um até amanhã.

– Poxa, eu tomei um susto naquela hora, minha filha.

– Que hora? Susto por quê?

– Eu vi todo mundo de branco, saindo junto do posto e vindo na minha direção. Eu paralisei.

– Ah, sim, naquela hora. Você achou que era o quê?

– Achei que vocês iam me expulsar de vez daqui. Eu já estava até passando mal.

As duas continuaram rindo, enquanto a enfermeira ganhava o final da rua, sempre olhando pra trás, pra enxergar a dona da barraca, que acenava com a sua toalhinha vermelha, até que ela sumisse na esquina.

 

 

Essa história aconteceu no verão de 2019.

Dona Ana morreu em outubro deste ano de 2021.

De Covid.

 

 


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Israel

 

O que os músicos e os cronistas têm em comum é a grande variedade de histórias que vivem no seu dia a dia. Se por um lado os músicos sempre aumentam os pontos em seus contos, cada vez que os contam, os cronistas, por sua vez, não se importam quando alguém diz que eles são capazes de lembrar de coisas que jamais aconteceram. É o que repetem os netos da escritora chilena Isabel Allende para a avó, até com uma certa frequência.

Dito isto, meu irmão, que é o artista da família, tocava num restaurante do Centro do Rio, anexo de um tradicional hotel da cidade, que ficava quase na esquina da Avenida Rio Branco. À princípio, ele começou fazendo o happy hour com o seu violão e um parceiro, de guitarra. Mas em algumas temporadas o duo mudava, ora se completando com a luxuosa companhia de um percussionista, ora com uma pegada mais harmoniosa, como quando formava com o cara da gaita de boca, o Israel.

A gaita, como instrumento de solo, já agrada normalmente quando o assunto é um jazz ou um blues, gêneros que o Israel dominava lindamente. Mas, quando o rapaz fazia os floreios e as investidas no meio das canções, os aplausos vinham fortes tanto nos sambas, nas bossas, enfim, em quase tudo que ele solava, surgindo lá do fundo do palco, segurando a gaita e o microfone com uma das mãos e deixando a outra livre para os vibratos, sempre precisos. Era um show aquilo.

Pois uma tarde eu abri o jornal e li que ia ter uma apresentação de uma orquestra sinfônica na Igreja da Candelária, ali perto. O solista era nada mais, nada menos, que Rildo Hora, talvez o maior gaitista que o Brasil já teve até hoje. Exímio na gaita de boca, Rildo é também violonista, cantor, compositor e arranjador, além de maestro excepcional. Eu então resolvi que ia passar lá no restaurante, apenas pra dar um alô pro meu irmão e, de lá, iria pra Candelária.

Assim que eu falei do show o Israel se antecipou:

– O Rildo Hora é demais, cara. O melhor de todos. Minha inspiração. Só isso que eu posso dizer.

Preparado pra ouvir mais algumas histórias típicas dos músicos, eu me sentei na poltrona perto do palco, aproveitando que eles ainda não tinham começado a tocar naquele início de noite. Só que o meu gesto deu margem para mais causos do Israel.

– Já toquei com ele uma vez, lá em Copacabana. Era num estúdio que tava rolando uma gravação e a gente já se conhecia de antes. Naquele dia ele me deu uns toques sobre o instrumento e tal. Até marcamos de ir na Lapa, onde tinha uma roda de chorinho. Mas eu nunca fui. Na verdade, eu fiquei com vergonha de tocar perto dele, pô.

Me lembro que o rapaz emendou uma fala na outra e não parava de contar as suas aventuras com o mestre da gaita de boca. Até que eu disse que ia para a igreja e comecei a me despedir dos dois, pegando a minha bolsa. Lamentando que não podia ir junto o Israel pôs a mão no meu ombro:

– Cara, posso te pedir um favor? Um favor de amigo mesmo? Tu manda um abraço pro seu Rildo por mim? Diz que foi o Israel que mandou. Ele vai lembrar de mim, tenho certeza. Faz isso pra mim?

Eu não tinha a menor dúvida de que aquilo ia ser uma baita furada. Mas concordei com o pedido dele e disse um “pode deixar comigo”, meio de praxe, automático, e fui saindo do restaurante.

A orquestra estava demais, o repertório mesclou obras eruditas e populares, sem esquecer dos famosos chorinhos, e o Rildo, seu Rildo, como disse o Israel, sempre muito simpático, falou sobre o realejo, que é como ele chama a gaita, e sobre algumas composições do programa, numa conversa simpática e ao mesmo tempo educativa com a plateia, esta completamente embevecida com a aula.

Quase ao final, o maestro anunciou que alguns CDs estariam à venda na sala ao lado. Quem quisesse, poderia adquirir e, de quebra, ainda levar um autógrafo do mestre. Eu queria comprar, mas, imediatamente pensei se mandaria ou não o abraço do Israel. A menos que eu não fosse comprar o CD, aí sim, diria pro rapaz que não tive oportunidade de atender ao seu pedido. Mas, eu ir até a sala anexa, ficar de frente com o mestre, significava optar pelo pacote completo, com o abraço incluído.

Ainda na fila eu pensei de novo em desistir. Imaginei o mico que seria se eu mandasse o abraço e ele nem soubesse de quem se tratava. “Quem é esse Israel? Eu não o conheço.” E a minha cara ia ao chão em segundos, sem CD, sem nada.

Diante do músico, depois de ele perguntar o meu nome para o autógrafo, eu senti alguma receptividade:

– Se o senhor me permite, eu tenho um abraço que me mandaram lhe transmitir.

Sem levantar os olhos, enquanto escrevia, ele balbuciou um hã-hã, para que eu continuasse.

– O nome dele é Israel e mandou um grande abraço para o senhor. Ele está...

– Você é amigo do Israel? Puxa, que sujeito bacana. Um grande músico e um estudioso da gaita. Aquele rapaz vai longe. Um talento. Pois mande um abraço pra ele de volta e diga que eu quero que ele venha me visitar. Grande Israel.

Estupefato eu estava, estupefato continuei. Também fiquei mudo por uns instantes e a seguir perplexo, depois daquele breve diálogo, até porque todos em volta estavam olhando pra mim, como se eu fosse alguém do círculo de amizade do professor Rildo Hora, como alguns ali se referiam a ele.

Me lembro que na vez subsequente que fui ver o Israel tocar com o meu irmão, fiquei observando o seu jeito e pensando no enorme talento que ele tinha. E como ele era bom com aquela gaita na boca, como as canções brilhavam com o acréscimo de qualidade que ele emprestava a elas.

No intervalo ele me ouviu dar a resposta do seu Rildo, mandando um abraço de volta, com a maior simplicidade do mundo, como se não esperasse coisa diferente. E dali em diante eu decidi que jamais duvidaria dos causos, às vezes inacreditáveis, que os músicos contam.

Pelo menos, não do Israel.

 


segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Parasita e o Rabo


Entraram mãe e filho na gerência de serviços da concessionária. Ela, gesticulando muito e falando em tom elevado, discordava do rapaz e, tentando ensinar, recordava o fato recém ocorrido, pelo que eu entendi, em algum semáforo próximo dali.

– Não dou dinheiro pra vagabundo nenhum.

– Mas, mãe, o velhinho estava de muleta, uma muleta toda quebrada, e ele não tinha uma parte da perna. Não era vagabundo, não!

– Você acha que, por não ter um pedaço da perna, aquele homem não pode trabalhar? Claro que pode. Vou te dizer uma coisa: aquele homem é um parasita, um parasita da sociedade. A sociedade trabalha pra sustentar esse tipo de gente. E tem muitos assim, parasitando a vida toda.

– Mas, mãe, eu só acho que as coisas não são simples assim.

– As leis nesse país permitem tudo, meu filho. Até pagar salário pra quem não trabalha! E eu te digo: Tá tudo errado!

Eu e mais uns três clientes, que estávamos aguardando atendimento, não pudemos deixar de ouvir aquele diálogo. Primeiro a gente tentou desviar o olhar da cena, pra dar um quê de distanciamento, mas intuo que não fomos convincentes o suficiente. O rapaz, filho da senhora, por sua vez, também não pôde esconder o desconforto, não só pelo volume da voz da mãe, mas principalmente, pelas suas palavras, com as quais ele, mesmo timidamente, não concordava.

A secretária então perguntou quem de nós, ali, iria fazer a primeira revisão e a tal senhora foi convidada a ir até a sua mesa. Uma auxiliar veio oferecer um cafezinho e explicou que a prioridade de atendimento para a primeira revisão é uma norma da empresa e que logo seríamos devidamente atendidos. Sem escolha, todos dissemos um ok, de praxe.

Foi então que algo, tipo um teatro, se iniciou naquela sala sem que tivéssemos combinado ou mesmo ensaiado os próximos gestos, digamos, sequenciados.

Preenchendo o formulário do atendimento, para cada item que a secretária anunciava, nós três, sentados no banco de espera, nos olhávamos ritmadamente, depois sorriamos e, em seguida, levantávamos as sobrancelhas, como quem passa a entender o que antes não estava claro. Foi assim com algumas perguntas como o endereço, por exemplo, e o modelo do carro, que a gente já sabia que era zero quilômetro e estava na primeira revisão.

Então veio a pergunta crucial, bem já no final, quando o último campo foi lido pela moça:

– Além do celular, tem algum outro telefone do trabalho que a senhora queira deixar?

– Não, só o celular mesmo. Eu não trabalho. Sou pensionista das forças armadas. Meu pai era oficial da Marinha.

– Olha, que interessante! – disse a secretária, sem perceber que a ficha tinha caído definitivamente pra todo mundo, ao mesmo tempo.

E era uma ficha cheia de vergonha, que descortinara o egoísmo humano num plano inacreditável. Não só pela falta de empatia, de sentimento de fraternidade ou mesmo pela ausência de percepção de que se tratava afinal de um semelhante, de um igual, por mais diferente que ele possa ter parecido. Uma sensação ruim sobre o episódio com o homem do semáforo, prontamente nos veio à cabeça.

Ficamos em silêncio total até que a senhora saísse da sala. Nem o gerente teve vontade de chamar o próximo cliente. Um mecânico até entrou, subitamente, perguntando algo ao superior, mas foi paralisado ante a mão espalmada do chefe e logo também se aquietou no canto, estacado, esperando que a pausa daquele universo se diluísse.

Quando eu sentei na mesa com os papéis da minha revisão, o gerente suspirou com calma e se dirigiu a nós três, abrindo os braços.

– O que foi isso, minha gente? Vocês viram o que eu vi?

– Não só vimos como ouvimos, o que é muito pior – alguém respondeu em voz baixa.

Depois de um breve silêncio, alguém falou:

– Parasita.

– Pra mim, parasita – assentiu o cliente ao meu lado.

– Parasita total – falei, com desânimo.

Parece que nenhum de nós ia conseguir sair dali sem conversar, entre humanos, sobre o ocorrido. Destrinchar aquele acontecimento se impunha. Era um nó na garganta que precisava ser desfeito, sob pena de durar o dia todo. Então, nada de atendimento, de formulário ou de revisão alguma. A nossa perplexidade era um enorme elefante e precisava ser tirado daquela sala.

A partir daí talvez eu não saiba pormenorizar o que foi dito por cada um. É claro que a questão da lei que concede pensão para filhas de militares foi, consensualmente, tida como uma excrescência nos dias de hoje. Injustificável. Por outro lado, a miséria, a pobreza que se alastra por esse país, trazendo a fome para a linha de frente dos semáforos das cidades precisa ser, minimamente, acolhida por todos nós, humanos. Seja propriamente com auxílios substanciais; seja com a compreensão e solidariedade de cada um; seja até pelo desalento quando não temos condição de contribuir. Mas, jamais, aquele homem que pede será um parasita. Em nenhuma hipótese!

Também concordamos que estamos a viver uma longa e triste noite. Impensável em tempos civilizados. Uma noite que nos encobre a todos, como uma penumbra sem fim, feita de torpeza intelectual. À frente, puxando o cortejo macabro, vai um berrante mentalmente primitivo, involutivo, um ser dotado de um atraso conceitual definitivo. Cujo submundo de onde saiu foi aberto com o beneplácito de muita gente com estudo, salário, bens e alguma miopia. Com sarcasmo e crueldade a besta carrega a marca do fim. Um fim em si mesmo. Um fim e só um fim.

E para não dizer que eu esqueci das flores e não falei do rabo que está no título, aqui vai. O fato é que aquele mecânico, que a certa altura entrou na sala e foi instado a se calar subitamente, quando dali do seu canto tomou conhecimento de todo o lamentável episódio, balançou a cabeça e sentenciou em nossa direção:

– Então, era a parasita legítima chamando o outro de parasita. O macaco nunca olha mesmo pro seu rabo. Era o que a minha mãe costumava falar pra gente. Antes de olhar o rabo do outro, olhe o seu. Eita, minha mãe sabia de tudo mesmo.

Dona Jurema também. Ah, se sabia!

 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O Infarto

 

Meu braço esquerdo amanheceu um pouco dormente. Na mesma hora eu lembrei dos relatos das pessoas que sofreram infarto, dando conta de que tudo havia começado com uma incômoda dormência nos membros superiores.

Pra não preocupar, resolvi não falar nada pra ninguém. Mas não pude evitar de ficar pensando no assunto o dia todo, uma vez que o braço continuava com o formigamento e, mesmo sem ser contínuo, o fato de ficar aumentando e diminuindo, por si só já me deixava desconfiado.

Na parte da manhã eu até procurei me manter calmo e tal. Mas logo depois do almoço a minha ideia fixa já era que, se aquele era o meu último dia de vida, eu tinha de estar minimamente preparado. E preparado, pra mim, significava imaginar quem se importaria com isso, quem ficaria triste ou mesmo o que seria feito dos meus violões, o piano, a Romilda, minha bicicleta querida, ou a minha coleção de moedas antigas. Os livros, pensei, os amigos saberão dividi-los com parcimônia e até se rirão das minhas anotações a lápis em um punhado de suas páginas.

Me lembrei também de alguns amigos do tempo da faculdade e tentei intuir como eles receberiam a repentina notícia. Da mesma forma, como se daria com os colegas de trabalho de Salvador, São Paulo ou do Rio, dos quais, com toda a certeza, eu guardo muito mais lembranças deles do que eles de mim. Mas a vida é assim – suspirava eu, melancólico e absorto nesse exercício de não-futurologia mórbida.

Por diversas vezes também eu ouvi histórias nas quais as pessoas, dias ou mesmo horas antes de partir, tinham dado sinais evidentes de sua despedida, fazendo ou dizendo coisas que, só depois da sua partida, teriam sido decifradas como tal. Era como se a pessoa soubesse que a sua hora estava próxima, por isso fez e disse aquilo de determinada maneira.

E era exatamente assim que eu encarava aquele sentimento novo: como sendo um sinal pra que eu entendesse a proximidade do fato avizinhado. Pois, afinal, cada um tem o seu tempo e a morte nada mais é do que o encontro com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, como recitava o João Grilo do Suassuna.

Aquele dia se espichou modorrento até que, mudando de canal, achei um jogo de tênis na tevê. Era o Guga em um torneio na França, onde ele tentava o bicampeonato. Não era a final, mas mesmo assim foi talvez um dos jogos mais difíceis que o brasileiro já teve naquelas quadras de saibro. O adversário não errava nada. Ao contrário, era astuto pra aproveitar todas as incertezas e hesitações do nosso tenista, o bastante pra elevar o jogo aos píncaros do nervosismo.

Foi o próprio locutor que me chamou a atenção, depois de uma advertência do comentarista, ao dizer que aquele jogo era mesmo um teste pra cardíacos. Na mesma hora eu estanquei no sofá, lembrei do meu braço dormente desde a manhã e pensei que, poxa, só falta eu infartar aqui, vendo o jogo do Guga. Que bela maneira de morrer: o sujeito fica na aflição pelo jogo, o seu ídolo ganha a partida, ele fica super feliz e depois morre por não conseguir controlar as fortes emoções conflitantes e sucessivas. Ah, não!

O teatro do jogo se desenrolava, nervoso como nunca. Dizia o repórter na quadra que nunca tinha visto algo assim. Uma troca frenética de bolas, na qual ninguém consegue abrir vantagem suficiente que signifique alguma mínima tranquilidade. E os pontos pra fechar os games são brigados até a última passada.

Em um desses momentos de 40 a 40 eu decidi ir dar uma olhada em outro canal. Sim, era um escape preventivo e pra lá de necessário. Medo. Puro medo. Eu já estava em um ponto em que sentia as batidas do coração no pescoço. E eram fortes. Preocupantemente fortes, que só dificultavam o meu esforço em não dar sinais externos alarmantes sobre o meu real estado de saúde.

Assim eu fiz. Só de vez em quando eu ia lá, espiar o canal do jogo, e rapidinho voltava a fugir, apertando o botão do controle remoto. Era só mesmo o tempo de ver o placar e deu. Dali, tornava a só imaginar os pontos sendo jogados e foi indo assim até que, uma hora que eu cliquei de volta, já estavam comemorando a vitória épica do tenista brasileiro. Ufa! Os comentaristas elogiavam a frieza do jogador nos pontos cruciais e davam parabéns, claro, com alguma dose de facécia, aos heroicos espectadores, cujos corações sobreviveram àquela batalha angustiante no saibro francês.

Foi neste instante que eu notei as luzes azuis e vermelhas entrando pelas janelas, piscando alternadamente nas paredes da sala. Cheguei ao parapeito imaginando uma viatura policial, quando me deparei com uma ambulância na porta do condomínio, que já estava com as portas traseiras abertas. Os paramédicos saíam às pressas com seus equipamentos e entravam no bloco da frente, onde já esperavam alguns vizinhos, a liberar o caminho pela portaria adentro.

Passados poucos minutos, saíram todos, igualmente apressados, levando um senhor na maca. Deu pra ver alguns fios atados ao paciente e também um cateter ligado ao que parecia ser um soro, preso em uma haste e mantido no alto por um dos enfermeiros. Todos entraram na ambulância e, ao sair do prédio, foram seguidos por um carro que, no mesmo instante, vencia o portão da garagem.

Eu ainda fiquei na janela por um instante, até me dar conta de que os meus “sintomas” haviam desaparecido por completo. Nem dormência, nem pulsação acelerada, tampouco pensamentos de despedida desse mundo. Um copo d’água bem geladinho e uma relaxada no mesmo sofá aflitivo de antes e tudo estava em ordem outra vez, a ponto de eu calmamente rememorar a cena do senhor há pouco socorrido, e chegar a pensar se, por acaso, ele também tinha sentido os tais sinais de um fim se acercando.

No dia seguinte, assim que passei pelo zelador, ele me disse que o vizinho tinha se sentido mal vendo o jogo do Guga e que ainda bem que foi socorrido a tempo, pois que foi um baita de um infarto.

– Mas ele tinha sentido alguma coisa estranha durante o dia, assim, digo, antes de infartar?

– Nada. Num minuto estava bem e no outro infartou. Disseram que ele estava muito bem vendo o jogo do Guga e depois começou a tremer e a se curvar pro lado. Ah, essas coisas são assim mesmo, a gente não sente nada até a máquina parar – disse o zelador, pondo a mão no coração.

Eu fui saindo em direção ao carro e, no caminho, só pensava que ele não entendia nada de jogo eletrizante, angustiante e que ainda bem que eu tinha sentido todas aquelas coisas desde cedo. Do contrário, insistiria em ver a partida até o final, não teria mudado de canal e, pum, era eu que tinha infartado. Bonito!

Só digo a vocês que essa lição eu aprendi: pelo sim, pelo não, de hoje em diante, quando eu sentir essas dormências estranhas, sinais de que a minha hora está chegando, jamais vou sentar na frente da tevê pra assistir a um jogo de tênis. Jamais!

 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Iridium

 

Desde criança usando óculos, em muitos momentos da vida eu tive orgulho da minha miopia. Me sentia uma pessoa com um dom singular: o de ler coisas que ninguém conseguia. Seja na etiqueta das roupas, as instruções dos aparelhos eletrônicos, recomendações médicas no canto das bulas, tudo era motivo pra eu ler tudo com um sorriso no rosto, depois de ouvir os elogios efusivos que surgiam, fartos de incredulidade.

 Com cinco anos, ao sentar na carteira da sala de aula e perceber que a professora escrevia com giz invisível, me dei conta de que o problema era dos meus olhos e não do giz ou do quadro negro. Comecei então com 1.75 negativo, conforme gostava de dizer meu pai, que era ótico. Para ele, qualquer que fosse o grau, devia vir acompanhado do seu sinal respectivo, de mais ou de menos, para indicar o tipo de lente, sendo o segundo ligado à miopia.

O meu grau era considerado normal para a oftalmologia, mas não para aquela minha idade. Então, depois de dominar devidamente as letras e os números do quadro da escola, visto que eu já sabia ler bem e até fazia contas de dois algarismos, por estudar em casa com minha tia Iracema, eu passei até a me aventurar nas atividades do recreio, jogando bola, correndo o tempo todo, pulando corda e balançando no galho de uma amendoeira enorme que tinha bem no meio do pátio.

 Me lembro nitidamente que uma vez meu pai chegou com dois amigos. Um deles tinha uma caneta tinteiro, linda, que tinha uma ponta que parecia ser de ouro. Nessa extremidade tinha algo escrito que ninguém conseguia ler, de tão pequeno. Quando meu pai entrou estava justamente dizendo pra eles que eu ia conseguir o que ninguém conseguiu, nem mesmo usando uma lupa, e passou a caneta pra mim. Na mesma hora eu tirei os óculos e fui direto por o foco na caneta.

 – Iridium. Aqui está escrito Iridium.

 Enquanto eles riam e meu pai se orgulhava, eu voltava a botar os óculos e, meio sem jeito, recebia os elogios pelo feito recente.

 Ainda na adolescência, em uma das consultas, o médico alertou que o meu grau ia aumentar conforme eu fosse crescendo. Disse isso recomendando que meus pais me levassem pra fazer exames de vista periódicos, pelo menos anuais, pra ir corrigindo e trocando as lentes, conforme necessário. Assim, eu entrei na adolescência com -5.0 e, por volta dos 30 anos, já batia nos -7.5 graus. Quando meu médico indicou a cirurgia pra colocação de lentes intraoculares eu já estava com -12.0 e a lente de contato quase já não adiantava para o olho esquerdo.

 Assim, há cerca de quatro anos eu troquei aquele alto grau negativo, de lentes grossas e incômodas, por um pequeno grau positivo, de +1,50, só pra conforto nas leituras e pra uso ao computador. Um grau pra perto, que, por um lado, é algo que combina com a minha condição provecta, e por outro é uma incrível proeza da ciência, quando implanta, dentro do olho, uma lente flexível, minúscula, que zera o grau das pessoas. Pura façanha do intelecto científico, há que se dizer.

 E foi justamente dessa façanha que adveio o meu drama de consciência nessa manhã insólita. Um pedal de efeitos para violão chegou pelo correio. Abri o pacote e, depois de verificar o conteúdo, dei de cara com o respectivo manual de uso. Fundo vermelho, texto em preto e letras miúdas, muito miúdas. Os desenhos, ok. E, automaticamente, eu me peguei tirando os óculos de perto pra poder ler o manual, imitando o gesto que eu fazia quando tinha aquela potente miopia de outrora. Naquele tempo era só eu tirar os óculos e pronto, o meu olho era uma lente de aumento natural. E agora, digamos que eu tenha um olho normal.

 É claro que eu prefiro esses novos olhos. Nenhuma dúvida quanto a isso. Mas olhando aquele livrinho, tentando decifrar aquelas linhas, cheias de caracteres indecifráveis, me deu uma certa nostalgia de ter aquela capacidade pra ler os manuais, as bulas e o fundo dos equipamentos eletrônicos, que ninguém conseguia ler.

 Não me queixo um minuto sequer de ter usado óculos a vida toda. Graças ao meu pai.

 Joguei muita bola de óculos. Quebrei muitas lentes. Perdi uma quantidade considerável também, quando tirava por ocasião de um mergulho ou lá o que fosse. Na própria amendoeira da escola, foi lá o primeiro que quebrei. E nas quedas de bicicleta, que foram muitas, quase sempre era mais outro que se ia. Enfim, pura nostalgia.

 E na ponta da caneta estava escrito Iridium.

 

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O Barco


De alguma maneira, Pedro já intuía aquele encontro. Então, quando a professora apresentou o novo aluno para a turma e disse o seu nome, Jesus, imediatamente apontou o menino no canto da sala e completou: Aquele é o Pedro.

O povoado ficava no interior do interior pobre do Brasil. As casas eram distantes umas das outras, assim como a escola e o pequeno comércio. Cada casebre tinha sua hortinha e de vez em quando uma feirinha, no centro da cidade, aos pés da igreja, cuidava de promover os escambos e as vendas das mercadorias.

Exímio carpinteiro, Jesus um belo dia estacou no caminho de volta da escola. No meio da trilha ele disse:

– Pedro, me ajuda a construir um barco?

– O quê?

– Um barco. Me ajuda a construir um?

– Nós estamos a 400Km do mar e nem rio perto tem por aqui.

Ancorados naquela pergunta, os dois ficaram ali parados um bom tempo. Em silêncio, olhando em volta, pensando em argumentos cabíveis e desistindo logo depois de cada um deles. Ora um, ora outro chegava a puxar o fôlego. Mas logo soltava o ar, sem dizer uma palavra.

– A sabedoria chega quando não nos serve para nada. Não se pode evitar.

– O que é isso?

– Uma frase.

– Que é uma frase eu sei.

– Achei no meio de um livro. Estava na mesa da professora e ela deixou que eu olhasse. Eu queria só aprender a fazer um barco. As linhas, o casco, trabalhar as madeiras, as vergas. Um barco, oras. Depois a gente vê o que faz com ele.

Pedro não se lembra de ter aceito participar da empreitada, mas não teve um dia em que ele não estivesse ali, ajudando e trabalhando. As poucas pessoas que passavam pelo caminho da casa de Jesus achavam aquilo por demais estranho. Uns davam força, outros ficavam tristes pela natural inutilidade geral do empreendimento.

De qualquer modo, o barco foi durante toda a vida o elo entre os dois amigos. Juntos desde os tempos da escola, a partir de uma certa idade foi o longo trabalho com o barco que os fez estar juntos todo o tempo. E os dois não podiam mais evitar nada daquilo.

As pessoas gostavam de ir visitar Jesus. Em parte, claro, para ver o barco, ali naquele cenário improvável. Alguns diziam que jamais tinham visto um assim, de perto, e ficavam admirados com os detalhes das madeiras e seus encaixes. Mas a verdade é que, o que todo o povoado apreciava mesmo era a prosa que nascia durante essas visitas. Eles ficavam embevecidos com as conversas e as palavras de Jesus, e de Pedro também, enquanto mostravam a obra e explicavam todo o trabalho.

Ninguém sabe ao certo quando o barco ficou pronto. Nem quanto tempo demorou a lida. A dificuldade na precisão tinha vários motivos. As madeiras eram buscadas cada vez mais longe do vilarejo e ninguém acreditava que um dia tudo ficasse pronto em definitivo. Até porque, mesmo depois de tudo dado por acabado pelos dois amigos – e isso é o que se conta por aquelas bandas – eles sempre começavam uma nova pintura da embarcação, como forma de evitar os danos do tempo, da chuva e do sol.

Assim, mesmo não sendo, parecia ser sempre um projeto em construção. O que não incomodava ninguém. Ainda mais agora, na idade em que os dois estão, quando mesmo a tinta branca do pincel já não mancha os cabelos brancos deles, cada vez com mais pingos de tinta.

O impasse, pois, veio recentemente. A equipe da prefeitura trouxe o médico pra atender o seu Jesus, depois de uma visita dos auxiliares de saúde. Ele tinha uma tosse assim assim e depois de um exame idem, iam levá-lo pra capital, só pra um tira-teima de rotina, nada preocupante.

– Pedro, eu não vou fazer exame nenhum. Prefiro sair por esse mundo e ninguém vai me achar. O mar é enorme e médico nenhum vai me ligar naqueles fios todos, que ficam colados na gente e apitam o tempo todo.

E Pedro dava um risinho de lado, escondido de todos, já acostumado com a cultura do povoado de fugir de hospitais e afins, assim como o outro fugia da cruz e seus afins.

As exigências dos médicos só aumentavam e os argumentos eram cada vez mais sérios e urgentes. Até que veio o entregador de moto com a guia que marcava o exame para dali a dois dias. O documento indicava a hora certa que o carro do SUS viria buscá-lo.

Jesus esperou a chegada de Pedro e perguntou:

– Tu me amas?

Pedro deu uma sonora risada que, em seguida, se misturou com sua tosse característica e um menear de cabeça que, de forma alguma, escondia o riso solto.

– Qual é? Só falta dizer que o galo vai cantar três vezes – e deu mais umas boas risadas, agora acompanhada pelo amigo que batia a palma da mão no lado do barco, já gargalhando.

Foi então que, naquela mesma madrugada, Pedro ouviu chamar. Levantou, acendeu o lampião, esfregou os olhos. De novo ouviu o seu nome:

– Pedro!

Segurou a chama acima dos ombros e foi até a porta, quando ouviu mais uma vez o seu nome. Embora não reconhecesse a voz com nitidez, sabia que só podia ser uma pessoa.

Calçou alguma coisa e saiu com o lampião. O dia nascia com uma espada de raios de sol que transpassava as nuvens e trazia a bruma da manhã até o chão, num tom âmbar brilhante, esfumaçando o capinzal.

Alguma coisa estava diferente na casa do amigo e aquilo o assustava. Ele chamou por Jesus, sem resposta. Entrou, procurou nos poucos cômodos da casa, vasculhando os cantos. Chamou de novo já sem vontade, quase que sem voz. Então, abriu as janelas e a claridade ainda tênue do dia também não bastou pra desvendar o que ele ansiava.

Foi até a oficina e depois aos arredores da casa, circundando a construção. Agora ele só lembrava das palavras do amigo: Que o mar é enorme; que ninguém vai me achar. Até que, de súbito, seu coração deu um pulo e ele percebeu que o barco não estava mais lá. Tinha desaparecido.

Sem forças, Pedro caiu de joelhos.

Encolhido no chão sobre as pernas e o cotovelo, deixou-se abraçar pela terra seca. Ficou assim por um tempo desmedido, até que fechou todas as portas e janelas e retornou à sua casa.

Parado na soleira da porta, custava-lhe reconhecer a sua própria habitação. Não tinha sequer a certeza de que entraria.

Nesse momento o galo cantou.




No jornal da tevê o homem lamenta a morte do seu melhor amigo, de nome Jesus. Ao final da matéria, ele diz que escolhe sempre pensar que o amigo, simplesmente, saiu pelos mares, a bordo do barco que construiu durante toda a vida. E finaliza, dizendo ao repórter que prefere pensar assim do que admitir que o grande amigo morreu de Covid, sozinho, num hospital. “Pois isso é muito triste”, disse.

Eu então quis contar essa história de um outro jeito.


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A Quase Moqueca


Com duas longas horas de almoço, quase todo mundo lá do trabalho optava por levar comida ou almoçar em casa, no caso daqueles que moravam perto. Nas duas opções não era o almoço em si, ou a qualidade da comida que ditava a regra, mas sim, a possibilidade sagrada de tirar uma soneca após comer.

Eu não estava acostumado com aquilo, por isso sempre andava bastante nessas duas horas. Pra passar o tempo, normalmente, e também pra conhecer o entorno do Campo Grande, o Pelourinho, o Garcia, o Corredor da Vitória, as padarias, sorveterias e, claro, as lojas de doces.

Dependendo do lado que eu escolhia pra caminhar, muitas vezes acabava almoçando no restaurante do Paes Mendonça, um supermercado de lá. Algumas unidades desse mercado tinham o serviço de prato-feito, nas instalações anexas às lojas principais. A comida era ótima e no alto, acima do caixa, eles colocavam uma tabela com os pratos e os valores. A gente então pagava e ia pra mesa esperar ser servido.

Nos dias muito quentes, quase todos, tinha uma opção que eu adorava, que era o Prato de Verão. Um prato enorme, só com frutas da época e mais duas fatias de queijo, duas de presunto e duas salsichas. Era um almoço refrescante, refazedor. De vez em quando eu tento repetir em casa esse prato. Não fica lá tão farto como o baiano, mas dá pra lembrar do Paes Mendonça e das minhas andanças pelo Centro de Salvador.

Uma outra opção, bem comum e saborosa, era a moqueca. Moqueca de quase tudo que a culinária baiana pode criar, até de ingredientes não muito bem definidos.

Pois bem, um belo dia eu saí do trabalho já pensando em moqueca. O dendê estava no ar de alguma forma, como naqueles desenhos em que o gato ou o cachorro são levados pela nuvem cheirosa da comida, e saem flutuando nessa nuvem, hipnotizados pelo cheiro, até aterrissar em frente à iguaria.

Na fila, comecei a ler o nome dos pratos na tabela do dia e estava lá: Moqueca de Fato, preço tal. Eu olhei pros lados, o pessoal comendo, as monitoras servindo, todos ocupados. Moqueca de quê? – pensei com a mão no queixo, inquirindo a alguém que, para minha sorte, cruzasse o olhar comigo.

Nada. Nenhuma resposta.

Foi chegando a minha vez de pedir e eu comecei a temer pelo meu destino gastronômico.

– Moça, essa moqueca de fato é de quê? – perguntei desconcertado.

– É de fato. Moqueca de fato mesmo.

– Não. Eu sei que é moqueca de verdade, legítima. Mas é feita com o quê?

– Mas é isso. É feita de fato. Sabe o que é fato não?

– Acho que não. Só entendi que é moqueca de fato. Mas não sei ainda o que tem dentro. Do que é feita.

– Vai ali e olha um prato do balcão. Depois volta aqui. Só assim mesmo.

Senti que ela já estava me achando o mais ignorante dos mortais em matéria de moqueca. Ainda mais naquele ambiente típico, eu estava me sentindo meio deslocado. Parecia que todos se conheciam já há muito tempo. Se cumprimentavam, abraçavam, e eu não conhecia ninguém. Ainda por cima não conhecia moqueca. Além disso tudo, havia os versos do Caetano, que definiam que ali todos nós éramos quase pretos, quase brancos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres. Enfim, eu era um quase branco que não sabia o que era a tal moqueca de fato.

Segui o conselho da atendente e, assim que vi a moça no balcão preparando um dos pratos, identifiquei na hora. Com alguma alegria nos olhos, voltei pro caixa certo de resolver o dilema:

– Pronto. A moqueca de fato é de dobradinha. É essa que eu quero.

– Vixe moço, dobradinha é com feijão branco. Não é assim não! – e deu uma risada daquelas com gosto.

Eu tentei dizer alguma coisa, argumentar, sei lá, dizer que gostava muito de dobradinha, mas ela me interrompeu, ainda rindo.

– O rapaz tem um sotaque carioca da porra, quer comer moqueca de fato, mas acha que é dobradinha. É não, moço! Olha, esses cariocas são todos uns artistas, mesmo.

Eu não sei dizer se eu ri com a risada da moça do caixa ou se foi com a situação que ela acabava de explicar e que finalizava dizendo que eu é que tinha sotaque. Pra mim era justamente o contrário, pois eu gostava de ouvir os baianos exatamente por causa do sotaque deles.

No final, entre a moqueca e a dobradinha, chegamos a um acordo quanto a comida, naturalmente tendo as risadas de parte a parte como molho, um molho de dendê – sempre o dendê.

– Então, se a sua dobradinha não tem feijão branco, ela é quase uma dobradinha. Aí tá certo!

– Sim, e a sua moqueca, pra mim, é quase uma moqueca, embora seja de fato, o que eu adoro.

Se fosse um quase brinde, nós nos saudaríamos com um sonoro e alegre quase bater de mãos e, claro, bebendo uma caipirinha de caju. Quase cheinha de gelo.

E certamente diríamos um para o outro:

– Viva Caetano!

– Com certeza!


terça-feira, 31 de agosto de 2021

O Consórcio

 

O chefe do setor de transporte, lá onde eu trabalhava, era o Elias. Mas ele gostava de ser chamado de Rasputin. Não sei se ele conhecia o russo famoso, meio santo, meio bruxo, mas, no seu caso, o apelido era incentivado em razão de um excêntrico lutador de luta livre dos anos 60 e 70, tempo em que aquele duvidoso entretenimento televisivo fazia muito sucesso. Em suma, o cara era forte!

Eu digo entretenimento duvidoso porque estava na cara que ali era tudo ensaiado, armado, combinado e todas as lutas tinham um quê de artificialidade, deixando bem evidente o mocinho e o bandido do dia. O script era sempre o mesmo, similar ao das novelas: para que o mocinho triunfasse no final tinha de apanhar feio até o último assalto, quando então ele ressurgia do mundo dos derrotados para abater o malvado que, eventualmente, desafiava a todos na plateia, sem o menor pudor ou sentido esportivo.

Entrando na minha sala naquele dia, o Elias, ou melhor o Rasputin, cruzou com o sujeito que saía, com quem eu havia feito uma ficha de adesão a um grupo de consórcio de um carro. Tempos difíceis e de inflação alta, o consórcio era uma coisa bem popular e viável pois não tinha praticamente juros e a pessoa ia pagando até que um dia fosse sorteado ou que terminassem as parcelas. Das duas formas o bem era todinho seu.

– Chefia, que bigodinho mais safado o desse cara que saiu daqui. É seu conhecido?

– Conhecido, não. Tô comprando um carro pelo consórcio e a operadora o mandou aqui pra eu assinar uns papéis.

– Ah, tá.

O papo correu solto sobre o consórcio e logo em seguida ele me falou das agendas dos motoristas naquela semana, as vistorias que estavam previstas e das coisas do trabalho em geral.

Algumas semanas depois, quando ele novamente entrou na minha sala, eu estava acabando de fazer uma ligação com o pessoal do consórcio. Algumas coisas estranhas estavam me deixando com a pulga atrás da orelha e eu já começava a me arrepender do tal negócio. Eles não me informavam nada direito, nem em que grupo eu estava, nem quais eram os meus números para o sorteio mensal, eu não tinha sequer matrícula e, no extrato, onde dizia qual era o bem a ser adquirido, o objeto do consórcio, o campo estava em branco.

– Muito sinistro – eu comentei, desanimado, com o Rasputin.

– Chefia, se tu quiser a gente vai lá agora e tira isso tudo a limpo.

– Não, cara. Tranquilo. Não é pra tanto não.

O fato é que aquele consórcio estava com toda a pinta de golpe. Golpe, com todas as letras. E eu não tinha esse dinheiro pra ficar levando volta de quadrilha, que nem sabia enrolar direito os clientes. Quando eu ligava as pessoas não sabiam dar informações, titubeavam em claro sinal de nervosismo e quando passavam pra outros funcionários, de supostos cargos superiores, os caras não sabiam nem falar corretamente, ignorando solenemente plurais, tempos verbais e a grande maioria das concordâncias. Os poucos que vinham tentar me dar informações, assassinavam com vontade a pobre e indefesa língua portuguesa, cada um a seu modo.

Eu então decidi que não ia pagar mais nenhum boleto referente a nenhuma parcela daquele golpe. Agora o plano era pra sair rápido do imbróglio e tentar diminuir ao máximo o prejuízo, que já era grande. Aliás, o leitor há de convir que a palavra imbróglio é perfeita pra expressar o que realmente significa uma furada como essa. O próprio ato de dizer imbróglio já denota, em si, a dificuldade do fato a ele associado. E me perdoem o devaneio incontido.

Peguei tudo o que eu tinha, o contrato, os comprovantes de pagamento, as inscrições no grupo, as referências, tudo mesmo, e fui ao tal endereço do consórcio. As pessoas que antes eu só conhecia dos crimes contra a língua pátria, agora tinham nome e rosto. Me levaram pra uma sala, depois pra outra, tiraram cópias dos meus boletos, em seguida veio um rapaz me cobrar o boleto em atraso e, quando eu expliquei que parei de pagar porque ia cancelar o negócio, ele apenas disse “correto”, pra meu espanto.

Quanto mais mexia, mais eu entendia que estava levando um golpe, solene. Então, quando um dos assessores me levou um documento de destrato, de desistência, me avisou que alguns desses chamados custos de operação, taxas de administração, não seriam devolvidos. Eu até concordei, a princípio, mas aquela conta estava a reter mais do que as tais mencionadas taxas, muito mais. O golpe agora tinha números dolorosos.

Enfim, me deram um cheque com o valor a ser ressarcido – sim, era cheque ainda – e eu deveria ir na agência bancária indicada por eles pra descontar. Uma merreca, considerando o que eu tinha pago. Mas eu não tinha escolha. Era assimilar o golpe, como nas lutas livres, e tentar recuperar, ou golpear em contra-ataque.

No momento em que eu pensava nisso, quem me aparece?

– Fala chefia! Já almoçou? Tô indo ali na dona Déa. Quer almoçar comigo?

– Rasputin, vou te dizer francamente: não estou em condições de almoçar. Não tenho a mínima condição.

– O que aconteceu, chefia? Não vai me dizer que é a parada do consórcio ainda?

Eu nem precisei responder. Enquanto eu balançava a cabeça afirmativamente ele me cortou e sentenciou do jeito dele:

– Chefia, nós vamos voltar lá. E vamos agora. Eu vou contigo resolver isso na justiça. Na minha justiça.

Sem forças pra retrucar, pra retorquir, pra coisa alguma, eu fui andando ao lado do Rasputin, imaginando coisas inimagináveis, mas com o sentimento de que aquelas pessoas mereciam uma lição, aprender a respeitar o próximo, minimamente. Nem que o próximo fosse o Rasputin e a sua verve física de convencimento, se é que podemos dizer assim.

Entramos na recepção na maior calma, eu expliquei que queria falar com o assessor que tinha me atendido há pouco. Fomos pra sala do segundo andar, também na calma, e logo chegou o tal funcionário, explicando tudo de novo. Quando ele terminou o Rasputin começou:

– Olha aqui, meu amigo. Esse cara trabalha comigo há um tempão. Ele é meu chefe. Ele é um cara correto, que não engana ninguém, que não passa ninguém pra trás. Então você vai trazer aqui aquele cara que tem um bigodinho estranho, pois foi ele quem vendeu esse consórcio pra chefia. Você entendeu?

O rapaz iniciou com um quase inaudível “veja bem”, mas foi interrompido pelo tom não muito calmo do Rasputin, que apenas repetiu o mesmo “você entendeu?”, fazendo com que o rapaz saísse apressado da sala.

Um outro funcionário apareceu em seguida e informou que “infelizmente”, ele não estava nas dependências da firma, pois estava em uma reunião fora. Só que nesse exato momento, pra azar dos indivíduos mentirosos, o próprio cara do bigodinho passou no corredor, ao lado da sala, e deu pra ver que era ele pelo vidro da porta de entrada.

Numa fração de segundo, derrubando duas cadeiras na sua passagem pela porta, o Rasputin alcançou o cara do bigodinho, o segurou pelo pescoço e trouxe até a sala, imobilizado e atônito. Depois, sentou o sujeito na cadeira à nossa frente e explicou que agora ele não queria mais conversa e que iria quebrar tudo ali dentro se o assunto não fosse resolvido da maneira correta, como tinha de ser.

– O que é certo é certo. Ninguém vai dar volta em ninguém aqui. Paga tudo direitinho ao meu chefe ou a coisa vai ficar bem ruim pra vocês.

Acabou de falar isso, pegou o telefone da mesa e teclou. Quando atenderam ele disse:

– Sonel? Oi, Sonel, sou eu. Cara eu tô precisando de você aqui. Estou no prédio ao lado da Telerj, na Marechal Floriano. Vem pra cá agora. É no segundo andar, beleza? Isso. Vem pra cá agora.

Não se passaram dez minutos. Eles me pediram que devolvesse o cheque anterior, que haviam me dado, e me trouxeram um outro, com um valor bem maior. Me entregaram um termo de cancelamento de consórcio e pediram desculpas pelo acontecido. Disseram que estranharam o ocorrido pois que a empresa tem boa reputação, é idônea e que os clientes deles estão satisfeitos com os serviços prestados.

O Rasputin foi comigo no banco descontar o cheque e me contou que, quando ele chama o amigo Nelson de Sonel, Nelson ao contrário, é caso de emergência e é pra acudir rápido. Foi o próprio Nelson que me contou que com o irmão Nilson acontece a mesma coisa, ou seja, quando ele o chama por Sonil é porque “o caldo já tá entornando, quente e grosso”.

A gente deu boas risadas no almoço daquele dia. Os três contando a sua versão de toda aquela confusão e lembrando aquele final pitoresco, quando o caixa do banco, que parecia conhecer bem a “idoneidade” da tal empresa, ao ver o código do bem que estava impresso no boleto, me perguntou:

– O que você estava comprando nesse consórcio?

– Um carro. Um carro médio.

– Pois é, esse código aqui é de um trator.

Foi daí em diante que o Rasputin, eu e o Sonel, ficamos fazendo piada durante todo o almoço, conjecturando sobre o uso de um trator no Centro do Rio de Janeiro que, supostamente, eu iria usar todo dia pra ir trabalhar.

– Coitado de quem dissesse “passa por cima”, no meio do engarrafamento – disse o Rasputin, entre uma garfada e outra.