quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A Cacatua


Era uma manhã comum, ensolarada e quente. De repente um pássaro branco entrou no escritório, pousou na janela do segundo andar e ficou ali, como se já conhecesse o ambiente. Olhava pra todo lado, não se assustava com as pessoas que vinham vê-lo e quando foi oferecida uma vasilha com água ele se aproximou e bebeu, definindo a sua domesticidade.
O pássaro era uma cacatua e na citada mesa ao lado da janela trabalhava o meu irmão.  E foi ele o voluntário para conseguir uma gaiola e pra missão de deixar a cacatua em condições de sobrevida até que o seu dono aparecesse pra reclamar a fuga ou a sua ausência, quem sabe tendo uma criança chorosa em alguma casa com saudades do seu bichinho de estimação.
Ele correu na casa da mãe pra ver se tinha sobrado alguma gaiola de canário do pai, mas nada. Então passou numa loja de animais e conseguiu uma emprestada com o dono que, inclusive, ajudou a indicar a comida da cacatua e o modo como tratá-la.
Naquela noite, depois do expediente, meu irmão levou o pássaro devidamente instalado em sua gaiola pra casa da mãe. Lá ele o pendurou na varanda, na mesma varanda onde não faz muito tempo cantavam alguns canários da terra e chanchões do nosso pai.
Quando chegou a sua casa e contou pro João, meu sobrinho de 4 anos, o pequeno quis saber como era a cacatua, as cores, o que comia. O trabalho só ficou mais fácil quando os dois foram olhar na internet as fotos do bicho e as informações sobre ele. Claro que meu irmão avisou ao menino que o dono devia estar procurando pelo pássaro e que devia estar com saudade etc, assim ele ia entender e não ia ficar triste quando a cacatua fosse embora.
De manhã, se aprontando pra ir à escola o João perguntou como ia ser se o dono não fosse buscar o passarinho. E meu irmão respondeu que ainda não tinha pensado nisso, mas que talvez ele pudesse ficar com eles, caso o dono demorasse muito.
– E como é o nome dele? – perguntou o menino.
– Não sei – disse o pai. Se ele for mesmo ficar com a gente, vamos ter que dar um novo nome pra ele. Vai pensando um nome aí e de noite a gente escolhe.
– Não, pai. Eu já sei o nome. O nome dele vai ser Benício Mauro.
Como se fosse uma brincadeira de criança, tipo congela, Mandrake, estátua, tudo e todos pausaram no mesmo instante. De onde aquele guri tirou aquele nome? Pai e mãe se entreolharam, sem entender nada. Perguntaram de onde vinha aquele nome, se o menino conhecia alguém e nada, o menino só dizia que tinha escolhido e pronto, não era o nome de ninguém. Benício Mauro era o nome da cacatua e pronto.
Eu mesmo quando soube do ocorrido pensei logo que era mesmo coisa do João. Sempre surpreendendo a gente. Com a minha mãe não foi diferente. Depois da risada veio a mesma pergunta:
– De onde esse menino tirou esse nome? Benício Mauro não é nada comum. Ele tem cada uma.
O problema é que o pássaro, como já se suspeitava, era um doméstico animal de gaiola, perfeitamente adaptado ao ambiente de uma casa e por isso, lá pelas 5 da manhã começava o seu dia naturalmente, piando alto e bem forte. Para quem conhece o canto do periquito, atesto que é algo muito mais alto.
Às 5h da manhã não há bom humor que resista. E minha mãe já foi logo avisando que o bicho era muito barulhento. Bonitinho e tal, mas a incompatibilidade dos horários os afastava definitivamente no campo das espécies, como, aliás, a sábia natureza já havia separado biologicamente os psitacídeos dos hominídeos.
Enfim, dado o impasse, meu irmão também declinou da ideia fértil de ter de conviver com uma cacatua aos berros em pleno domingão, às 5 da madrugada. Impasse maior ainda veio célere no próximo pensamento, que incluía o que fazer com o bicho, como encontrar quem quisesse ficar com o tal animal barulhento, ou mesmo a necessidade de identificar na multidão um notívago e ornitófilo contumaz.
Naquela mesma tarde surgiu o seu Carlos. Motorista de van, um sujeito calmo e paciente, de meia idade e casado. Contou que sua mulher estava triste, pois havia perdido o casal de periquitos que tanto amava. Desde então, cerca de seis meses, o grande viveiro de pássaros estava vazio. Ele foi à casa da minha mãe conhecer a cacatua e foi paixão à primeira vista. O homem só falava na alegria que seria a esposa vendo-o chegar em casa com o pássaro.
Quando ele já ia indo embora com a gaiola na mão e um baita sorriso no rosto, virou-se e perguntou se a cacatua tinha nome. E todos responderam:
– Benício Mauro. O senhor vai levar o pássaro, mas o nome dele não pode mudar. Meu neto já batizou e ele se chama Benício Mauro.
Minha mãe ainda conta que, quando chegou em casa, o seu Carlos ligou pra ela, todo sem jeito:
– A senhora me desculpe, mas eu tô ligando pra saber como é mesmo o nome do pássaro, que eu esqueci. Agora estou aqui com uma caneta e vou anotar direitinho. Minha esposa adorou o bicho e a gente vai mandar fazer uma placa com o nome dele pra botar no viveiro. Ele ficou lindo lá dentro e tem muito espaço pra ele.
– Então anota aí: o nome dele é Benício Mauro – disse a avó.
– Veja só, Benício Mauro. Isso mesmo. Que curioso. De onde o seu neto tirou esse nome, né?
– É verdade seu Carlos. Isso a gente também se pergunta até hoje. Um abraço seu Carlos – e desligou rindo.


quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A Raquete (por André Loureiro)


Quando me mudei para Tijuca, no ano 2000, fui morar na rua do clube do bairro, que como o próprio nome já diz, é um clube dedicado ao tênis. Nesse mesmo ano, meu pai foi morar em Florianópolis, cidade natal do Guga, maior tenista brasileiro, e que à época estava no auge de sua carreira. Inevitavelmente, por esses motivos, comecei a conhecer e gostar do esporte.
Eu que sempre joguei futebol pelo subúrbio do Rio, resolvi me arriscar de verdade e aprender a jogar tênis. Fiz aulas no clube durante um bom tempo, e sempre que visitava meu pai, dava um jeito de fazer caber uma raquete na mala, e jogava por lá também, quase todos os dias.
Os problemas do tênis, na minha opinião, são dois. Primeiro: diferente do futebol, não é um esporte que se aprende sozinho. Dificilmente alguém consegue jogar relativamente bem sem fazer aulas. E segundo: é um esporte caro. As aulas são caras, uma raquete razoável é cara, manutenção de cordas, calçado especial pra jogar, tudo é bem caro. Logo que comecei nas aulas, tive que negociar uma raquete com a minha mãe. Comprei uma vermelha e branca, bem bonita, que não era tão cara, nem tão boa, mas me atendia muito bem. Apesar de não ser uma raquete top de linha, sempre tentei cuidar bem dela e consegui que ela durasse alguns longos anos.
Enquanto aprendia um pouco do esporte, e vendo no clube, e na TV alguns jogos, descobri que alguns jogadores, profissionais ou de finais de semana, tinham o estranho (pra dizer o mínimo) hábito de descontar suas frustrações pelas jogadas mal executadas nas próprias raquetes. Era um tal de jogar raquete no chão, na grade no fundo da quadra, bater com a raquete na rede. No calor do jogo, valia tudo pra descontar a raiva. Cansei de ver cenas desse tipo.
Em Floripa, meu pai também vinha jogando nos finais de semana, e fazendo novas amizades nas quadras, para garantir a partida na semana seguinte. Um dos amigos que meu pai fez através do tênis, chama-se Diogo. Nascido no interior do Paraná, numa cidade chamada Pato Branco, é um cara gente boa até dizer chega. Bem educado, de uma família tradicional com boa condição financeira, conversa bem sobre qualquer assunto e é muito tranquilo, calmo com as palavras. Estudou cinema na Universidade Federal de Santa Catarina e toca violino. O rapaz é nesse nível.
O Diogo deve ser uns 7, 8 anos mais velho que eu. E como tínhamos um nível parecido no tênis passamos a jogar, quase sempre, nós três, quando eu estava por lá. Devido a nossa habilidade limitada no esporte, mesmo depois de muitas aulas, a maioria das jogadas não saíam como nós planejávamos. E no tênis, não dá pra apontar pro lado e dizer que a culpa foi do zagueiro que fez gol contra, ou do atacante que chutou pra fora. A culpa é sua mesmo, não tem muito jeito.
Eu e meu pai errávamos tanto ou mais que o Diogo, mas a gente se “auto-xingava” repetidas vezes, repensava sobre nossa própria existência no universo, mas ficava por isso mesmo. Dávamos até uma limpadinha na raquete pra ela se sentir melhor para a próxima jogava. Mas o Diogo, quando errava, ficava furioso! O cara se transformava de um pacato cidadão cineasta e violinista num potencial serial killer em poucos segundos! Proclamava os mesmos palavrões que nós, com seu sotaque característico do interior paranaense, mas vez ou outra sobrava para a pobre raquete. E claro, a coitada não resistia a muitos momentos de fúria.
Acho que, pelo menos umas três raquetes eu vi, ou meu pai me contou, que foram destruídas pelo ímpeto de frustração dele. Mas a última raquete que ele quebrou eu lembro bem. Eu tinha uns 16 anos. Estávamos jogando nas quadras da Universidade Federal de Santa Catarina, que eram abertas ao público. Quem quisesse, era só chegar e aguardar a vez para jogar. Num dos milhares de erros que cometíamos, ele lançou a raquete com toda a força contra o alambrado que ficava no fundo da quadra. Mas por azar dele, a raquete atingiu exatamente a parte de ferro, que ficava na vertical, e sustentava o alambrado. Pronto, a raquete quebrou na hora. Bem no encaixe do cabo com a parte das cordas. Quebrou de um lado do cabo e ficou pendurada pelo que ainda restava do outro lado.
Logo depois de se dar conta do que tinha feito, o Diogo já se arrependeu e começou a reclamar consigo mesmo. Disse que não queria quebrar, que jogou para atingir o alambrado, que amorteceria o impacto. Mas não teve jeito, o estrago já estava feito. Vendo que nada podia ser feito, jogou o que sobrou da raquete numa lata de lixo, daquelas grandes que ficavam ao lado da quadra. Ainda joguei um pouco com meu pai neste dia, mas logo fomos embora para nos solidarizarmos com nosso amigo que ficou sem raquete.
Alguns dias se passaram, e durante a semana seguinte o Diogo conseguiu comprar outra raquete. Amarela e preta, idêntica a que ele tinha quebrado. Ligou pra gente e quis logo marcar uma partida no sábado seguinte para estrear a nova raquete que ele dizia que nunca quebraria, nem jogaria no alambrado. Mesmo que fosse só na parte que amorteceria a queda!
Mas, ao chegarmos na universidade, no sábado seguinte, cada um com sua raquete, mais uma vez, a vida nos dá um daqueles tapas na cara que, esses sim, nos fazem repensar o sentido na nossa existência e no limite da nossa idiotice. Ao todo, são umas quatro quadras que ficam lado a lado, e que estão quase sempre cheias. De longe vimos que todas estavam ocupadas, e nos aproximamos para aguardarmos a vez em uma delas.
Chegando mais perto, a cena que vimos foram dois moleques, com uns 10, 12 anos, provavelmente da comunidade que fica perto da universidade jogando em uma das quadras. Um deles com uma raquete já bem surrada, descascando, com as cordas em péssimo estado, e o outro com uma raquete amarela e preta cheia de fita adesiva amarrando o cabo quebrado à parte das cordas. Eles jogavam felizes da vida.
Olhamos um pra cara do outro, o aperto no peito atingiu nós três igualmente, e o Diogo se deu conta de que, o que era descartável pra ele, era a única (e melhor) opção para aqueles garotos. Ele realmente sentiu o baque naquele momento.
Nem sei como foi o nosso jogo naquele dia, mas sei que a lição serviu para todos nós. Não só no tênis, mas para a vida. Cuidemos das nossas “raquetes”. Muita gente sonha com elas.


terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Caminhão


Minha casa sempre vivia cheia de gente. Funcionava como uma espécie de ponto de encontro para os amigos, os vizinhos, familiares e agregados. Era também um lugar aonde as pessoas iam apenas conversar, falar de si, trocar ideias, passar o tempo enfim.
Meu pai nunca foi um sujeito letrado. Sua pouca sabedoria vinha da vida, das suas experiências. Muitas delas na verdade eram até fracassos e os fracassos, às vezes, são bem doloridos, mas como ensinam.
Mesmo assim os amigos sempre se aconselhavam com ele, sempre gostavam de ouvir o que ele tinha a dizer. Me lembro que uma vez um desses amigos foi demitido e foi lá conversar com meu pai. Eu era pequeno, não sabia direito o que estava acontecendo, mas lembro que ele tentava confortar o amigo e a força das suas palavras era mesmo fruto daquilo que ele vivenciava.
- A gente leva uma vida com tanta dificuldade. Anda daqui pra ali procurando fazer as escolhas certas, ser correto com todo mundo. Uma hora alguém ajuda a gente – disse meu pai.
E ao ouvir isso o amigo logo lembrou de um primo seu que tinha uma loja de autopeças, em São Cristóvão, e já se animou a telefonar pra ele no dia seguinte pra ver se tinha uma vaga lá. Animou também o meu pai que dizia que ele ia conseguir sim, pois que era só o caso de levantar a cabeça.
Passaram-se alguns dias e um caminhão entrou pela nossa rua levando, e arrebentando, todos os fios que cruzavam a avenida de um poste ao outro. A confusão foi armada de imediato e o acidente tinha acabado de acontecer no momento em que eu chegava da escola. Era mesmo um caminhão imenso, alto e longo, que eu contei 18 rodas.
Todo mundo saiu pra rua, esbravejando com o motorista. Os fios de eletricidade e de telefone estavam embolados no chão e as pessoas falavam todas ao mesmo tempo, culpando sempre o motorista em variados graus de intransigência. Alguém disse inclusive que já tinha chamado a polícia e que ele iria ser preso até que os fios fossem emendados.
Era tanta gente falando junto que o motorista, tentando apaziguar, só repetia que ia pagar tudo e que as pessoas se acalmassem porque ele não queria ter feito aquilo. Na verdade ele deveria ter pego uma outra rua e, como se perdeu, procurava um retorno pra seguir o caminho certo, daí que entrou na nossa pequena rua e deu no que deu.
Quando a polícia chegou foi logo dizendo que só podia aplicar uma multa mesmo e que não era o caso de apreensão, nem do veículo, nem do motorista. Disse o guarda que a concessionária é que deveria depois mandar a conta pra empresa ressarcir o prejuízo com os fios. Dada a sentença final, as pessoas foram retornando aos poucos pras suas casas, mas a raiva pelo motorista ainda era grande.
Notei que meu pai ainda ficou conversando ali por perto com um grupo, ajudou a enrolar o fio junto ao poste pra que fosse mais fácil emendar no dia seguinte e eu fui pra casa me dando conta de que aquilo tinha durado a tarde toda e já estava até anoitecendo.
Dali a pouco entra em casa o meu pai trazendo com ele o motorista do caminhão. Apresentou a minha mãe, depois eu e meus irmãos, mostrou toda a casa e depois anunciou, num tom mais alto, que ia perguntar à dona da casa se ela permitia que ele jantasse com a gente. Minha mãe só sorriu, como se já estivesse esperando por algo do gênero.
Na verdade, como minha mãe trabalhava fora, o jantar lá em casa era preparado de modo a sobrar pro almoço do dia seguinte. Aí a gente chegava da escola e só esquentava. Nesse dia o menu era carne seca com abóbora e, claro, ela já sabia que não sobraria nadinha pro dia seguinte.
O motorista tomou banho lá em casa, trocou de roupa e quando a gente ia se sentar à mesa ele disse que ia até o caminhão buscar uma coisa. Quando voltou tinha na mão um belo cacho de banana d’água e um potente lampião já aceso. As velas espalhadas pela sala foram então apagadas e aquele lampião no centro da nossa mesa de jantar é uma das cenas mais legais de que me lembro até hoje.
Comemos ouvindo divertidas histórias de estradas que o motorista contava com detalhes. Para mim, que era uma criança, aquela vida era demais de boa. Cada dia em um lugar e com todas aquelas aventuras e façanhas, qual o menino não queria ser caminhoneiro também?
No dia seguinte, bem cedo, meu pai foi até o caminhão onde o motorista tinha dormido pra se despedir, conforme tinham combinado. Quando eu acordei dei de cara com a maior penca de bananas que eu já tinha visto. Estava pendurada por um gancho na grade da janela e pesava um bocado. Meu pai contou que o motorista tinha deixado “para as crianças”, como ele disse.
Naquele dia não se falou em outra coisa, tanto na rua como dentro de casa. De tardinha, quando um vizinho soube que meu pai tinha dado guarida ao motorista odiado por todos, veio até em casa. E meu pai com toda a calma tratou de explicar, com um argumento que me pareceu bem familiar:
- Eles, os motoristas, levam uma vida com tanta dificuldade. Andam daqui pra ali procurando fazer as escolhas certas, ser correto com todo mundo. Uma hora alguém precisa ajudar eles.
E eu sabia que já tinha ouvido aquilo.


quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O Biscoito de Chocolate (por André Loureiro)


Infelizmente nós cariocas, brasileiros, convivemos com diversos mundos no nosso próprio mundo. E eu sempre fiz questão de reparar muito bem em cada um deles. No percurso cotidiano de casa - trabalho/escola/faculdade - casa, criamos um automatismo que nos impede que enxerguemos as coisas como elas são de verdade. Muita gente faz questão de não enxergar, se sente mal. Mas o fato é que todos nós convivemos com o abismo social que nosso país vive há décadas e com a cruel realidade que se apresenta para muitas pessoas que encontramos diariamente. Encontramos, mas não vemos.
Depois que fiz 18 anos e comecei a dirigir, inevitavelmente era abordado em inúmeros sinais por pessoas pedindo dinheiro e vendendo de tudo, várias e várias vezes. Alguns até eu já conhecia por fazer o mesmo percurso todos os dias e eles estarem sempre lá. E uma regra que eu tenho para vida e que já intrigou muitas pessoas que andam comigo, de carro ou a pé, é que eu sempre paro para ouvir o que as pessoas dizem. Sempre. Não importa se é pra pedir dinheiro ou pra responder pesquisa de mercado. Eu paro e ouço o que eles têm a dizer. Não custa nada. Na pior das hipóteses eu tinha que dizer: “Não, não posso ajudar”. Nem sempre posso ajudar, mas acho que para quem é quase invisível para a maioria das pessoas, parar e ouvir já significa muito.
Já ouvi de tudo. TUDO mesmo. Desde gente que queria dinheiro para uma refeição, que estava sem dinheiro pra voltar pra casa, que precisava de doações de diversos tipos, gente que precisava comprar remédios para alguém da família, ou que veio para o Rio com uma promessa de emprego que não deu certo e se viu sem dinheiro para voltar para sua cidade, gente que precisava comprar itens de higiene para conseguir um emprego. Tudo isso eu já ouvi pelas ruas dessa cidade. Lembro do rosto de muitos deles. E é engraçado porque inevitavelmente eu tento ajudar, e geralmente quando tem alguém comigo fica meio chocado desde o momento que eu paro para ouvir.
Mas voltando aos sinais de trânsito. Em meio a tudo que se vende, algumas coisas eu comprava porque pensava que poderia ser útil um dia, como um cheirinho pro carro, uns panos de chão pra casa, um guarda-chuva, essas coisas. Mas a grande maioria eu comprava mesmo pra ajudar. Torcendo pra aquele dinheiro ser realmente usado em uma boa causa.
Sempre tive na cabeça que a diferença entre quem está sentado nos bancos do motorista e quem corre entre as motos distribuindo balas sobre os retrovisores não é, na grande maioria das vezes, absolutamente nada além do acaso. Acaso de ter nascido aqui e não acolá.
Comprava umas balas, algumas poucas eu gostava, mas quase nunca abria o pacote, e guardava no porta-luvas, fechado mesmo.
No dia que vendi meu carro, estava com a minha mãe na garagem dando uma geral por dentro pra entregar pra moça que tinha comprado. Minha mãe foi abrir o porta-luvas e encontrou algumas (várias) balas, amendoins e tudo mais. Começou a rir porque já tinha presenciado os momentos das compras algumas vezes e perguntou se podia jogar fora.
Um tempo depois descobri com a minha mãe que uma amiga dela passou a não mais dar dinheiro nos sinais, por temer como ele seria utilizado. Ela passou, então, a andar com biscoitos no carro e entregar para alguma criança que a abordasse nos sinais vendendo coisas ou pedindo dinheiro apenas. Descobri também, que minha mãe tinha aderido a essa estratégia, e que estava andando sempre com um biscoito no carro para essas situações.
Um tempo se passou, eu já tinha esquecido completamente da tal estratégia do biscoito, e peguei o carro da minha mãe para ir a algum lugar. Poucos minutos depois de sair de casa, parei no sinal na Avenida Maracanã, próximo ao shopping. Olhei pro lado, tinham umas quatro ou cinco crianças, na faixa de 8 a 12 anos. Todas elas com algo em mãos para vender. No segundo seguinte que olhei pra elas, lembrei do biscoito e abri o porta-luvas em velocidade recorde. Lá estava ele! Um Chocolícia! Pensei: “Minha mãe mandou bem nessa!”.
Peguei o biscoito e deixei no colo escondido. Preparei o texto na minha cabeça e esperei até um deles vir até mim. Ele vendia bananadas, que eu odeio tanto quanto amendoim, mas que já tinha comprado também em outras oportunidades. Ambos. É incrível como em poucos segundos, se a gente observar bem, acontecem coisas surreais.
Olhando bem cabisbaixo, e aparentemente cansado já, ele perguntou:
- Bananada, tio?
Eu animei a voz:
- Fala flamenguista! Beleza? Aqui, me responde uma coisa: Gosta de biscoito de chocolate?
Nessa hora, ele me olhou nos olhos com o olhar mais desconfiado que eu já vi na vida, digno de quem vive aquela vida, e não respondeu nada. Nada. Provavelmente pensou que eu faria alguma brincadeira idiota de mau gosto ou algo do tipo. Eu percebi claramente isso, sorri um pouco e perguntei com ânimo novamente:
- Pode falar cara, gosta de biscoito de chocolate ou não?
Um pouco mais confortável ele, ainda olhando nos meus olhos, só balançou a cabeça respondendo que sim. Peguei o biscoito e entreguei dizendo que era pra ele. Aí, é nessas horas que a mágica acontece.
Ele, muito tímido e sem jeito, pegou o biscoito da minha mão com um sorriso lindo, o sorriso mais inacreditável que eu já vi na vida, sorriso que uma criança de 8, 10 anos DEVE ter, e disse:
- Obrigado, tio!
Com o biscoito na mão, parou de vender as bananadas e correu pra calçada chamando todos os amigos. Antes mesmo do sinal abrir o pacote já estava aberto e cada um estava com um biscoito na mão.
Observei tudo até começarem as buzinas. Andei uns cem metros ainda tentando enxergar alguma coisa pelo retrovisor e parei o carro no primeiro lugar possível que eu vi.
Chorei tudo que tinha que chorar, por longos minutos.
Fiquei pensando no incrível poder daquele simples biscoito de chocolate, capaz de mudar em segundos a expressão, marcada pela angústia do dia a dia, daquele moleque.
E era só um pacote de biscoitos de chocolate. Eu juro!


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Seu Fonseca


Naquela sexta-feira, depois que os jornais da noite anunciaram a virada no clima, o vento forte e a chuva, ninguém ousou sair de casa. Na vizinhança as pessoas assustadas olhavam pela janela aproveitando o pouco tempo no claro, já que logo a luz ia acabar, deixando que os flashes dos raios dominassem a paisagem pelo resto da madrugada.
Os sons da tempestade se misturavam com os das árvores, que a cada raio pareciam deitar-se vencidas. Foi difícil dormir naquela longa noite de barulhos incômodos e luzes fantasmagóricas.
Na manhã seguinte, assim que a casa acordou, demos de cara com o Seu Fonseca arrumando o que sobrou da sua pequena horta. Seu Fonseca era o vizinho do lado, um senhor português de uns 70 anos e muito amigo do meu sogro. Um verdadeiro sábio das plantas, morava com a esposa e todos que passavam na rua olhavam por cima do muro para admirar aquele jardim lindo, as plantas, as árvores e, claro, a horta.
Logo depois que o Daniel nasceu, quase todo dia ele nos dava um legume por cima do muro que dividia as casas. Dizia que era para a sopa do menino e eu juro que lembro até hoje da sua voz e das suas pausas sorridentes quando dizia isso pra mim. Às vezes era uma folha, uma batata doce, uma couve-flor, uma berinjela. Às vezes era uma fruta, banana, manga, maçã e claro, mesmo que não fosse da sua horta, o que era raro, a frase era sempre a mesma.
Nesta manhã pós-vendaval, enquanto ele arrumava o estrago do seu lado, a gente percebeu que a nossa goiabeira havia sido arrancada do chão com raiz e tudo e que, além disso, estava quebrada bem no meio do tronco, sendo que este só não se partiu por completo porque a árvore foi escorada pelo muro lateral da vila que tinha do outro lado do quintal.
Assim que deu uma ordem do seu lado Seu Fonseca veio ver a goiabeira. Olhou daqui, de lá, podou algumas partes e depois voltou à casa para, dali a pouco, retornar cheio de ferramentas na mão. A gente se perguntava se não seria trabalho em vão, dado o estado da goiabeira, e a dúvida era o que ele afinal estava pensando em fazer com a árvore. Se ele iria tirar do caminho ou cortar em pedaços pra poder jogar fora, enfim.
Nisso, eu fui ao mercado com a minha lista típica dos sábados. A árvore não saía da cabeça e acho que por isso eu corri tanto pra voltar logo. Quando entrei com o carro pelo quintal tomei um susto. A goiabeira estava de pé de novo. Ele tinha botado um ferro sustentando a parte de cima, que tinha caído, e a parte de baixo estava de novo dentro da terra, replantada.
Nem tirei as compras do carro. Fui logo olhar aquilo de perto, enquanto ele ainda terminava o trabalho. E de perto aquilo parecia um milagre. Inexplicável como tal, eu olhava e não entendia o que via. De alguma maneira a árvore estava de pé, um pouco torta do meio pra cima é verdade, com as folhas todas viradas pra baixo, mas os ferros na base acalmavam a sensação de uma nova queda.
As folhas, por sinal, caíram todas em poucos dias. A árvore ficou pelada e só sobraram os galhos secos. A gente deu o caso por perdido, ficamos tristes, claro, mas o Seu Fonseca repetia que era assim mesmo e ao ouvir isso a gente torcia o nariz escondido dele.
Em pouco tempo ele arrumou por completo a sua horta e seus jardins; também recomeçou a nos passar as coisas pra sopa do menino e numa certa manhã ao me cumprimentar pelo muro ele disse:
- Já vistes as folhas novas?
De pronto eu me virei pra goiabeira. Fui até lá, peguei nas pequenas folhinhas verdinhas de tão novas e uma emoção que eu desconhecia veio com tudo. Do lado de lá do muro, o Seu Fonseca, achando a coisa mais natural do mundo, apenas apertava os lábios e fitava a árvore de cima a baixo.
Um tempo depois, já toda coberta de folhas, com todos os galhos virados pra cima buscando o sol, a gente deu de cara com umas pequenas goiabinhas e dessa vez fomos nós que perguntamos pro Seu Fonseca se ele já tinha visto e o trouxemos pra ver de perto.
Toda vez que tento contar esta história do Seu Fonseca com a nossa goiabeira, aquela mesma emoção me toma por completo.
Muitos anos depois, quando revi a goiabeira, enquanto eu lembrava de tudo o que aconteceu, passava a mão pelo tronco no local onde ficou a marca deixada pelos ferros de sustentação, como se aquela marca fosse a prova de que tudo existiu mesmo, que tudo foi real e mágico ao mesmo tempo.
E quando soube da morte daquele amigo e admirável homem das plantas, eu escrevi um pequeno agradecimento a ele, que no final diz assim:
“Seu Fonseca, minha oração é agora, mais do que nunca, um pedido a Deus para que o acolha bem. Entre as plantas, entre os frutos, entre as nuvens. Muito acima de nós. Muito além do jardim. Obrigado por salvar a nossa árvore”. Que assim seja.


segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A Passagem Duplicada


Muitas vezes fiz o trajeto São Paulo – Florianópolis de ônibus. Eu saía de Sampa de noite, por volta das dez da noite e chegava na Ilha na manhã do dia seguinte. Os ônibus eram ótimos e eu dormia sem problemas toda a viagem.
Uma dessas idas eu entrei no ônibus e vi que a minha poltrona estava ocupada. O sujeito percebeu e ficou logo incomodado com isso, me mostrando o seu ticket que era exatamente igual ao meu. Diante do impasse eu chamei o despachante, o funcionário da empresa que vistoriava as passagens e também as bagagens. O homem entrou no ônibus atrás de mim e pediu os comprovantes pra poder comparar alguns detalhes. Na subida ele comentou comigo que, na sua vasta experiência, certamente algo podia estar errado mas certamente a culpa não seria da empresa e sim um descuido dos próprios passageiros quanto à data ou horário de saída das linhas.
Olhou as duas passagens iguais, sacudiu a cabeça e disse que algo raro tinha acontecido pois as mesmas tinham sido adquiridas no mesmo exato momento, segundo e tudo, e o sistema não tinha acusado a duplicidade, aceitando emitir as duas no mesmo assento.
Quando ele deu por comprovado o erro do sistema, que nos dias de hoje é o culpado de tudo, sempre que as falhas não são imputáveis a alguém, o outro passageiro foi logo levantando e falando alto, com o dedo em riste para o pobre do fiscal da empresa:
- Eu não quero saber se tem erro, quem é o culpado, nada. Só digo que deste lugar eu não saio e vocês que se virem com esse problema. Eu não saio deste lugar e pronto.
Com certo espanto, meu e do fiscal, todo mundo ali passou a perceber mais claramente o que estava acontecendo. O despachante então pegou o meu bilhete e saiu do ônibus, com uma caneta na mão anotando alguma coisa no verso. Nisso o motorista veio até mim e perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim e novamente o sujeito inquieto se apressou em dizer que dali não sairia e que era um absurdo aquele erro. O motorista franziu a testa sem dizer nada e fez sinal pra mim com as mãos espalmadas, pedindo calma e alertando que tudo seria resolvido da melhor forma.
O despachante então voltou e me perguntou, meio sem jeito, se eu poderia viajar no ônibus seguinte, pois naquele já não havia mesmo lugar vago. Eu aceitei enquanto ouvia, constrangido, as frases repetidas, com os inúmeros pedidos de desculpas de todos os modos, que aqueles funcionários já sabiam de cor e salteado.
De repente um outro fiscal subiu correndo as escadas dizendo que tinha visto no sistema uma desistência de um passageiro e que a vaga surgida era na parte de baixo, onde ficavam os assentos leitos, que tinham travesseiro, cobertor, água e café, mas que a empresa não iria me cobrar a diferença do preço, me fazendo esta cortesia pela minha boa vontade em colaborar para resolver o problema do bilhete em duplicidade.
Neste momento o sujeito com o bilhete igual ao meu se levantou e disse:
- Mas isso não está certo. Se ele tem direito a esta cortesia eu também quero ir de leito, pois isto não é justo se a passagem dele é igual à minha.
Na mesma hora um ser humano, dotado de músculos avantajados e algum cérebro prático se levantou e avisou com a sua voz de trovão:
- Tem direito porra nenhuma. Tu vai ficar quietinho aí e calado. Já arrumou barraco demais e agora a gente vai viajar pianinho, tá certo? O rapaz (eu) vai lá pro leito dele e tu vai ficar aí com a tua poltrona que tu não queria abrir mão de jeito nenhum. E se duvidar eu venho sentar do seu lado pra tu deixar de ser babaca.
Eu juro, surgiram alguns inícios de aplausos e assobios lá no fundo do ônibus. Juro que não foi o meu cérebro vibrando e dando socos no ar. Juro que foi real mesmo aquela manifestação, embora pouca e tímida.
Por fim, o fiscal me pegou pelo braço, me ajudou com a mochila e me levou passo a passo até a minha poltrona. Poltrona não, cama! E eu viajei como um bebê, agradecido ao fortão que ajudou a convencer o nervosinho que os seus direitos tinham algum limite. E ele entendeu, rapidinho. Nada como um diálogo convincente e eficiente!


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Doença da Curva


Nem sempre as mães que trabalham fora têm um esquema infalível de cuidados com o filho pequeno. A minha amiga Angélica, que trabalhava na mesma empresa que eu, tinha uma auxiliar muito competente, misto de faxineira e cozinheira, a dona Rosa, que cuidava do menino Carlos e era sempre ela que levava o Cacá pro colégio.
Um dia, como era de praxe, o telefone tocou e a Angélica atendeu já esperando apenas o mesmo “tudo Ok” de sempre, que era o indicativo de que tudo estava normal e que o Cacá tinha ficado no colégio certinho, sem qualquer problema.
Só que naquele dia dona Rosa disse:
- O Cacá falou que não pode ir à escola, pois não está se sentindo bem. Disse que está com a doença da curva e está muito estranho, dona Angélica.
A mãe, imediatamente ficou nervosa e anunciou que estava indo pra casa. Nós, seus colegas, que ouvimos a conversa, quando ela repetiu a tal doença da curva, ficamos um tanto apreensivos. Ela mesma falou em algo como labirintite, que podia ser uma tonteira ou até coisas mais graves, neurológicas, que dão em crianças etc.
Demos todo o apoio pra que ela fosse até a sua casa e dissemos que ficasse tranquila, pois a gente segurava o serviço e tal. Para não preocupá-la ainda mais, só depois que ela saiu é que a gente passou a analisar a possibilidade de ser mesmo algo grave, que poderia ser até meningite, que é uma doença que vai e vem em surtos assustadores e periódicos no Brasil.
Todo mundo no escritório, quando soube do ocorrido, ficou preocupado, naturalmente, e de vez em quando um novo colega entrava no gabinete perguntando se já tínhamos alguma notícia do Cacá. Essas perguntas, insistentes, só aumentavam a nossa aflição e como naquele tempo não havia celular, a cada ligação que um atendia todos os demais ficavam em volta pra saber se era a Angélica.
Dali a umas duas horas entrou a Angélica esbaforida pela porta do escritório. Sem fôlego e com as mãos espalmadas pedindo que esperássemos, ela explicou:
- Aquele guri ainda me mata! Aonde já se viu? Era só um torcicolo que ele tinha, aquele safado. Aí, de pescoço duro, disse pra coitada da Rosa que estava com a tal doença da curva.
- Mas de onde ele tirou esse nome? Que raio de doença da curva é essa? – perguntamos todos quase juntos.
- Ele é um sacana. Como o caminho da escola é só seguir a rua e virar no final do quarteirão, ele disse que não poderia ir à escola porque não ia conseguir fazer aquela curva. Daí ele chamar de doença da curva, a doença que a pessoa não consegue fazer a curva. E eu aqui achando que era labirintite! Esse menino é muito liso. Eu pego ele.
A partir daí a gente só queria mesmo era se divertir com a história. Depois de todo aquele susto era hora de saber mais dos detalhes pra poder rir da coitada da Angélica.
- E como ele estava quando você chegou em casa? – instigamos.
- Vendo televisão! Disse que desenho ele podia ver porque não precisava virar o pescoço, mas ir à escola, não. Enfim, quando eu percebi que era malandragem dele dei uns três ou quatro gritos, uns dois tapas e pegamos a mochila pra ir pra escola na hora. Antes de sairmos passei uma pomada nele, um anestésico muscular, desses comuns, e pronto.
- E ele?
- Ah, comigo ele fez a curva direitinho! Quando chegamos no portão da escola ainda me perguntou se eu tinha botado o short azul e a camisa do Brasil na mochila. Eu disse que sim e ele, meio rindo, falou que era porque ia ter jogo de futebol no final da aula. Safado esse moleque! Ainda me mata de susto!
A gente passou aquele dia todo, e os outros também, contando a história do Cacá 171 e a sua doença da curva que deixou a mãe doida. O fato fez história na empresa. Quando alguém do escritório queria dar alguma desculpa pra recusar algum trabalho chato, dizia logo que estava com a doença da curva. E todos caíam na risada.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

O Suco


A lanchonete ficava na Rua México, perto do meu trabalho, no Centro do Rio de Janeiro, e era especializada em sucos e em montagem de sanduíches. Era assim: a pessoa escolhia o recheio, as pastas, os frios, a salada e o tipo de pão e pronto, estava lá o sanduba do jeitinho que o cliente queria.
O suco também era servido do mesmo jeito. A gente escolhia as frutas, misturava até três delas da maneira que quisesse e indicava o açúcar - mascavo, comum ou adoçante - e também se era batido como yogurte etc. A loja era uma beleza e tinha sempre fila nos horários da tarde.
Preciso relatar aqui que, prudentemente, para o bem dos caros leitores, vou omitir as combinações que eu mais gostava, tanto no que diz respeito à bebida como aos sanduíches, nos quais, saborosamente poderiam ser incluídos componentes doces como passas e outros menos, digamos, ortodoxos.
Então, uma vez eu estava na lanchonete e chegou uma senhora, bem velhinha mesmo. Ela ficou um tempão olhando o cardápio que era pintado na parede, aplicado como um tipo de adesivo. Pela quantidade de opções devo dizer que aquele menu era mesmo enorme e que era difícil pra qualquer um olhar e escolher.
Ali olhando, a velhinha pareceu se esquecer do mundo. Os atendentes do balcão já riam e cochichavam entre si, indicando que era pro Cosminho atender, pois era o “departamento dele”. Eu logo percebi o tal Cosminho. Era um negro pra lá de simpático, daqueles de riso fácil e palavra idem, dentes lindos, amigo de todos e conhecia o gosto das pessoas só pelo olhar delas. Pelo jeito dos colegas, parece que ele tinha ainda uma outra facilidade que era o tratamento com os velhinhos. Então eu passei a perceber melhor o trabalho daquele atendente.
Quando ele perguntou a senhora se ela já tinha escolhido ou se precisava de ajuda, ela pareceu se animar:
- Já escolhi, sim! Vou querer um suco de banana.
- Com água, leite ou laranja, senhora? – perguntou Cosminho.
- Não, não, não moço! Eu quero puro. Não quero misturado com nada não. Quero mesmo só banana no meu suco.
Como se soasse um grande sino dentro da loja, todos pararam pra acompanhar aquele embate que prometia. Rapidamente o Cosminho se chegou perto da senhora e foi explicando que a banana, ao contrário de outras frutas, não tinha uma quantidade de água capaz de ser moída e virar suco, e que por isso era preciso juntar “algo líquido”, como ele disse, pra que pudesse ser bebido.
A velhinha titubeou. Pensou um pouco, olhou de novo pro cartaz dos sucos e nada. Se fosse na Inglaterra aposto que já teria clientes apostando em um ou outro pra ver quem venceria aquela batalha que se anunciava longa.
Então, com a simplicidade que só a generosidade humana é capaz, o atendente surgiu no balcão com um prato e uma banana descascada. Pegou um garfo e passou a amassar a banana, como que mostrando para a cliente que não poderia ser bebido daquela forma e na conversa iniciada ressaltou que muitas pessoas escolhiam tomar com leite, ele próprio preferia assim, pois o leite potencializava o sabor da banana e ele era capaz de garantir a ela que o suco ficaria muito bom, que ela não iria se arrepender.
- Então com leite, mocinho!
Estava terminado.
Já no primeiro gole a senhora levantou o copo em direção ao Cosminho e todos nós em volta ficamos aliviados com o gesto.
Quando ela saiu e, diante dos gracejos dos colegas, o atendente deu a sua explicação:
- É engraçado. A gente pode explicar as coisas para as crianças, mas não pode explicar pros idosos. Aí eles ficam assim, desconfiados de tudo e de todos, claro. Não tinha nada de errado com ela. Ela só não tinha percebido, não sabia que o suco de banana era feito assim. Depois que eu expliquei ela entendeu e pronto. Na verdade se as pessoas se dispusessem a perder um minutinho do seu tempo com quem precisa desse minutinho, daria tudo certo.
- Grande Cosminho! – arrematou um cliente com um sanduba na mão.
- Isso mesmo. Falou bonito – disse outro.
Chega uma hora em que todos nós, velhos ou novos, ficamos evidente e efetivamente idosos. Nas minhas projeções sobre isso eu já decidi que quando chegar a minha vez eu vou ao Rio visitar uma certa lanchonete da Rua México. E estando lá eu já sei exatamente o suco que eu vou pedir.
Pode apostar.