sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Corte


Definitivamente, eu estava decidido a mudar o meu cabelo. O cabelo só não, todo o visual que poria o cabelo em evidência e me daria uma aparência mais moderna, digna da mudança de milênio, ou do fim dele. Eu tinha uns 30 e poucos anos, já estava há um tempo planejando tudo aquilo e decidi que se não fizesse daquela vez não faria mais.
Foi então que eu bolei o plano. Ia raspar a barba que já tinha uns seis, sete anos de vida, ia voltar a usar os óculos e não mais as lentes de contato e, o principal, iria cortar o cabelo à máquina três e o descolorir até ficar branquinho. Tudo isso, diga-se de passagem, seria processado numa sexta-feira, de modo que eu chegasse no trabalho na segunda com a surpresa pronta, na cara de todos, e na minha também.
Eu nunca tinha feito nada parecido. No máximo me dava por satisfeito por, de tempos em tempos, por pura diversão, tirar a barba e ver a reação de todos com o meu novo rosto, a boca se tornando fina e o rosto bem mais magro. Mas o que eu ia fazer dessa vez era algo ousado, contrário ao meu normal, sempre certinho e comedido.
Já saí de casa de manhã sem a barba, que foi pelo ralo antes do banho, e levei comigo os óculos na bolsa. Somente depois de cortar e descolorir o cabelo é que eu iria tirar as lentes de contato e voltar a usar os óculos, completando a tríplice mudança: barba, cabelo e óculos.
Foi lá no salão da Rita, perto da estação de trem, que ela me falou que essas coisas demoram um pouco e que, pra descolorir direito, ia arder o couro cabeludo. Mas se eu tivesse um pouco de paciência tudo ia sair bem, do jeitinho que eu queria, disse ela.
Só sei que fiquei umas boas horas lá no salão. Primeiro cortei o cabelo com a máquina e depois fomos passar o descolorante. A seguir, um papel alumínio brilhante esquentou tudo em volta e a mágica ficou pronta depois de enxaguar e passar mais um troço lá que branqueava de vez. Enfim, o que tinha estado meio amarelo, da química, pra tirar a cor original, agora era branco de verdade.
Eu mesmo não me acostumava com o que via no espelho. Ficou um visual ousado e eu achei muito bacana aquela minha cara de europeu das terras frias caucasianas. Fui pra casa achando que todo mundo estava me olhando na rua. Só não sabia se era por beleza ou por estranheza. Pra mim, no início era pelo primeiro, mas alguns minutos depois eu já não tinha tanta certeza assim. Ia pensando que melhor mesmo seria quando chegasse em casa. Sim, porque pai e mãe sempre dizem que o filho está bonito e o meu cabelo tinha de ser avaliado com uma certa dose de carinho de mãe, de pai. Uma avaliação francamente tendenciosa era tudo que eu precisava.
Quando cheguei na varanda de casa botei a cara na janelinha da porta, só de brincadeira, pra surpreender quem estivesse na sala vendo televisão. Aí, ouvi minha mãe dizer logo de cara que era eu, avisando o meu pai que já se levantava pra abrir a porta, e pedindo pra ele ir até lá rápido. A surpresa foi grande e eu fiquei um tempão contando como foi tudo, como começou, como foi a ideia, como foi a ardência na cabeça e ainda sobre a barba e os óculos.
Minha mãe pegava no meu cabelo, olhava por dentro dele passando os dedos, analisando tudo e por fim disse que estava legal, diferente, que eu estava parecendo um estrangeiro e declarou um gostei ainda querendo mais certeza naquilo que via. Então passamos a perguntar ao meu pai, que demonstrava muita dúvida, só pra dizer o mínimo, pois que o seu primeiro impulso foi de certa estranheza.
Mas minha mãe ficou tentando me ajudar, explicando que as pessoas têm que mudar o visual de vez em quando e tal, que mulher tem o direito de fazer isso sempre e porque os homens não podiam fazer o mesmo, tudo pra amolecer o meu pai e me poupar de algum comentário mais rude dele. Dava pra sentir, na conversa, que os dois faziam um esforço considerável pra não me magoar e isso era bom, já que tudo demandaria um certo tempo de se acostumar.
Meu pai fez mais algumas perguntas, se mostrou interessado, disse que o cabelo cortado com máquina era mais fácil de cuidar, de pentear e que finalmente estava bom, estava bonito. Aí, depois de uma pausa de uns minutos ele coçou a cabeça, esperou que minha mãe saísse da sala e me perguntou sussurrando:
- Quero que você saiba que eu gostei. Mas me diga uma coisa, meu filho: você vai sair assim na rua?
Aí eu vi que ele não tinha gostado nadinha. E que o amor é que estava falando mais alto. Todo o tempo.


domingo, 27 de novembro de 2016

Ramón


Desde adolescente, Ramón sempre ouvia do primo que o melhor era ir para os Estados Unidos. Todos os amigos acabaram indo, um a um, até que surgiu uma possibilidade real e ele se viu fortemente atraído.
Aquele era o sonho de todo mundo, pensava ele, pois as conversas na escola, no bar da esquina e nas reuniões com os amigos sempre falavam dos planos de prosperidade naquele país. Trabalhar lá, juntar um bom dinheiro e retornar à terra natal com alguma tranquilidade e, quem sabe, começar um novo e rentável negócio.
Seus pais, por sua vez, achavam tudo aquilo uma grande loucura. Ali eles tinham tudo de que precisavam e o governo supria toda a comunidade, oferecendo o melhor em educação, esportes e saúde, um exemplo para muitas nações do mundo. Só que Ramón ouvia aquilo dos pais e acreditava que tudo não passava de opinião acomodada, que talvez pela idade eles já estivessem acostumados com “aquilo” e já não tivessem mais um mínimo de ambição na vida.
No dia e hora marcados ele estava lá, ansioso. O dia amanhecia e todos foram levados a bordo, para aquele arremedo de embarcação. O primeiro adversário a ser vencido é o medo, disse o primo. E Ramón partiu rumo ao paraíso, atravessando um mar claro e que foi até fraterno com aquele estranho barco repleto de esperanças.
Quando chegaram em terra firme um outro sujeito, também da equipe responsável pelo empreendimento, esperava com um caminhão e assim eles passaram o pior pedaço que era próximo da praia, pois era uma região muito vigiada. Ele teve a sensação de que alguns guardas das vigias até os viram, mas estranhamente nada fizeram.
Os dias foram ficando mais difíceis depois daquele desembarque. As condições de vida cada vez mais precárias e Ramón sentiu na pele o que seria o pagamento por aquele esforço de mudança de vida. Na primeira semana ele teve de ficar por mais de 24 horas dentro de um barril de óleo a esperar por alguém que viria lhe buscar, depois de já ter levado alguns dos seus amigos. Completamente extenuado depois de todas essas horas ele mal conseguiu se erguer do barril pra ir com o homem.
Os meses foram passando, as dificuldades se alternando e as perspectivas eram de muito sofrimento. Lavou muito chão de muito banheiro e de muita cozinha. Passou fome muitas vezes, frios intermináveis e a vida nômade era agravada pela cotidiana falta de roupas, de cama e de higiene. Tudo isso começou a minar a sua confiança, até que um dia ele pensou em voltar.
Alquebrado e sem ânimo, as imagens de casa lhe vinham à cabeça já com certa frequência. Aquela rua pacata naquele bairro simples, seu pai saindo pra pescar perto de casa, a mãe estendendo as roupas, os amigos que vinham tocar violão e tomar cravinho juntos. Eram alegrias tristonhas que Ramón já não tinha certeza de que veria algum dia, passados quase cinco anos desde a sua chegada.
Muito trabalho e muito dinheiro foram consumidos pra conseguir um esquema, também clandestino, pra o levar de volta. Mas nada mais importava. Sua decisão era de que jamais seria fugitivo; jamais passaria fome ou frio pra conseguir permanecer em uma terra que atraía a todos pela oportunidade, mas que, na realidade, era uma espécie de tráfico de escravos moderno, sustentado por uma imposição desumana de trabalho e condições subumanas de vida.
Passou por muitos países, muitas fronteiras, até que conseguiu um navio cargueiro, de bandeira desconhecida, na direção de casa. Aliviado, tentava se alegrar a cada milha vencida até que chegou ao porto. Desceu e na mesma hora percebeu que tudo estava diferente. As pessoas com fisionomia triste andavam sem rumo, alguns grupos nas esquinas conversavam e balançavam a cabeça com desânimo.
Perto de um desses grupos notou que eles se reuniam ao redor de uma banca de jornal, com as manchetes expostas. Passou pelas pessoas e se deparou com uma grande fotografia na capa de um dos jornais. Reconheceu o homem da foto e seus joelhos fraquejaram automaticamente. Sentou no meio-fio com desalento, olhou o movimento em volta, se virou pra olhar o mar de novo e um choro triste e silencioso surgiu baixando-lhe a cabeça entre os joelhos. Naquele momento Ramón sentiu que tudo o que ele queria era o abraço da sua mãe. E antes de levantar, apenas murmurou:
- Adeus, comandante! Meu comandante eterno!


terça-feira, 1 de novembro de 2016

O Caminho Pra Casa


Desde pequeno, uma coisa que muito me impressionava era o quanto o meu pai parava na rua pra falar com as pessoas. Às vezes, eu saia com ele pelas ruas de Ramos pra ir a algum lugar, padaria ou feira, e ele ia parando a cada 20 metros pra falar com os vizinhos, os conhecidos ou amigos. Algumas vezes eram só cumprimentos daqueles que sempre acabam com alguma pergunta do tipo “quando você aparece lá em casa?”, enquanto outros eram verdadeiras saudações que demoravam um bom tempo, e onde se contavam casos, falava-se de futebol e das últimas notícias. Enfim, eu ficava só olhando e pensando em quanta gente o meu pai conhecia.
Uma vez a gente estava indo à feira de sábado e um senhor parou um tempão com ele. Falou um bocado e sobre um monte de gente, nomes os mais diversos e até tomou caldo de cana com a gente na entrada da feira. Aí quando o amigo foi embora ele simplesmente me disse que conhecia o sujeito mas não lembrava de onde e que a maioria daquelas pessoas que ele falou meu pai não conhecia. E eu perguntei como é que ele falava um tempão com alguém que nem lembrava quem era. E ele respondeu simplesmente que o cara sabia quem ele era e isso bastava, depois ele ia tentar lembrar quem era o tal sujeito e tudo ia ficar bem.
Era sempre assim. Na companhia do meu pai o caminho de volta pra casa era inevitavelmente algo improvável e mais improvável ainda era o tempo que ia levar essa volta. Mas no fundo eu achava aquilo o máximo. Era tanta gente que gostava dele, que considerava ele e que se alegrava em vê-lo passando na rua e se dispunha a ir cumprimentar, conversar. Aquilo fazia com que eu gostasse ainda mais do meu pai e o admirasse pela atenção que ele dispensava às pessoas, uma qualidade inclusive quase sempre reciprocamente ofertada.
Outro dia, a minha irmã esteve me visitando aqui em Florianópolis. Eu saí com ela pelo Centro, fomos ao Mercado Público, à peixaria, percorremos as ruas de intenso comércio e num certo momento ela me disse que tinha lembrado do nosso pai:
- Caramba, você conhece todo mundo. Fala com todo mundo na rua. Parece até o meu pai.
E foi aí que eu me dei conta de que durante o nosso passeio eu tinha passado pelo galego que vende relógios, pelo segurança do artesanato, por um professor conhecido das reuniões do sindicato e que quando a gente foi almoçar, lá no Chico, em Santo Antônio, o gerente do restaurante me reconheceu, foi lá perto da nossa mesa e a gente ficou conversando um monte antes do almoço.
Fez total sentido pra mim a minha irmã ter lembrado do meu pai e me dizer que eu tinha causado isso. Eu é que não tinha me dado conta. Ainda. Claro que a proporção é outra, mas em certo sentido o que era característica do meu pai estava se repetindo comigo. Me surpreendeu quando essa ficha caiu.
Então, hoje, voltando do trabalho eu passei por uma amiga arqueóloga e seu marido, que tem uma turma que joga um futebol bem bacana na universidade. Nos cruzamos na esquina e paramos pra conversar um pouco, aguçando a minha intenção de voltar a jogar com eles o mais breve possível. Depois dali, atravessando a praça, vi um amigo advogado do outro lado da rua que acenava pra mim dizendo “bom feriado”. Eu disse o mesmo pra ele e seguimos com um sorriso no rosto. No final da praça passou por mim um senhor que me chamou pelo nome e me perguntou como estava o “nosso” museu, ao que eu respondi com o conhecido, apressado e automático “tá tudo bem”. Na verdade eu lembro da fisionomia dele claramente mas não sei bem de onde. Pelo jeito que ele se referiu ao museu, suponho que deve ser alguém que frequentava o extinto projeto de cinema que eu coordenava lá.
Foi o tempo de chegar em casa, ainda há pouco, e toda essa história veio à tona pra que eu sentasse no computador e escrevesse. Simples assim.
E se eu tinha alguma admiração pelo meu pai desde aquela época, ao final desta crônica fiquei imaginando ele por aqui por Floripa, andando do meu lado, vendo eu falar com as pessoas. Quem sabe acabasse por me admirar por isso, como eu a ele, ou mesmo se tornasse um velho amigo de todos os meus amigos, com a facilidade típica e incondicional que tinha para as amizades irrestritas. Enfim.
Imaginar isso tudo me dá muita saudade dele. Uma saudade pra lá de boa, como era voltar pra casa com o meu pai.


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

E.T. - O Filme


No início da década de 90 o filme ET já era um clássico do cinema mundial. Todos os anos, durante o mês de dezembro, sempre tinha um cinema no Rio de Janeiro que passava o filme novamente, o que era um atrativo para as crianças em férias escolares e também para os pais, que davam um jeito de incluir o programa no final de semana da garotada.
Quando eu vi o anúncio no jornal não tive dúvidas, tratei logo de combinar com o meu filho Daniel que a gente ia no cinema ver um filme muito legal, que eu já tinha visto há muito tempo, e que ele também ia gostar, pois tinha nave espacial, perseguição de bicicletas e muita aventura. Mostrei uma foto do ET pra ele e falei que o personagem tinha poderes especiais, mas que ele ia ver tudo com seus próprios olhos.
Logo na entrada pude perceber que, assim como eu, muitos pais estavam levando seus filhos pela primeira vez ao cinema e tinham escolhido especialmente aquele filme pra que ficasse marcada para sempre aquela primeira experiência.
O problema é que naquele tempo ainda não havia dublagem para os filmes do cinema, assim como tinha pra televisão. No cinema, quando o filme era pra criança, os pais liam as legendas em voz alta, ou melhor, em voz baixa, pra que só o seu filho ouvisse. Claro que todo esse esforço era pra garantir total atenção das crianças para que pudessem compreender o que os pais liam e para que, elas próprias, entendessem a trama. Todos na sala estavam super empenhados para que os filhos tivessem a mesma emoção que eles, quando assistiram ao filme pela primeira vez.
Assim, pais sentados, filhos no colo, começa a sessão. Mal começou o filme e o que se ouvia na sala era um coro de leitores de legendas. Todos os pais liam para os filhos ao mesmo tempo e alguns até ajustavam o tempo das palavras pra que o coral ficasse sincronizado. Gosto de lembrar daquilo até hoje. A grande sala escura e aquelas vozes todas. Era quase uma leitura dramática das legendas. Aliás, pela entonação que se ouvia, com certeza tinha gente com talento de ator ou dublador ali, o que tornava tudo muito mais legal para as crianças.
Com o desenrolar da trama, mais do que apenas ler, os pais passaram a se emocionar com o que liam e com a reação dos próprios filhos diante do filme. Às vezes, quando uma criança perguntava algo ao pai ou a mãe, que não tinha entendido, a explicação servia também pros outros meninos, já que todos podiam ouvir.
Lembro bem da cena das bicicletas voadoras, quando a plateia explodiu aos gritos vendo o cerco policial formado e no último minuto aquelas bikes alçando voo, para delírio daquele maracanã de crianças em pleno gol do seu time. Os pais se abraçavam aos filhos, davam socos no ar juntos, as pipocas caíam pra todo lado e as legendas eram gritadas por todos, a plenos pulmões. Da mesma forma, quando se deu a ressuscitação do extraterrestre, foi outro momento de euforia e alegria. Momentos antes, porém, dava pra ouvir a criançada perguntando aos pais se o ET havia morrido e os pais, sem querer estragar a surpresa, respondiam apenas com um “acho que sim”, também em coro, mas sem muita convicção.
O que mais me marcou nessa sessão, entretanto, foi, claro, o final do filme. Não era possível saber quem estava chorando mais na despedida do menino ao seu amigo de outro planeta: se os pais, vendo a emoção dos filhos, ou os filhos, irremediavelmente desolados com a partida do ET. Uma coisa é certa, os pais, assim como eu, estavam firmes até quase o final, pois sabiam o que ia acontecer. Mas na cena das despedidas um menino ali, bem no meio da sala, tentou consolar o pai em voz alta:
- Ô pai, ele vai voltar um dia! Não fica triste não!
Foi o bastante para que todos os pais desabassem em desconsolo, tentando evitar mais sofrimento ainda para aquela plateia amada que, a partir dali, só merecia um colo bem carinhoso, um grande abraço e um sorvete na saída do cinema.
Do lado de fora, os pais de olhos vermelhos eram todos tios na fila do sorvete. E em cada entreolhar desses tios dava pra identificar certinho quem ali tinha acabado de assistir ao filme ET. É como diz o poeta: através dos olhos se vê a alma.



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A Galinha


Naquele sábado de sol a tarefa doméstica do Nestor era somente ir à feira e comprar uma galinha para o almoço. Combinou com a mulher no dia anterior que daria uma varrida no quintal, de manhã, e depois iria direto pra feira, aproveitando o dia lindo e o calorão do Rio de Janeiro, e escolheria uma galinha grande, na barraca do amigo feirante, o único que vendia a ave viva, “sem aqueles químicos que a indústria coloca nelas”, conforme ele mesmo se vangloriava.
Só que, às vezes, tem situações onde as mais simples tarefas se tornam um problemão, difícil de resolver. Chegar na feira não foi complexo. Nem comprar a galinha depois de um papo saudável com o feirante, antigo conhecido, vascaíno da Barreira. Mas a coisa ficou mesmo intrincada justamente na volta, pois, quis o destino que no trajeto houvesse vários bares no caminho, cheios de amigos e conhecidos que ele só via nos finais de semana e o destino... bem o destino... o destino é algo ingovernável, imprevisível, como todos sabem.
Uma cervejinha aqui, um papinho ali, uma provocação sobre futebol e outra sobre política no bar da esquina e o resultado foi que o Nestor voltou pra casa às 3 da tarde e, pior, sem a bendita galinha.
Assim que entrou a mulher o fitou de cima embaixo e, de pronto, com as mãos nas cadeiras soltou o indefectível “eu sabia”. Ele percebeu, também de pronto, que aquilo era a justa comprovação de que ele realmente tinha feito algo imperdoável e que a tendência da coisa era só piorar.
– Cadê a galinha, Nestor? – perguntou ela, juntando a ponta de todos os dedos da mão.
– Ué. Eu comprei. Eu sei que eu comprei a galinha. Mas não sei onde ela foi parar.
Arrependida de não ter ido com o marido à feira, a mulher se deu conta de que tinha perdido não só o passeio naquela feira livre do subúrbio, que tem caldo de cana no início e todas as folhas para tempero no final, como ainda perdeu a cervejinha com o marido e os amigos, os mesmos que ela agora tentava se lembrar pra poder saber o paradeiro do raio da galinha perdida.
Alguns bares, os mais perto de casa, a mulher tinha até o número e assim foi pro telefone com o caderninho na mão. Ligou pro Bar do Mineiro, depois pro Vamoagir e nada de galinha. O Bar Vamoagir era na verdade Vamos Agir, que era uma frase que o dono sempre repetia, qualquer que fosse o pedido dos clientes. As pessoas marcavam de fazer churrasco lá, feijoada, levavam bolo de aniversário, de batizado, aí combinavam os eventos com o dono e ele, da sua parte, não respondia nem sim nem não, só dizia o famoso “vamos agir”. De tanto ele repetir isso o Vamoagir passou a ser o nome informal do bar.
Enfim, a virtual dona da galinha perguntou nos bares e depois passou a ligar pros amigos. Perguntava a eles se haviam visto o marido e se por acaso sabiam onde ele poderia ter esquecido uma galinha viva enrolada em jornal. Do outro lado da linha os amigos pareciam ter bebido as mesmas cervejas que o marido e, com vozes incertas, respondiam de igual modo, sem a menor precisão dos fatos, o que é deveras natural para a ocasião etílica em que se dava aquela investigação.
Um deles disse que o Nestor já tinha chegado no Mineiro sem galinha nenhuma nas mãos. O outro disse que viu, sim, um embrulho de jornal com ele, no Vamoagir, mas não podia afirmar se aquilo era uma galinha. O terceiro relatou que tinha certeza que a galinha tinha ficado no balcão e que tinha até uma sacola com temperos e que podia jurar que, naquele dia, o amigão Nestor não havia bebido uma só gota, pois que estava com pressa de voltar pra casa, sabendo que a esposa o esperava – que lindo.
A mulher então resolveu, como última tentativa, ligar pro seu Dosdival, marido da dona Cotinha, que era o sujeito mais justo e equilibrado de toda a turma que frequentava o Vamoagir. Dono de curiós e canários premiados, seu Dosdival era abstêmio e, na qualidade de aposentado, passava o dia ali na esquina, só mesmo mudando de calçada ou de bar pra manter os seus animais sempre na sombra, com água e frutas fresquinhas que eram, para ele, o segredo dos belos cantos dos seus passarinhos.
– Alô, seu Dosdival, aqui é a mulher do Nestor. Por acaso o senhor o viu hoje no bar? Sabe dizer se ele estava com uma galinha?
– Olha dona, a senhora vai me desculpar, mas eu tenho os meus amigos ante o maior respeito e não vou ficar aqui falando se eles estavam com essa ou aquela pessoa. Na verdade o seu Nestor é um homem sério e eu posso afirmar que ele não anda com mulheres de jeito nenhum. Sabe que é um dos poucos por quem eu ponho a minha mão no fogo. Ele jamais andaria com esse tipo de mulheres, fique sabendo a senhora.
– Não! Seu Dosdival! Não é mulher, não. Não é nada disso. Eu estou falando de galinha mesmo, de bicho, cocorocó. Ai, meus Deus! Olha, quer saber? Eu desisto. Chega! – e bateu o telefone.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A Feira de Filhotes


Um dos maiores shoppings da zona norte do Rio acabava de ser inaugurado e a programação era grande o bastante para atrair todo o público da cidade que já estava acostumado a ir só nos shoppings da zona sul, que eram muitos. Uma das atividades de inauguração era uma feira de animais exóticos. A criançada ficava doida com os bichinhos coloridos de todas as formas e o movimento da feira era típico de um parque de diversões.
Meu filho Daniel tinha uns quatro anos e lá fomos nós, num domingo ensolarado, esperar o shopping abrir pra ver os animais. Era o tipo de Feira de Filhotes que a gente sabe como começa, mas que não tem a menor ideia nem de como e nem de quando termina. Na verdade a gente desconfiava que tinha chegado ao fim quando uma mocinha, toda fantasiada, vinha perguntar pra criança da vez qual o animalzinho ela ia querer levar como brinde: se um pintinho ou um peixinho.
Saímos da feira direto pro sorvete e depois pro ponto de ônibus, rumo a casa. Dentro do saquinho de papel de pão, um tipo de papel pardo, estava um pintinho bem amarelinho, assustado, e que por isso a gente levava com o maior cuidado. Claro que a minha vontade era ter recusado o brinde, até porque a gente estava sem carro, mas isso não seria legal com qualquer criança, ainda mais com um filho.
Quando a gente subiu no ônibus eu fiquei preocupado porque não tinha lugar pra sentar e eu estava um tanto atrapalhado levando um menino pela mão e com um animalzinho na outra. Uma senhora então percebeu a minha total inabilidade e me disse que o Daniel podia sentar no colo dela, já tirando a bolsa de lado pro menino sentar junto da janela.
Tudo resolvido. A viagem deu prosseguimento agora em paz e com segurança, todos bem acomodados. De repente, no meio do trajeto eu notei que o Daniel fazia sinais pra mim com as mãos. A gente não estava muito perto e por isso ele tentava fazer os gestos ao invés de falar. Como eu não entendia nada, pedi que ele falasse, pois não tinha problema.
– Ô pai, como está o pinto aí? Não aperta muito o pinto não, tá?
– Pode deixar, filho. Tá tranquilo – respondi.
E todo mundo em volta começou a perceber a inocência das perguntas, mas mesmo assim riam do diálogo que se fazia.
– E o saco, pai?  Segura o saco por baixo pro pinto ficar deitado, tá?  E cuidado pra não amassar o saco, pra não machucar o pinto, né?
– Isso. Pode deixar que o pai tá tomando cuidado com o saco e com o pinto – e dei também uma risada depois que ouvi o que eu mesmo tinha dito.
A essas alturas todo mundo no ônibus já estava repetindo as recomendações do Daniel e me chamando de pai, relembrando o cuidado com o pinto e ainda criando outras frases de efeito, carregadas de duplo sentido, que levava todo mundo a cair na risada, inclusive eu, meio sem jeito, mas entrando na dança devidamente.
A minha sorte foi tal que quando o meu filho começou a sugerir que era melhor eu dar o pinto para a senhora segurar, a mesma que estava com ele ao lado, chegou o nosso ponto de destino e a gente desceu.  Para mim foi um alívio imenso ter saltado do ônibus naquela hora, mas teve uma galera lá de trás que lamentou, em alto e bom som, que a gente fosse descer logo agora, quando a mulher ia segurar o pinto do pai do menino. Provavelmente estavam na pilha pra ver a cara da senhorinha e a saia justa que ia rolar com toda aquela situação.
Por fim, descemos no ponto e ainda demos tchauzinho pra turma do fundo e pros amigos que estavam no mesmo ônibus e que eu nem tinha notado.
Tem histórias que a gente revive melhor quando tem que contar de novo. Mais do que lembrar, contar nos faz estar dentro dela novamente, com todo o cenário, os sons e as cores. Talvez seja por isso que agora, ao acabar de ler o que escrevi, me pego com este sorriso de criança, meio de lado, cheio de saudades.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Baterista


O treino do nosso time de futebol de salão acabou mais cedo naquela manhã e, justamente por isso, a gente teria que esperar um bom tempo até a hora do jogo, marcado pro final da tarde. Já tinha uns três anos que eu fazia parte do time do colégio representando a turma final 01. Na quinta série eu era da 501, depois 601 e agora 701, na terceira série do ginasial.
Ir pra casa e depois voltar pro colégio mais tarde, ia demorar muito nos trajetos de ônibus e definitivamente não valia a pena. Então ficar por ali, almoçar todos juntos, e depois irmos pro jogo seria uma boa saída. Fomos a pé até o shopping perto do colégio e, de lá, o Zé Maria, que era o nosso goleiro e o mais novo integrante da equipe, sugeriu que fôssemos até a sua casa, que era perto também, pois lá a gente ficaria mais à vontade e talvez até o tempo passasse mais rápido.
Não me lembro do nome de todos os jogadores mas, além do Zé Maria, tinha o Mãozinha, um sujeito atarracado que tinha a mão encolhida para dentro, um defeito de nascença ao qual ele já era totalmente adaptado. O cara jogava uma bola redondinha e a gente achava que era porque ele nunca ia pro gol nas peladas de rua por causa da sua mão. Aí só podia ser craque mesmo com a bola nos pés.
Outro colega era o Silvio, colecionador de selos e moedas antigas. Ninguém sabia dizer como um nerd daquele, que só queria saber de livros, moedas e selos tinha resultado em um jogador de futebol. Ele tinha uma voz grossa e era o que mais sofria com as espinhas no rosto. Totalmente diferente do Lúcio. Extrovertido e popular com as meninas, era o cara que acionava a torcida quando o time precisava. Imitador talentoso, fazia com perfeição quase todas as vozes dos personagens do desenho Família Buscapé, principalmente a mãe Bié e o pai, Zé Buscapé. Como a turma tinha dois Lúcios, ele herdou o sobrenome da família do seriado.
Como toda turma de colégio, a gente se divertia muito e estudava pouco. Jogava mais bola do que fazia aula de Educação Física – normal – tanto que teve um ano daquele que eu fiquei em recuperação por causa de faltas na matéria. Eu e meu irmão. Enquanto o professor dava aqueles exercícios chatos e repetitivos a gente ficava de olho pra ver o momento certo que a bola começava a rolar no campo de terra batida do colégio. Dali pra entrar no time era uma só carreira. E nada de dar presença na chamada.
Quando a gente chegou na casa do Zé Maria, deu de cara com uma bateria. Uma enorme bateria, com pratos em toda a volta e aqueles ferros prateados brilhando em cada peça reluzente. Um tapete preto embaixo dela tornava mais bonito ainda o contraste com as estruturas na cor bege, rajadas como se fossem peles de animal. Só de olhar aquilo tudo, já dava vontade de tocar. Ou de ouvir, dependendo da capacidade motora de cada um.
No meu caso eu só queria sentir o som daquele objeto inanimado que estava prestes a ganhar uma alma. Então o Zé Maria explicou que, apesar de a bateria ser dele, já não tocava muito. Fez aula até, mas foi se desinteressando aos poucos por não tocar mais com os amigos da cidade onde morava anteriormente. Disse que depois da mudança aí mesmo foi que deixou a bateria de lado.
– Na verdade, quem toca mesmo hoje é o meu irmão mais novo – disse o dono da bateria. Ele é fera nesse troço e já me deixou no chinelo de tão bem que toca agora. Daqui a pouco ele chega do colégio com a minha mãe e vai tocar pra vocês. Esperem, só!
Nesse momento, quando a gente já estava largando as mochilas no sofá, surge o baterista na porta. Quando nos viu deve ter imaginado a plateia que teria e, logo que o Zé Maria pediu uma canja, ele já foi se instalando na banqueta, não sem antes dizer o “posso, mãe?” automático de menino, que a gente suspeitou ser algo frequente e diário.
O moleque destruiu aquela bateria. Acho que bastaram 20 segundos e a gente já estava rindo um pro outro, como que não acreditando no que estava ouvindo e vendo. O equipamento de som da sala tinha sido ligado e a apresentação consistia em acompanhar a música que estava tocando. Mas o guri era demais. Passeava entre os tambores e pratos como se tudo aquilo fosse uma extensão dos seus braços. Alternava partes mais suaves para, logo em seguida, irromper musicalmente triunfante nas viradas perfeitas da música e a gente só ficava esperando o final daquilo tudo, normalmente com o ataque aos pratos lá do alto.
Um show daquele eu jamais me esqueci. Mas esta história não teria sentido pra mim se eu não mencionasse que irmão do Zé Maria era portador de Síndrome de Down. Todos nós percebemos de cara, assim que ele entrou, mas nos preparamos para incentivá-lo qual fosse o seu desempenho na bateria. Esperávamos, equivocadamente, por uma apresentação mediana, medíocre até, mas considerando as suas limitações estávamos prontos pra aplaudir aquele garoto especial de qualquer maneira.
E é por isso que essa história me marcou a vida. Porque os sorrisos de todos nós, juntos, amando aquela performance, é algo inesquecível pra mim. Foi uma lição de solidariedade, de humanidade, de perseverança, de amor ao próximo e tantos sentimentos bons misturados que nos tornou alegres de um modo diferente naquela tarde.
Ao final da música a gente se levantou, aplaudiu, assobiou até, e abraçou o garoto como se fosse também nosso irmão e não só do Zé Maria. Eu nunca tinha tido uma proximidade com a Síndrome e, acho que talvez por isso, a minha surpresa e contentamento foram tão grandes. E desde então, eu nunca mais olhei aquela condição com sentimento de pena ou esperando algo de medíocre. Não mesmo.
Naquela tarde, indo pro jogo, o Zé Maria explicou que o irmão tinha certa dificuldade pra amarrar os sapatos, pra abotoar a própria camisa, o relógio e coisas do gênero. Mas que para outras tantas coisas ele era assim, inexplicável. Nossa família nem tem ideia de alguns talentos que ele tem, até que ele mostra pra gente lá de casa e todos ficamos abismados – disse.
Embora eu ache que aquela tarde pra mim ainda não terminou, posso dizer que, por uma tarde, eu também fui um desses fãs. Abismados.


terça-feira, 12 de julho de 2016

Seu Dico


Conheci o Seu Dico em 2004. Eu estava fazendo um trabalho como assessor de imprensa e fui ajudar o Seu Dico a dar uma entrevista a um canal de tevê local de Florianópolis. A pauta era a restauração de embarcações tradicionais de Santa Catarina, em especial as baleeiras, que são barcos rápidos, geralmente a remo e originalmente criados para o cerco a baleias.
Restaurador por excelência, mestre carpinteiro de nome e sobrenome, como ele mesmo dizia, por ter aprendido o ofício com seu pai, que aprendera com seu avô e daí até os primórdios, Seu Dico morava na Costa da Lagoa, numa comunidade aonde só se chega de barco e onde moravam os seus seis irmãos, todos na vizinhança próxima, em casas construídas por eles mesmos.
O mestre, de fala mansa e pausada, foi logo explicando que não tinha estudo, sublinhando sempre na sua prosa que naquele tempo “não tinha a lei” e as ciências eram passadas de pai para filho. Foi daí que ele aprendeu a consertar os barcos dos amigos do pai, primeiramente, e depois começou ele próprio a construir os seus, ainda sob o olhar paterno que percebeu nele o dom para criar a curvatura perfeita na madeira, tão necessária para aquele tipo de embarcação.
Quando falava das suas baleeiras, Seu Dico não escondia de ninguém o brilho nos olhos e apontava sempre para as águas da Lagoa da Conceição como se estivesse vendo o barco passando, vencendo as marolas e o vento com facilidade. Nessas horas a gente também olhava, automaticamente, mas era em vão. E nos resignávamos a somente ouvir as suas histórias.
A gravação da reportagem foi ótima e ele respondeu a todas as perguntas e às curiosidades da repórter com paciência e tentando explicar, para nós mortais, como os barcos atuais, de fibra e motor, não chegam nem aos pés da sensação que é navegar em uma baleeira, seja de remo ou com vela. Sobre o restauro a aula foi ainda mais interessante, pois o modo construtivo do barco mostrou-se fascinante e tinha ainda as peculiaridades da manutenção como o processo de calafetar, de sobrepor as madeiras, os encaixes, o cavername, a retranca e o verdugo, termos que ele usava como se falasse de velhos amigos.
A certa altura a repórter pediu licença pra perguntar algo que havia sido dito e que ela não anotou na hora e por isso queria voltar. Então disse que percebeu que em diversos momentos o mestre falava sobre a lei, que naquele tempo não tinha a lei, que agora com a lei, e ela não entendeu o que significava essa tal lei e, mais, que lei era essa.
Seu Dico parou, olhou pra Lagoa e, sem perder o seu ritmo pausado característico, iniciou:
– Quando meu avô começou a construir barcos ele usava uma madeira de medição. Tudo que o barco tinha era medido por aquela madeira. Meu pai já usava as medidas normais de régua, de trena, fazia um modelo dos ângulos dos encaixes para serem todos no mesmo padrão e foi com ele que eu aprendi tudo. Um dia chegou um sujeito aqui e falou pra ele que tinha que ter planta; que agora tinha uma lei que a pessoa que ia construir barco tinha que levar uma planta do barco na Capitania. A planta ficava lá com eles e os engenheiros de lá davam o carimbo de aprovação. Só depois dessa aprovação é que a pessoa podia construir o barco.
Fez uma pausa pra ver se a gente estava entendendo e prosseguiu:
– Meu pai ficou muito triste com aquilo. A gente parou de construir os barcos e passamos a só consertar mesmo. Muito ruim. Mas era a lei e a gente tinha que cumprir. Até os barcos que já estavam prontos pra navegar no mar disseram que tinham que ter a tal licença, e a licença só com a planta. Então, uma vez eu consertei um barco do filho de um oficial da Marinha. Era um barco pequeno, de fácil conserto. Quando ele veio buscar, o pai junto, o filho falou que eu não podia construir por causa da lei. Uns dias depois dois engenheiros da Marinha vieram aqui a mando do oficial e mediram todo o meu barco. Vistoriaram tudo só anotando as coisas numa prancheta. Elogiaram até o meu trabalho e foram embora. Um tempo depois o filho dele me pediu pra eu levar o barco lá na Capitania no dia tal, na hora tal e eu fui. E quando eu cheguei lá a minha licença estava pronta e o meu barco foi registrado. É aquele número ali na frente – disse apontando.
A repórter então, um tanto resignada, perguntou:
– Bem, desde então o senhor não constrói mais nada, só conserta e restaura os barcos?
– Nada disso, senhora, eu continuo fazendo os meus barquinhos, sim.
– Mas e a lei? – objetou ela, insegura.
– Ora, eu dei o meu jeito. Eu agora contrato um engenheiro. Trago ele aqui, mostro como vai ser o barco e ele anota as medidas e depois faz a planta. Aí eu levo na Capitania e eles aprovam a construção. Então eu volto pra casa e construo o meu barco.
– Com a planta? O senhor se guia pela planta, né?
– Que planta nada, moça. Quando eu volto com a autorização, guardo a planta no quarto e construo o barco do meu jeito, da maneira que eu sempre fiz, como meu pai me ensinou. Debaixo do meu colchão tem lá um punhado de planta de barco. Eu boto tudo lá. E essa é a lei!
E todos nós caímos na risada.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Bala


Nos idos de 1995 eu já tinha a minha fama de ter sempre balas e doces na gaveta do trabalho. Essa minha, digamos, ideologia de ter sempre algo doce por perto para o caso da proximidade exagerada de pessoas amargas, vem de muito longe e remonta aos tempos da escola primária, se bem me lembro. Daí para a vida adulta a transição foi certamente doce, cercada de muitas guloseimas, jujubas e afins, que eu, por via das dúvidas, cuidava pra que não faltassem em momento algum.
Mas como eu dizia, sobre o ano de 1995, nessa época meu irmão fez uma viagem à Dinamarca. Foi fazer uns shows de voz e violão e ficou uns três meses por lá. Na volta, claro, pro seu irmão mais velho ele trouxe um pacote de balas. Disse que era a bala mais famosa por lá e que embora tivesse aparência de algo como chocolate, que eu não gosto, era de um tal de alcaçuz, uma das mais antigas plantas a serem usadas para fins medicinais.
Se é bala e se tem açúcar é comigo mesmo. Abri o pacote e tratei logo de provar a dita cuja. E aí bastou 10 segundos pra eu querer cuspir longe e me livrar daquele gosto horrível do troço. Jamais na vida eu poderia pensar que alguém pudesse criar uma bala tão ruim e de gosto tão repulsivo. Simplesmente a gente não conseguia deixar aquele fel na boca e a sensação era tão ruim que a pessoa logo procurava um lugar adequado pra jogar aquilo fora.
Depois que viram a minha reação, todos que estavam perto resolveram provar. Minha irmã primeiro, meus pais depois, a namorada do meu irmão idem e todos, sem exceção, abominaram aquela coisa do capeta. Minha mãe até disse que aquilo não era presente que se desse a ninguém, quanto mais ao próprio irmão. O que fez a gente dar muita risada com a observação crítica e não muito sutil dela.
Passamos um bom tempo rindo e depois tentando saber mais detalhes sobre a tal bala, mas o fato de ela ser repulsiva era tão incomum que, quando eu levei pro trabalho no dia seguinte, a coisa acabou tomando outra dimensão.
Aos meus colegas de sala, claro, eu fui logo anunciando as propriedades infaustas da bala, o que logo foi comprovado por eles, um a um. E para minha surpresa logo surgiu um plano tramado em conjunto por todos nós, eu inclusive, que se transformou na alegria da tarde. A gente resolveu que só queria dar risada da cara dos colegas que costumavam vir na minha sala perguntar se tinha bala. Simples.
O primeiro que a gente chamou foi o rapaz da copiadora. Dissemos que tinha um trabalho pra copiar e logo depois de desligar o telefone ele entrou. O saco de balas em cima da mesa. Ele olhou. Perguntou se era bala. Se podia pegar uma e a gente disfarçando só disse hã-hã e ficou meio de lado pra ver a reação dele. No instante seguinte o garoto não sabia o que fazer com a bala na boca. Desconcertado, ele fez todas as caretas, tentando não demonstrar a trava na garganta até que por fim pegou a lixeira na mão pra jogar a bala fora.
E foi assim a tarde toda. As simulações das pessoas eram as mais bizarras, na tentativa de esconder a vontade de cuspir a bala, o engasgo pelo seu gosto de sei-lá-o-quê e a vergonha por querer jogar fora ali no meio da sala mesmo. Muitos davam um jeito de sair rápido, dizendo que tinham algo urgente, e a gente ia pra porta da sala olhar o sujeito pelo corredor, até vê-lo se livrar da bala no cesto perto do elevador. E aí a gente batia as palmas das mãos como adolescentes e chamávamos a próxima vítima.
Era bem legal também ver que as próprias pessoas que caiam na pegadinha da bala de alcaçuz, depois voltavam na nossa sala e sugeriam o nome de outro colega pra provar do mesmo veneno, algo quase literal. Ficavam ali por perto só pra também ver a reação do outro e depois de outro. As técnicas e suas estagiárias, todas arrumadinhas, também caíam na risada depois de provar a bala e logo pediam pra chamar outra amiga da sala. Era um entra e sai naquela assessoria de comunicação que só vendo.
No final da tarde, perto das 5 horas, a gente sempre tinha uma reunião com o superintendente. Todo mundo estava na mesa esperando por ele e conversando, claro, sobre o assunto do dia: a bala maligna. Aí ele entrou com a secretária, sentou na cabeceira, pegou uns papéis de uma pasta, uns processos e, antes de iniciar disse:
- Na volta do almoço eu encontrei essa bala aqui bem na minha mesa, num pires branco. Ainda não comi porque quero agradecer a quem me deu. Vocês sabem quem foi?
Pronto, estava acabada a reunião.
Cada um tinha uma história pra contar sobre a sua experiência com a bala, a careta de quem provou, ao ponto que todos começaram a falar ao mesmo tempo, num tumulto só, risadas altas, narrativas detalhadas das estagiárias que diziam do horror que era o gosto, enfim. O fato é que no meio daquela turba toda ninguém notou que o superintendente tinha provado a bala e estava com ela na boca o tempo todo, ouvindo os relatos.
Quando todo mundo se deu conta e fez-se o silêncio, ele disse:
- Eu gostei. É de alcaçuz, né? Ótima bala.
- Aaaaahhh – foi o coro geral ouvido de toda a sala, que misturava incredulidade e espanto!


quinta-feira, 5 de maio de 2016

O Gol

por André Caridade

Eram mais umas férias que eu passava em Florianópolis. Desde que meu pai tinha se mudado para lá, em 2001, era obrigatório a minha aparição pelas terras do Sul ao menos uma vez por ano. A desculpa era sempre visitar o velho, mas, na realidade, minha relação com a cidade foi paixão a primeira vista! Desde 2001. Ou, talvez, a desculpa fosse visitar a cidade que eu era apaixonado, mas na realidade queria mesmo visitar o velho. Tanto faz!
Dessa vez, nas férias de final de ano do colégio, minha empolgação e as propagandas que faziam da cidade eram tantas que consegui carregar minha mãe pela primeira vez. Em tempo: meus pais são, obviamente, separados.
De tanto insistir, consegui convencê-la a conhecer a cidade que eu sonhava em morar. Ainda sonho, vale ressaltar. E lá fomos nós. Em pleno verão, final de ano. Apesar do clima, teoricamente, mais ameno do que no Rio, o verão por lá não costuma ser muito diferente. E o programa das férias sempre incluía praias, tênis, pastel de camarão, violão, piano e, quando tinha sorte, rolava até um futebol.
Meu pai, apesar de ser, levemente, mais idoso/maduro/velho/experiente/sábio ou qualquer outro eufemismo que queria se utilizar, sempre praticou vários esportes comigo. Jogamos muito futebol na minha infância e, depois que ele se mudou para Floripa, começou a jogar tênis e eu fui atrás, tentando me virar no novo esporte. Mas confesso que no tênis nunca cheguei nem perto do Guga que idealizei para minha vida. Fazia e faço, com a raquete, apenas o básico para manter o mínimo de dignidade numa partida.
De qualquer forma, acho louvável que meu pai ainda jogue de igual para igual, correndo para cima e para baixo, com os seus quase... bem, alguns anos a mais que eu. Gostaria muito, mas acho impensável que eu tenha essa disposição toda com meus filhos também, daqui a uns 30 anos. Basta dizer que, atualmente, me canso mais rápido do que meu pai nas partidas de tênis.
Mas no futebol o assunto era outro. Jogava desde pequeno e tinha até alguma qualidade que, em alguns lapsos espaço-temporais do universo, me fizeram pensar que poderia ir em frente profissionalmente. Não deu certo, não. Ainda bem.
Mas desde pequeno, como dizia, meu pai me acompanhava, e muitas vezes jogava comigo. Ficávamos até ensaiando algumas jogadas quando tínhamos algum futebol marcado com os amigos. Depois que ele se mudou, a frequência dos nossos jogos diminuiu muito, e por isso, sempre tentávamos conseguir alguma partida quando eu estava em Floripa. E nessas férias que minha mãe estava por lá também, nós conseguimos.
Depois de alguns dias que eu tinha chegado ele disse que teria um encontro de uns amigos do trabalho da mulher dele, na época, e perguntou se eu queria jogar. Pessoal por volta dos 30, 40, 50 anos. Eu tinha os meus 13, 14 e topei na hora. Minha mãe também estava lá, e tinha muito, mas muito tempo mesmo, que ela não me via jogando bola. Achei que seria uma boa, também por esse motivo, e lá fomos nós.
Depois de praias, pastéis, violões, pianos e alguns sets de tênis, chegou o dia marcado para o futebol. Seria de noite, durante um dia de semana, após o pessoal sair do escritório, em um campo de grama sintética. Chegamos lá, eu, minha mãe, meu pai e a mulher dele. Conheci um pouco o pessoal antes da partida e logo vi que era disparado o mais novo da turma. O segundo mais novo era mais de 10 anos mais velho que eu. Por um lado pensei que era bom, que talvez no preparo físico eu levasse vantagem, mas qualquer adolescente sabe que não é muito confortável jogar futebol com pessoas maiores, mais velhas, e desconhecidas. Mas fomos em frente.
Minha mãe sentou em um banco, ao lado do campo, que ficava numa espécie de arquibancada, no alto, onde se podia ver muito bem a partida. Ao separar o time, algumas almas caridosas sugeriram que eu ficasse no mesmo time do meu pai, já que eu era o mais novo, não conhecia ninguém e tudo mais. Mal sabiam a péssima decisão que estavam a tomar.
Começou a partida e eu, ainda bem tímido, só tocava de lado, sem arriscar muito. Tentando mostrar para todo mundo que eu sabia o que estava fazendo com a bola nos pés. Aos poucos o jogo foi melhorando, o confronto foi ficando mais acirrado, e eu fui me soltando, jogando melhor.
Eu e meu pai começamos a fazer algumas jogadas, que nem tinham sido ensaiadas, mas que já faziam parte do nosso jeito de jogar juntos. Fui me adiantando, jogando cada vez mais perto do gol, para tentar marcar logo o meu e me soltar de vez. Numa das tabelinhas com meu pai, consegui fazer o primeiro. O time se reuniu para comemorar, meu pai levantou meu braço e gritou, em tom de brincadeira:
- Olha, é meu filho hein! Esse aqui é meu filho!
A risada foi geral!
A partida continuou e, com confiança, comecei a partir para cima dos zagueiros, driblando, fazendo gols e deixando meu pai na cara do gol algumas vezes. E a cada boa jogada, drible, ou gol que fazia, ele apontava para mim e falava para todos ouvirem:
- Meu filho, hein! Esse aí é meu filho!
E o pessoal, rindo, tentava dar um jeito de parar o guri de 14 anos.
A bola continuava rolando e, minutos depois, veio a seguinte jogada: o goleiro do meu time repôs a bola, com toda a força, com um chute que foi nas alturas. Eu estava de frente para ele, de costas para o gol adversário, na entrada da área, e vi a bola se aproximando, vindo bem na minha direção. Olhei rapidamente para trás, para ver minha posição em relação aos defensores, ao goleiro, e principalmente, ao gol adversário, e não pensei duas vezes, dominei no peito, e sem deixar cair, dei uma bicicleta!
Ainda caindo, consegui virar e assistir o goleiro saltando e a bola estufando a rede. Fiquei alguns segundos, confesso, um pouco chocado, com o meu feito. Logo meu time todo veio comemorar e meu pai, também sem acreditar no que eu tinha feito, se juntou à comemoração, encheu os pulmões e, apontando para mim, disse:
- Olha, só para avisar que é meu filho hein! Esse aqui é meu filho!
Quando de repente, em meio à risada geral, lá do outro lado do campo, de cima da arquibancada, minha mãe completa:
- Olha, só para avisar que é meu filho também, hein! Agora foi demais! É meu filho também!
O povo não se aguentou de rir! E nem nós!
Ainda bem que os dois estavam nesse dia, porque já se vão uns bons anos, e até agora não tenho nenhuma previsão de repetir esse feito. Só me resta torcer para um dia meu pai ou minha mãe gritarem:
- Olha, só para avisar que esse aí é meu neto, hein! É meu neto!